Fonte: Arquivo do autor
CAPINAN
José Carlos Capinan
Capinan por Gilberto Gil
Conheci Capinan estre 1962 e 1963 quando, estudantes em Salvador, todos em diferentes níveis e graus, ele, eu, Caetano, Tom Zé, Torquato Neto, Waly Salomão, Duda Machado, Álvaro Guimarães, Rogério Duarte, Fernando Batinga e tantos outros vivíamos o dia-a-dia da iniciação nas lides culturais, na política estudantil, nas experiências do sexo, do amor, da aventura de conduzir-nos, num incessante entra-em-beco-sai-de-beco corpoalma a dentro de uma cidade mítica, bela e sensual, de mil histórias antes por outras gentes e poetas vividas e mais outras tantas mil histórias então por outras tantas gentes e poetas por viver.
Éramos todos, ali, um uníssono unissonho de sermos — nos tornarmos gente e poetas a um só tempo. Gente no sentido de indivíduos/átomos do coletivo povo com sua massa material em labuta e luta. (...) Poetas no sentido religioso de mensageiros de Deus, no sentido psicoanalítico de intérpretes dos sonhos, alma psicossocial, qualidade da comida, musculatura distendida após o orgasmo, palco, beijo, idéia-flor, pensamento-ungüento, carnaval, celebração piedosa, a vida no seu vale-quanto-reza, fundamentalismo espiritual.
(...) Capinan, como todos nós outros, vivia aquela aventura com a sofreguidão das almas jovens. Vindo de um interior ainda mais agreste, ainda mais nordeste do que o de onde vínhamos eu e Caetano — porque ainda mais longe do mar de águas e de luzes da baía —, Capinan era portador e manifestante de uma alma ainda mais severina, no sentido joãocabralino da palavra. Mais caprino, mais cismado mais dependurado nas argolas das interrogações, como se elas fossem aquelas gangorras toscas pendendo dos galhos das mangueiras dos quintais das casas no seu sertão. De pensamento arisco, arredio, mais litera(l)riamente desconfiado do que os outros, Capinan viria depositar a palavra nas mãos do seu coração semiárido. A sua poesia estava, então, naquela região do sertão, naquele coração semiúmido e de lá ela se faria escrever e falar.
Aqui e ali essa poesia viria a ser, mais tarde, um pouco mais entumescida pelo mar da viagem ao desconhecido ou pelo orvalho das últimas madrugadas neoromânticas, quando dos estertores da revolução política e cultural dos sessenta e dos setenta e logo dos oitenta e tantos quantos foram os anos-luzes do seu percurso por sampas e riodejaneiros. Mas, no fundo, eu quase arriscaria afirmar que a poesia de Capinan repousa, ainda e eternamente, no caroço de umbu da sua caatinga. Umbu cuja carne é assim meio fibra, meio nervo e um tanto pouca, que ao morder se dá mais parca que farta, com seu doce ancorado em seu azedo, cujo gosto é bom mas exigente e dificultoso, e cujo caroço é duro e traiçoeiro para os dentes. Creio que assim será sempre a poesia de Capinan, embora seu verso tenha uma vez ameaçado que “já não somos como na chegada”.
Sabemos que em todos nós há sempre um que vai e um que fica, um que muda e um que permanece, e que há um outro que atento os observa a ambos, quase sempre a um deles distinguindo como se com um amor de pai.
(...) A poesia de Capinan distingue, elege e prestigia aquilo/aquele que nele permanece. Aquilo que não se perde nas névoas do delírio. Como a um fio de Ariadne atado. Aquilo que, como no sonho acordado do menino, leva-o à exploração das grutas obscuras da fantasia mas o traz sempre de volta ao ser do presente, ao claro recinto do seu quarto — ainda que sob tênue luz de lamparina iluminado. Quatro paredes, o teto, seu ambiente. Sempre de volta à obstinada recusa da solidão. De volta a algum/alguém sempre ao seu lado. Ele mesmo, o seu amigo ambíguo, um tanto quanto deslocado, quase que num quarto ao lado, contíguo a si mesmo, mas ainda no âmbito da sua con(si)guidade.
Extraído de Gentes e Poetas, apresentação do livro de poemas Confissões de Narciso, de José Carlos Capinan (Civilização Brasileira, 1995).
VEJA POEMA ILUSTRADO de JOSÉ CARLOS CAPINAM em 4 POETAS 4 GRAVADORES
Convidado oficial da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, participa da antologia POEMÁRIO da I BIP.
POEMAS
MUDANDO DE CONVERSA
Não me venham falar de éticas
Prefiro locomotivas
Ou motivos loucos para ser feliz
Prefiro vagões de urânio e feijão
Atravessando o país
Vendo o povo acenando lenços brancos
(Campos férteis)
Aos que vão sul a norte
Leste oeste
Trilhos novos, outros brasis
E eu menino outra vez a dar adeus aos tempos da antihistória
Quero sorrir das janelas de trens supersônicos
Em trilhos magnéticos
E novamente pensar que podemos alcançar as estrelas
Inédito. Feito em Dakar, em maio/2006.
ALGUMAS FANTASIAS
I
É noite, tudo é mistério, eu vejo
Há quem chore, há quem ligue a chave de ignição
Entretanto em meu coração fortemente chove
Chove chove chove
Enquanto chove, choro e relampeja
Se despem e se despedem todos os amantes
As chaves de ignição acendem os trovões
Apagam-se as velas e assim seja
VII
Os carros são cada ano mais potentes
E capazes de desenvolver velocidades surpreendentes
São capazes de atirar quilômetros animais árvores
gente
Não sei porque a vida se faz tão urgente
VIII
Sou político
E nem sei o que possa dizer com isso
Mas é da época ser político
E há vários políticos
E cada um tem a sua verdade política
E a sua maneira política de ser político
E cada político tem o seu melhor mundo a oferecer
Sou político e também penso que talvez tenha um mundo
Mas nem por isso, talvez somente fantasie inútil
E acredite poder alterar esse inexorável rumo.
Fui tão político às vezes que desdenhei as formas
E contestei as normas
E confessei ridículas as pétalas de rosas
Fui tão político às vezes que fiz da beleza uma coisa perigosa
E tão político às vezes que tornou-se a noite pavorosa
Fui tão político às vezes que se desfizeram as minhas
mãos amorosas
E tão político às vezes que pensei entender a guerra
O chumbo e a pólvora
Fui tão político às vezes que despendi mil impossíveis horas
Dissolvendo em amnésia todas as memórias
As máquinas são políticas
As poéticas são políticas
As canções são políticas
Mas eu desconfio que alguma coisa possa deixar de ser
MADRUGADAS DE NARCISO
Encalho nas madrugadas as minhas velas em farrapos
Sou eu mesmo os marinheiros
Sou eu mesmo a cabotagem
Sou eu quem traça os portos do roteiro
E torna em desespero a bússola da viagem
Naufrago nas madrugadas
Mas eu mesmo me faço nadar em vão até as mais
longínquas praias
Sou eu a maresia, a calmaria e a tempestade
Sou eu mesmo a terra à vista
Inalcançável
OUTRAS CONFISSÕES
Narciso se despe, é noite, estão ladrando os cães
Os cães provavelmente ladrarão inteiramente a noite
Enquanto a lua cheia obtura os dentes podres das canções
Um traficante boliviano
Diz alô de Amsterdã
Um fracassado governante
Diz alô num telegrama
Tudo é ópio, para um ex-marxista
Para um ex-espiritualista, tudo é transe.
Tudo é provisoriamente eterno para os poetas
Tudo é eternamente provisório para os amantes
E o poema apenas a configuração do instante
Extraídos de Confissões de Narciso (Civilização Brasileira, 1995)
DIDÁTICA
A poesia é a lógica mais simples.
Isso surpreende
Aos que esperam ser um gato
Drama maior que o meu sapato.
Ou aos que esperam ser o meu sapato,
Drama tanto mais duro que andar descalço
E ainda aos que pensam não ser o meu andar descalço
Um modo calmo.
(Maior surpresa terão passado
Os que julgam que me engano:
Ah, não sabem o quanto quero o sapato
Nem sabem o quanto trago de humano
Nesse desespero escasso.
Não sabem mesmo o que falo
Em teorema tão claro.
Como não se cansariam ao me buscar os passos
Pois tenho os pés soltos e ando aos saltos
E, se me alcançassem, como se chocariam ao saber que faço
A lógica da verdade pelos pontos falsos)
POESIA PURA
Se esta é a busca da noite enquanto noite,
A busca intensa que nada perturba,
Nego a sensibilidade, pois ela acrescenta.
Nego a compreensão, pois ela já tem noções
E pode perturbar a flor pelo conhecer do homem.
Hoje não relaciono, não comprometo.
Quero a coisa em seu íntimo mais grave
Quero a coisa, essencialmente a coisa,
A coisa metafísica, para provar a impossibilidade.
O REBANHO E O HOMEM
O rebanho trafega com tranqüilidade o caminho:
É sempre uma surpresa ao rebanho que ele chegue
Ao campo ou ao matadouro.
Nenhuma raiva
Nenhuma esperança o rebanho leva.
Pouco importa que a flor sucumba aos cascos
Ou ainda que sobreviva.
Nenhuma pergunta o rebanho não diz:
Até na sede ele é tranqüilo
Até na guerra ele é mudo.
O rebanho não pronuncia,
Usa a luz mas nunca explica a sua falta
Usa o alimento sem nunca se perguntar
Sobre o rebanho o sexo
Que ele nunca explicara
E as fêmeas cobertas
Recebem a fecundidade sem admiração.
A morte ele desconhece e a sua vida.
No rebanho não há companheiros,
Há cada corpo em si sem lucidez alguma.
O rebanho não vê a cara dos homens
Aceita o caminho e vai escorrendo
Num andar pesado sobre os campos.
Extraídos de Inquisitorial (Civilização Brasileira, 1995).
De
José Carlos Capinan
CONFISSÕES DE NARCISO
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 100 p.
Amor oblíquo
No cancioneiro de Pessoa há um poema
E muito me dilacera não ouví-lo agora
Talvez a chuva oblíqua no teto rosa amarelo
De um quarto imaginário
Ainda à espera dos tempos em cada relâmpago
E trovão
Dissoaciados da velocidade da luz e do som
Como dois fenômenos para os poetas
E seus aturdidos corações
(Para os cientistas, não
Um só ouvido, sincrônico)
Dois fenômenos como o teu amor oblíquo e teu beijo
Tão sempre sempre assim dissociados em nunca e jamais
Topos
gosto quando encostas
os acidentes do teu corpo
a espinha, a espádua, as costas
e o venerável rosto
que sob o negro véu, entre as coxas
(esse vulcânico poço)
antecipa (eu te confesso sem provas)
as convulções do gozo
ácido abismo, boca
devorando-nos aos ossos
geografia quase louca
sem ancoradouro ou retorno
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LETRAS DE MÚSICA
seguidas de trechos de depoimentos do autor em Vinte Canções de Amor e Um Poema Quase Desesperado (EPQ, 2004)
Ponteio
(Parceria com Edu Lobo)
Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse ou amor ou dinheiro
Era um era dois era cem
Vieram pra me perguntar
Oh você de onde vai de onde vem
Diga logo o que tem pra cantar
Parado no meio do mundo
Pensei chegar meu momento
Olhei pro mundo e nem via
Nem sombra nem sol nem vento
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Pra cantar
Era um dia, era claro, quase meio
Era um canto calado sem ponteio
Violência, viola violeiro
Era a morte em redor mundo inteiro
Era um dia, era claro, quase meio
Era um que jurou me quebrar
Mas não lembro de dor nem receio
Só sabia das ondas do mar
Jogaram a viola no mundo
Mas fui lá ho fundo buscar
Se toma a viola eu ponteio
Meu canto não posso parar
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola
Pra cantar
Era um era dois, era cem
Era um dia, era claro, quase meio
Encerrar meu cantar já convém
Prometendo um novo ponteio
Este dia bem claro por inteiro
Eu espero não vá demorar
Este dia estou certo que vem
Digo logo que vim pra buscar
Parado no meio do mundo
Não deixo a viola de lado
Vou ver o tempo mudado
E um novo lugar pra cantar
Quem me dera agora
Eu tivesse a viola pra cantar
Ponteio, ponteio
Todo mundo
Pontear
“Em 1967, Ponteio ganhou o III Festival da MPB, enquanto era morto em SantaCruz de la Sierra, Bolívia, um mito latino americano, que derrubara em Cuba, ao lado de Fidel, a ditadura de Fulgêncio Baptista, criando pela primeira vez uma república socialista nas Américas. Neste festival, foram plantadas as sementes da Tropicália. Caetano Veloso defende Alegria, Alegria, e enquanto se preparava para cantar Domingo no Parque, entreguei a Gilberto Gil o poema-letra Soy Loco Por Ti, América. Considero estas três canções precursoras do Tropicalismo. E considero Ponteio o encerramento do ciclo que elejera o Nordeste como síntese de nossa postura estético-política”.
Soy Loco por ti America
(Parceria com Gilberto Gil)
Soy loco por ti, América
Yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti, que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y ei cielo como bandera, y ei cielo como bandera
Soy toco por ti, América,
Soy toco por ti de amores
Sorriso de quase nuvem, os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas, o corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante
Esse país sem nome, esse tango, esse rancho,
Esse povo, dizei-me, arde o fogo de conhecê-la!
O fogo de conhecê-la
Soy toco por ti, América!
Loco por ti de amores
El nombre dei hombre muerto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente, antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto
Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es pueblo,
El nombre del hombre es pueblo
Soy loco por ti! América!
Loco por ti de amores
Espero o amanhã que cante
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes, soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra
Quem sabe, canções do mar
Ai, hasta te comover, ai, hasta te comover
Soy toco por ti! América
Soy toco por ti de amores
Estou aqui de passagem,
Sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício
De susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes
Entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços Nos braços, nos olhos, nos braços de uma mulher
Nos braços de uma mulher
Mas apaixonado ainda
Dentro dos braços da camponesa, guerrilheira, manequim,
Ai de mim, nos braços de quem me queira
Nos braços de quem me queira
Soy loco por ti, América
Soy loco por ti de amores
“O anúncio da vitória de Ponteio no III Festival da Record coincidiu com a notícia da morte do Che, que me levou a chorar e a escrever, num repente alucinado, do começo ao fim, sem reescrever uma só linha ou palavra (...). Entreguei o poema, nos bastidores do Festival, a Gilberto Gil. Ele criou o hino que hoje se mantém vivo e que talvez me dê a maior satisfação de tudo que fiz. Esta canção tem um grande significado, talvez seja a que melhor expressa meu sentimento rebelde e lírico e me faz acreditar que pertenço a um momento em que a América Latina era central em nossas idéias e destino, tudo sonhado revolucionariamente. Soy Loco por Ti, América me dá o imenso prazer de, querendo ser poeta, poder assim testemunhar nosso estar no mundo.”
Clarice
(Parceira com Caetano Veloso)
Há muita gente
Apagada pelo tempo
Nos papéis desta lembrança
Que tão pouca me ficou
Igrejas brancas, luas claras nas varandas
Jardim de sonho e cirandas
Foguetes claros no ar
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração
Clarice era morena
Como as manhãs são morenas
Era pequena no jeito de não ser quase ninguém
Andou conosco caminhos de frutas e passarinhos
Mas jamais que se despiu
Entre os meninos e os peixes
Entre os meninos e os peixes
Do rio
Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração
Tinha receio do frio
Medo de assombração
Um corpo que não mostrava
Feito de adivinhação
Os botões sempre fechados
Clarice tinha o recato
De convento e procissão
Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração
Soldado fez continência
O coronel reverência
0 padre fez penitência
Três novenas e uma trezena
Mas Clarice era inocência
Nunca mostrou-se a ninguém
Fez-se modelo das lendas
Das lendas que nos contaram
As avós
Eu pergunto o mistério
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração
Tem que um dia amanhecia e Clarice
Assistiu minha partida
Chorando pediu lembrança
E vendo o barco se afastar de Amaralina
Desesperadamente linda
Soluçando e lentamente
E lentamente despiu o corpo moreno
E entre todos os presentes
Até que seu amor sumisse
Permaneceu no adeus chorando e nua
Para que a tivesse toda
Todo tempo que existisse
Que mistério tem Clarice
Que mistério tem Clarice
Pra guardar-se assim tão firme
No coração?
“1966 (...) Morava no Rio de Janeiro, numa espécie de exílio interno, que vivi ao sair da Bahia, em 1964. Eu tinha uma idéia recorrente de voltar. Algumas vivências de adolescente insistiam em permanecer no meu coração, resistindo ao sex appeal das garotas de Ipanema, pelejando com as novas emoções que o Rio oferecia. E eram muitas. Mas a quase namoradinha do interior permaneceu como ícone da beleza nativa, a cobiçada filha de seu Cícero (...). Escrevi Clarice num surto de banzo. E mostrei o poema a Suzana (filha de Vinícius de Moraes) e Macalé. Suzana identificou Caetano como parceiro ideal (...) A morena Clarice foi gravada também por Orlando Silva, o que vim a descobrir após a sua morte”.
Papel Machê
Parceria com João Bosco
Cores do mar
Festa do Sol
Vida é fazer
Todo sonho brilhar
Ser feliz
No seu colo dormir
E depois acordar
Sendo seu colorido brinquedo
De papel machê
Dormir no teu colo
É tornar a nascer
Violeta e azul
Outro ser
Luz do querer
Não vai desbotar
Lilás cor do mar
Seda cor do batom
Arco-íris crepom
Nada via desbotar
Brinquedo de papel machê
“Poucas canções eu fiz tomando como ponto de partida uma melodia já composta. Ponteio e Papel Machê foram raras exceções. Gosto de escrever os poemas ou letras livremente, sem um padrão a ser alcançado... Esta parceria com João Bosco é um dos maiores sucessos de tudo que escrevi. Eu estava feliz e bem amado quando a fiz e me interessava muito pelas relações amorosas que dão certo, porque me sinto mal-educado afetivamente (...)”
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ENTREVISTA
José Carlos Capinan
Guerreiro imortal
O poeta e compositor Capinan entra para a Academia de Letras da Bahia
ANGÉLICA TORRES
Especial para este sítio de poesia
Brasília, nov./07 - Claro que a notícia soa estranha para quem desconhecia o fato. Capinan, imortal?! Aquele guerreiro tropicalista, compositor do hino Soy Loco Por Ti, América, militante político desde os tempos do Centro Popular de Cultura (CPC) e ativo defensor da negritude?? Ele mesmo. O poeta de mais de 200 canções da MPB, entre elas, as belas Ponteio, Clarice, Papel Machê, Movimento dos Barcos, O Cirandeiro e de cinco livros publicados, tomou posse na Academia de Letras da Bahia, no dia 17 de agosto de 2007.
De que modo a trajetória desse artista, nascido no interior da Bahia em 1941, o levou ao quartel-general da literatura oficial do País, ele próprio conta nesta entrevista – onde fala também sobre poesia e MPB, política cultural e sua militância no movimento negro, entre outros assuntos.
Qual a medida da importância para um guerrilheiro tropicalista, como você, tornar-se um “imortal”?
Inusitada encruzilhada... Fui sondado algumas vezes para entrar na Academia e não manifestei vontade de entrar. As razões para esta postura não foram motivadas pelo “guerrilheiro tropicalista”, como você me vê. Não recusava a Academia pelas razões que poderia ter nos movimentos cepecista e tropicalista, vendo nela um reduto conservador. Quando não manifestei desejo de aceitar os convites, feitos no início deste século, considerei a questão de, como autor, não ter o perfil acadêmico.
Em que perfil você se enquadra?
Sou um militante cultural, não me distingo por erudição em nenhum assunto, pois as academias de ciência ou de artes reúnem pontífices de disciplinas de ramos destes conhecimentos. Sou um buscador, um fazedor, procuro – quando escrevo ou participo de uma ação cultural – um sentido para os meus dias. Não sou um mestre. Assim, a Academia traz grande importância para o meu trabalho. Agrega a ele algum mérito, e me sinto o mesmo viramundo atuando em novo território, certamente para continuar as mudanças que ela aponta quando acolhe um trabalho como o meu.
Como se deu essa história da ALB?
Foi uma conspiração de dois amigos, o poeta Florisvaldo Mattos e o escritor Guido Guerra, que me consultaram. Como vacilei na resposta, não querendo dar um não que parecesse uma postura metida a besta, beicinho de antigo rebelde, recusando a Academia, Florisvaldo disse, “vou dizer que você aceitou”. E me senti muito prestigiado como indicado a ocupar a cadeira 36, que pertenceu à imortal folclorista Hildegardes Vianna.
Você teve que pedir votos?
Guido Guerra pediu os votos, conspirou mais no campo eleitoral, fazendo com que minha indicação se tornasse vitoriosa. Ele sempre foi meu amigo, eu sempre o admirei, por ser um grande romancista e de fidelidade e afeição incomparáveis. Ele, assim como outros nomes que recentemente entraram na Academia, modificou o perfil da casa, pois Guido era tão ou mais rebelde do que eu próprio.
Que Capinan é esse que vem lá, agora? Você não corre o risco de se fechar na honraria da confraria?
A honra será usada para fazer valer mais a minha voz. Na fala da posse, reiterei meus compromissos com o povo brasileiro, a minha condição de poeta, lembrei minhas posturas nos movimentos CPC e tropicalista, e disse que entro ali como um cidadão que ainda se manifesta com a canção Viramundo. Lembrei também que considero a Academia um território onde devem entrar as dores do mundo, os gritos da Terra, os ecos das bombas das guerras, a temperatura do aquecimento global – apesar do ar refrigerado que penetra em seus salões.
Sua poética sempre foi política, desde Inquisitorial na literatura, desde a Tropicália, na música. Onde a origem dessa paixão?
Penso que a estética nunca é pura ou inocente, ou ocupa um território acima do bem e do mal. Tem intencionalidades e funções. Em tudo o que eu faço há a marca do social, mesmo quando falo do amor, pois nada mais social que o namoro, a paixão, a relação corporal dos que se amam. Minha idéia de política hoje é originária da entrada na universidade, quando entrei para o Centro Popular de Cultura e simultaneamente para o PCB.
Como você, um branco, se tornou presidente da Amafro (Associação de Amigos da Cultura Afro-Brasileira)?
Houve descobertas nesta trajetória... hoje sei que sou afro-descendente, como também tenho ascendência índia e portuguesa – o que tem me proporcionado insights e vivências, semelhantes à incorporação, como acontece no candomblé. Quando escrevo, incorporo minhas narrativas. Antes de saber que tinha uma avó negra, cantei: Eu vim de Luanda ê/ eu vim de Luanda ê/ meu Luanda... Lá na Bahia/ todo branco tem um negro na “famia”. Como também, ao visitar Dakar, vivi a sensação de já ter passado pela Maison D’Esclaves, na Ilha de Gorée, onde escrevi a canção La Lune de Gorée, musicada pelo ministro Gilberto Gil.
Qual a importância do Muncab na sua gestão na Amafro?
O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira é uma iniciativa da diretoria que componho como presidente. É a continuidade de antiga aspiração das comunidades de afro-descendentes no Brasil, que inclusive reivindicam sua instalação em diversos estados. Vai caber à Bahia sediá-lo, porque foi onde chegaram os primeiros negros vindos para o Brasil, e Salvador é a maior cidade negra fora da África.
Você apóia o sistema de cotas?
Não posso ficar contra as cotas, mas essa questão me divide: ela parece reconhecer que temos uma sociedade diferenciada pela condição da raça. A universidade deve ser para todos, sim. E deveria proteger o acesso aos que não têm condições econômicas, sobretudo. Os negros são um grande contingente entre os pobres. Mas existem pobres de outras raças e cores. As cotas devem privilegiar o ingresso universal dos brasileiros na universidade, assistindo com prioridade estudantes de menor poder aquisitivo. Estudantes que são ricos deveriam contribuir financeiramente para o sustento da universidade.
Suas relações artístico-políticas com o Gilberto Gil ministro foram boas?
Tenho boas relações com Gil, que sempre nos apoiou quanto ao Muncab. Já artisticamente, ele me deve a música para alguns textos que lhe tenho enviado, todos sobre a África.
Como está sua produção literária e musical, hoje, com o nome já consolidado? e em soma de quantitativo?
Não sei quantas canções tenho gravadas, provavelmente mais de 200. Algumas gravações só conheci depois da morte dos intérpretes. É o caso da gravação de Clarice, feita por Orlando Silva. Livros de poesia publiquei quatro e participei de algumas antologias. Tenho alguns projetos e escrevo diariamente, de forma um pouco fragmentária. Estou precisando ficar três meses longe de Salvador, numa praia, conversando com gente simples, sem pensar em cumprir metas, como atualmente me obriga a instalação do Muncab. Tenho insônias horríveis, tudo por conta de buscar e administrar recursos e ter de alcançar resultados. É enlouquecedor. Mas faço canções, poemas, não consigo parar. Entretanto, é difícil dar unidade ao material que vou fazendo de forma a compor um livro.
No documentário O Sol – Caminhando Contra o Vento, da Tetê Moraes,Caetano depõe que encomendou a você e Gil a canção que resultou em Soy Loco Por Ti, América. Segundo ele, letra, ritmo e arranjo foram concepção dele, mas, como não tinha tempo, vocês dois fizeram, por isso ele a considera de autoria dele também. Já você conta no seu último livro que, inspirado na morte do Che, escreveu e levou a letra nos bastidores do Festival da Canção de 1968, para o Gil musicar. Quem diz a verdade?
Não acredito que Caetano tenha encomendado a morte do Che, que foi a razão, para mim, de escrever a canção memorial, feita imediata e automaticamente, logo após saber a notícia de sua morte! Não recebi pessoalmente – antes ou depois desse fato – nenhuma encomenda de Caetano Veloso. Mas nada impede que ele houvesse pensado na época em cantar uma rumba dançante e a tivesse encomendado a alguém. Eu apenas desconhecia esse fato...
Angélica Torres é jornalista e poeta.
Veja a página da poeta ANGÉLICA TORRES.
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