RACHEL DE QUEIROZ, POETA, SIM SENHOR!!!
por Antonio Miranda
Rachel de Queiroz
SERENATA
Prefácio de Ana Miranda
Fortaleza: Armazém da Cultura, 2010
118 p. ISBN978-85-63171-07-8
Rachel de Queiroz é conhecida por seus romances, a partir de "O Quinze" (1930), mas como acontece com a maioria do escritores, incursionou também pela poesia. [Aconteceu a mesma coisa com o nosso Jorge Amado, que começou com um livro de poesia, que está banido de sua bibliografia, por vontade própria.] Os poemas de sua juventude são do final da década de 20, alguns deles publicados em jornais e revista sob pseudônimo. Mais de um: Rita de Queluz, Maria Rosalinda, Inocência, Ignez e até um masculino - Zé do Guignol. Só agora, no final de 2010, com o centenário de nascimento celebrado em novembro, é que aparecem os livros de poesia, embora seus poemas continuam sendo publicados aqui e ali, em livros alheios, há algum tempo.
"Mandacarú" saiu no embalo da referida celebração e já tivemos a oportunidade de resenhar e reproduzir um dos poemas telúricos e marcadamente sociais , como se pode ver em:
Outra edição digna de registro é "Serenata" que apresenta 34 poemas extraído de publicações hemerográficas, além dos inéditos, por José Augusto Bezerra, presidente da Associação Brasileira de Bibliófilos. Estamos agradecidos por esta iniciativa. Rachel é uma modernista singular. Vivendo no Ceará entre versejadores românticos tardios, parnasianos e simbolistas — embora a chamada Padaria Espiritual já anunciasse grandes mudanças antes de Rachel —, ela adota um verso que já era moderno, que continua moderno, sem afetações nem maneirismos. Simples, mas nunca simplório. Adotando linguajar sertanejo, nativo, que virou moda no sul do país entre os verde-amarelos do Movimento Modernista depois de 22. Ela traz do cordel a vocação narrativa sem sujeitar-se à métrica tradicional. Como já estaria ensaiando a escritura de seu primeiro romance, e Rachel é sobretudo romancista, revela-se prosaica, mas num formato poético que revela seu talento criador.
Vamos ficar na apresentação de um dos poemas do livro: "São Francisco do Canindé". Texto corrido, vívido, com certa ironia. Embora muito jovem, metida num ambiente religioso, a poeta mantém um certo distanciamento, narrando impessoalmente, perpassando certa irreverência com muita sutileza. Sabe-se que acabou assumindo seu ateísmo, ou o agnosticismo. Dizem que uma vez foi interrogada sobre religião e teria confessado mais ou menos nestes termos: "Deus não me deu toda esta fé"... Verdade ou mentira, este suposto episódio nos ajuda a entender as entrelinhas do poema:
São Francisco de Canindé
Ele estava lá no céu,
junto de Nosso Senhor...
Mas um dia lembrou-se de vir cá
pra dentro daquela igreja,
pra cima daquele altar...
Ficou tão vistoso e rico
todo cercado de luz,
todo cercado de flor!
Amostrando as mãos feridas,
as rosas presas num laço,
e o pé chagado de roxo
que é mode a gente beijar...
E milagre?
Hoje só sofre quem quer...
—Tem bouba no pé?
E esipra?
Um catarrão incansado
lhe cerra a arca do peito?
— Por que é que não promete
a são Francisco das Chagas,
tão bom e tão milagroso,
uma perna de cera?
ou o dinheiro do legume
que você apurou depois das águas?
Veja o quarto dos milagres,
dava para um rio de cera.
E na galeria de uma banda,
aquele cofre:
só de prata de paroara
chegou pra o santo enricar!...
"Meu irmão me dê uma esmola
pela luz que Deus lhe deu!
Que já tive pra morrer
são Francisco me valeu
porque eu prometi a ele
tudo o que tinha de meu...
E dei o que prometi,
ao depois vim esmolar."
"Ah, meu irmão me socorra!
E queira Deus lhe livrar
de um dia lhe acontecer
fazer promessa e pagar..."
Nunca mais
que são Francisco quer voltar pró céu!...
Acha tão bom lá na igreja
no altar enfeitado!
Ou pelo tempo na festa
dar um passeio no andor!...
Tão bom no Canindé!...
Rachel de Queiroz (Revista Maracajá, 7 de abril de 1929)
=============================================================================
Veja também outra página nossa com a poesia de Rachel de Queiroz:
|