FERNANDO PY
Fernando Py -- nome completo: Fernando Antônio Py de Mello e Silva -- nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 13 de junho de 1935, de família gaúcha. Poeta, colunista e crítico literário, redator e tradutor. Fez o curso primário no Externato Coração Eucarístico, o ginasial no Colégio Santo Inácio e o colegial no Colégio Mallet Soares, todos na cidade natal, onde viveu até 1967, quando se mudou para Petrópolis (RJ), onde reside. Formou-se pela Faculdade de Direito da então Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ), em 1960, porém nunca advogou. Foi funcionário da CAPES, órgão do Ministério da Educação (1958-1959), da Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul na Guanabara (1960-1962) e meteorologista previsor do tempo no Instituto Nacional de Meteorologia, do Ministério da Agricultura, de 1962 até 1994, quando se aposentou.
Colaborou em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, principalmente O Globo, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Estado de Minas e Correio do Povo. Trabalhou como redator e tradutor em enciclopédias, sobretudo a Grande Enciclopédia Delta Larousse e a Enciclopédia Mirador Internacional. Traduziu obras de autores importantes, como Marcel Proust (Jean Santeuil; Em busca do tempo perdido, etc.), Marguerite Duras (O vice-cônsul; A vida tranqüila, etc.), Honoré de Balzac (A pele de onagro; O primo Pons), Saul Bellow (O legado de Humboldt; Henderson, o rei da chuva), e vários outros. Como colunista literário, trabalhou em jornais de Petrópolis e atualmente assina seção 'Tribuna Literária' na Tribuna de Petrópolis.
Livros publicados: Aurora de vidro (poesia): Rio de Janeiro, Livraria São José, 1962; A construção e a crise (poesia): Rio de Janeiro, Simões Edições, 1969; 4 poetas modernos (poesia, em colaboração): Rio de Janeiro, Cátedra, 1976; Bibliografia comentada de Carlos Drummond de Andrade (pesquisa): Rio de Janeiro, José Olympio / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980 ( 2ª edição, aumentada: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002); Vozes do corpo (poesia): Rio de Janeiro, Fontana, 1981; Dezoito sextinas para mulheres de outrora (poesia): Recife, Edições Pirata, 1981; Chão da crítica (jornalismo literário): Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984; Antiuniverso (poema): Rio de Janeiro, Sette Letras / Petrópolis: Editora Firmo, 1994; Carlos Drummond de Andrade: poesia (antologia comentada, em colaboração com Pedro Lyra): Rio de Janeiro, AGIR, 1994 (2ª edição: 1998) [Col. Nossos Clássicos, 118]; Sol nenhum (poesia): Rio de Janeiro, UAPÊ, 1998; Antologia poética (40 anos de poesia: 1959-1999): Petrópolis, Poiésis, 2000; Sentimento da morte & Poemas anteriores (poesia): Goiânia, A.S.A., 2003; Uma poesia dialógica: nove resenhas da obra de Pedro Lyra (crítica literária): Fortaleza, UFC, 2003; O poeta Coelho Vaz (conferência): Goiânia, Kelps, 2004; 70 poemas escolhidos: Petrópolis, Catedral das Letras, 2005 .
Ganhou alguns prêmios literários e recebeu (15 de abril de 2003) o título de "Cidadão Petropolitano Honorário". É casado desde 1963 com Maria Soares de Mello e Silva; tem três filhos e quatro netos.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
Traduções de Ada de Navarro e Carlos Alberto Prato
Leia também o texto de Fernando Py: http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/a_metapoesia_de_joao_cabral.html
Veja também>>> POÈMES EN FRANÇAIS
EN ITALIANO
MORTE ÍNTIMA
a Eliane Zagury
Quatro sílabas viajam
no rumo de ninguém.
Quatro caladas mágoas
já sem uso em palavras.
Língua cortada, o eco
regressando à origem
que se presume oblíqua
anterior à linguagem.
A idéia segue a sílaba
em seu perecimento
mantendo-se intranqüila
durante algum momento.
Sejam dias ou séculos
igual será o lamento
desse ruído – som morto
cavado na laringe.
Persista embora o símbolo
constante do alfabeto
os signos não reunidos
jamais na mesma sílaba
lerão palavra idêntica
a essas duas minúsculas
outrora pronunciadas
carreando emoções mágicas.
A morte dessas sílabas
completa a do indivíduo.
30-05-1966
(de A construção e a crise, 1969)
O BECO
a Carlos Drummond de Andrade
Que se passa naquele beco
onde nunca estive?
Vislumbro o muro de passagem:
sombras, manchas, rastros
de existência.
Quem o habita, se é que o habita
alguém, se é que o beco
existe como existem
seres e coisas que vejo?
Quem derrama nesse recanto do universo
o sinal de vida, a marca indelével
da matéria organizada?
O que existe fora do meu
alcance de vista? Quem brinca
de esconder quando relembro
o muro caiado, a rua esquecida?
O que não vejo, pressinto:
existe mesmo ou é extinto
para mim, ignorado
como esse beco aonde nunca fui?
novembro 1980
(de Sol nenhum, 1998)
O ESQUIZOFRÊNICO
No seu delírio vai compondo os gestos
diante da platéia inexistente;
ele próprio é a platéia, mas não sente
do espetáculo mais que os pobres restos
que a memória lhe acende nos esgares
da fisionomia descomposta.
No seu delírio a fala, sem resposta,
se resolve em grunhidos singulares,
num discurso arbitrário de fonemas
reduzidos à simples expressão
de sons primevos que de sempre estão
revelando carências, e as extremas
ruínas de seu cérebro em pedaços.
Os gestos multiplicam-se em algemas
e a platéia se cala, membros lassos.
30-01-1994
(de Sol nenhum)
De
70 POEMAS ESCOLHIDOS
Petrópolis, RJ: Catedral das Letras, 2005.
ISBN 85-89186-15-6
DUPLO
Olho-me adentro sem cessar e no silêncio
e na penumbra de mim mesmo não me exprimo
nesse mim que se esconde e se retrai no vago
espaço de urna célula e vai construindo
outro mim de mim, disposto em gêmeos compassos,
e não aparece ao olho, ao espelho, à imagem
casualmente em máscara, fechado à curio-
sidade de meus olhos lacerados, cegos
de tanta luz enganosa, nem se derrama
sobre a superfície polida e indiferente,
enquanto cresce em mim a presença de estranho
ser não eu, de irrevelada e própria pessoa,
que domina esse meu corpo, casca de angústia
e contradições simétricas envolventes,
e me explora e me assimila; mas sou eu só
a me percorrer e nele me vejo e sinto,
como de dois corpos iguais maté4ria viva,
e me faço e refaço e me desfaço sempre
e recomeço e junto a mim eu mesmo, gêmeo,
nada acabo e tudo abandono, dividido
entre mim e mim na batalha interminável...
13-03-1975
QUARENTA ANOS
a Carlos Nejar
Sinto a velhice em mim oculta e rude
em meio ao sol e ao riso da manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maça
mordida, podre, e rio e não me ilude
esse carinho, essa algazarra. O alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e ruga
e os caminhos só descem, pesa o fardo,
e entre cinzas de mim, alheio, ardo,
de um fogo já morrente em sua fuga.
Mesquinho embora, curvo e pungitivo,
meu corpo vibra e se deseja vivo.
13-06-1975
De
a construção e a crise (1963-1968)
Rio de Janeiro: Simões Edições, 1969
FIM DE FESTA
a Emil de Castro
corpo desfeito de suor
inertes móveis desdenhados
bolo de puro enfeite sem cuidar
migalhas xadrezando a toalha suja
música breve sugerindo
ritmos de sono
morte
lentamente
na pele o sal
úmidos membros lassos
agitação caindo
noite sempre
lâmina de angústia sob as pálpebras
m e d o
medo intenso e mais ninguém
ENSAIO SOBRE O FIM
a José Edson Gomes
Contempla este edifício de cimento
e fezes.
Contempla-o: segredos abrem-se a teus olhos
no ranger dos gonzos, na ferrugem
amarga do metal mordido.
Desfere a vista contra estas colunas,
estas paredes, pesquisa os alicerces.
0 material que neles se empregou
é sangue e ossos, humo desprezível,
suor de peitos e braços, pêlos rudes
impregnados de cólera e onde assoma
a lágrima impotente da miséria.
Desfere tua vista, puro raio,
vento noturno desfolhando telhas,
sobre o sujo edifício onde a ambição
ergueu-se em desafio ao céu tranquilo.
Do teu conciso olhar
nascerão novos tiros mais adultos
nascerão juventudes reduzindo
o edifício opressor a lodo e cinza,
envolvendo estruturas, certos homens
que em si o mal fabricam, sêde e fome,
este mundo em pedaços que se esfuma
ao ligeiro calor de olhos impávidos
enquanto pela noite, rosa e luz,
já distingo o futuro, companheiro
— a nova construção sem privilégios.
PY, Fernando. Antiuniverso. Rio de Janeiro: Sete Letras; Petrópolis, RJ: Editora Firmo, 1994. 75 p. 14x21 c. ISBN 85-85625-08-2 “ Fernando Py” Ex. bibl. Antonio Miranda
FALA DOS POETAS
(Jorge de Lima)
Era um cavalo adusto, asas de fogo,
rodeado de chamas e fulgores.
Nas tardes mui tranquilas me surgia
e olhava a mesma página que eu lia.
820 Depois soprava as letras e babava
cascatas luminosas, que fugiam,
e a escuridão por fim cobria o livro
e o cavalo de fogo se apagava.
Bem que eu sabia que ele ainda ardia
nas cinzas do meu livro quase extinto
transformado em memória a cada dia;
bem que eu sabia: a noite que vivia
era a loucura do seu corpo em brasa
ressuscitado em plena madrugada.
si. si. si.
(João Cabral de Melo Neto)
830 Escrever é sacrifício
que se mede pelo avesso:
de um lado o prazer do ofício,
do outro, o caminho crespo.
PY, Fernando. Sentimento da morte & poemas anteriores. Goiânia: 2003. 68 p. 15x21 cm. Capa: Paul Klee (1879-1940) Morte e fogo. “ Fernando Py “ Ex. bibl. Antonio Miranda
SORRIA
Sorria.
Você está sendo roubado
todo santo dia.
Não chore.
Haverá sempre alguém
que o explore.
A vida causa transtornos?
Não se importe.
Você desliza suavemente
para a morte.
Petrópolis, 23 janeiro 2003
PY, Fernando. Aurora de vidro (1959-1962). Rio de Janeiro: Livraria São José, s.d. 54 p. 16x23 cm. “ Fernando Py “ Ex. bibl. Antonio Miranda
AURORA DE VIDRO
A Armando Duham de Freitas
Eu bebia no copo
o nariz metido dentro. Olhava o fundo —
das estrias transparentes surgia o fundo
sol lançando seus raios
pela manhã.
gostava de beber naquele copo
só o ruido da água caindo ja confortava a sêde.
como é parecido com o sol!
inquebrável, vidro alemão de antes da guerra.
( deixei cair do quarto andar e pulou feito borracha
— espanto em casa orgulho em nim )
De reperite eu era rapaz e o copo me acompanhou.
Passei uns ternpos esquecido dele
nem ligava pro sol.
Bebi noutros copos.
O copo ... será que ficou triste?
Num piquenique na Barra
bebi nele de novo.
Escorregou da rninha mão caiu no mar.
Chorei de remorso pena feito criança
que perdeu o unico brinquedo quebrado.
primeiro chorei depois procurei
naquele dia no outro no outro
nunca mais achei
minha aurora de vidro eclipsada no mar.
MARINHA
a Olympio Monat
As algas prefiro as águas-vivas
e as estrelas-do-mar sempre ofertadas.
A ardência limosa da onda verde
e das cinco pontas holotúrias
sabe a areia, a sol, a sesse prazer
de construir castelos entre os dedos
úmidos. Escorrem lembranças, viagens não feitas,
o corpo imóvel sonha longe e fora. A irregular
estrela ,e o glauco beroi ovata, espuma
sólida, brilham na areia penetrada
mais que em meu pensamento, escura noite
em que se depositam.
E o que resta
na manhã nascente ou por nascer um dia
(estrelas-do-rnar sempre ofertadas )
são ideias de sonho mal sonhado
destroços de infância à beira d’agua.
Veja o E-book do livro:https://issuu.com/antoniomiranda/docs/fernando_py?e=1077420/41319691
PY, Fernando. Sextina 2. Jaboatão, PE: Editora Guararapes, 2015. 24 p.. ilus. col. 20,5x13 cm. Editor: Edson Guedes de Moraes. Edição artesanal, limitada. Ex. bibl. Antonio Miranda
POEMAS COM TRADUÇÃO EM ESPANHOL
Traducciones de Ada de Navarro e Carlos Alberto Prato
NEVOEIRO NIEBLA
a meu irmão a mi hermano
O verso agoniza El verso agoniza
na folha. en la hoja.
Luz verdevermelha Luz rojo-verde
continuamente. contínua.
A noite apodrece La noche empodrece
em música. en música.
Todos na sala Todos en la sala
esperam. esperan.
A aurora há-de vir: La aurora vendrá
sem consolo. sin consuelo.
Onde se (des)faz o amor Donde se (des)hace el amor
antigo? antiguo?
Tudo foge. Tudo é Todo huye. Todo está
deserto. desierto.
(tradução de Ada de Navarro)
TANGO
Um tango me persegue desde a infância
no canto, no piano, na memória
e se me impõe à voz, timbrando vário
são prolongar em mim a sua essência
nos dedos de meu pai sobre o teclado.
Não somente: transporta desde longo
tempo a escrita do pai, letra de tango
no papel sempre então visto e relido.
Um tango me persegue: sua marca
é o realejo crepuscular que sinto
na imaginação rodando lento
e quanto mais passado mais se acerca.
E letra e pai e som, tudo afinal
gira ao compasso do tango fatal.
junho 1991 (de Sol nenhum)
TANGO
Un tango me persigue desde niño
en el canto, en el piano, en la memoria,
y se impone a mi voz, mero latido
que la prolonga em mí, ya muda y sobria.
Los dedos de mi padre en el teclado
encogiéndome el tiempo y el espacio
en la letra de él, letra de tango,
de papel re-leído y resguardado...
Organito tardío: soy tu huella
intácta, que fluctúa en las tinieblas
de la imaginación, que rueda y rueda
hasta mi ser de musicas secretas.
Tango, letra y papá me desconciertan,
pues cuanto más pasados, más se acercan.
(Tradução de Carlos Alberto Prato)
Nota do tradutor: Trabajada en endecasílabos de rima asonante, a semejanza del soneto inglés, largamente practicado en la Argentina por J. L. Borges. Las reverberaciones borgianas, por lo tant, no tienen nada de “casuales”. La alteración del orden de los penultimos versos, y el cambio del final, obedecen a mi proposito de valorizar más aún la más alta idea poetica (a mi juicio) del bello poema. “Organito” por “realejo” se debe a la necesidad de un instantáneo re-conocimiento en mi tierra. De todas las otras “herejías” rimadas, me declaro culpado y confieso (y, espero también) perdonado, por su anti-universalista autor.
Nota de Fernando Py sobre os tradutores: Carlos Alberto Prato, poeta e tradutor argentino (1935-1998), nasceu em Haedo (província de Buenos Aires) e faleceu em Buenos Aires. Foi fundador de vários periódicos literários, tendo recebido grande número de prêmios pela sua poesia, dos quais se destacam a “Pluma de Plata Almafuerte” (1982); por dois anos seguidos (1982 e 1983), obteve o primeiro prêmio no Concurso Nacional Ciudad de Morón. Residiu em Petrópolis (RJ, Brasil) entre 1994 e 1997, quando voltou para a Argentina. De Fernando Py, além do soneto “Tango”, traduziu também, integralmente, o longo poema “Antiuniverso”, tradução que permanece inédita. A imagem final de sua nota (“anti-universalista autor”) se refere a esse poema.
De tradutora argentina Ada de Navarro, com quem mantive correspondência entre 1968 e 1970, sei apenas que era viúva de Raúl Navarro, também tradutor de poesia (publicou Poesía moderna del Brasil, 1956) – e, na época, empenhava-se em concluir uma antologia de poetas novos brasileiros, que o marido deixara incompleta. Traduziu vários poemas meus, quase todos da coletânea A construção e a crise (1969), e sua correspondência cessou de repente em fevereiro de 1970. Na ocasião, ela se queixava de estar enferma; creio que tenha falecido naquele ano. Ignoro onde e quando nasceu.
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