VIVIANE DE SANTANA PAULO
( BRASIL – SÃO PAULO )
Viviane de Santana Paulo, nascida em São Paulo, é poetisa, tradutora e ensaísta, autora dos livros Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim, 2017), Depois do Canto do Gurinhatã (poesia, Multifoco-Verlag, Rio de Janeiro, Brasil, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, Gardez! Verlag, Remscheid, 2005) e Passeio ao longo do Reno (poemas, Gardez! Verlag, Remscheid, 2002).
Em parceria com Floriano Martins, Em silêncio (ARC Edições, Fortaleza, Brasil, 2014) e Abismanto (poemas, Sol Negro Edições, Natal, Brasil, 2012).
Participa das antologias brasileiras Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas dos anos 2000 (Global Editora, São Paulo, Brasil, 2009) e Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007).
A autora traduziu vários poetas alemães, incluindo Jan Wagner, Nora Bossong, Josef Kafka, Sarah Kirch, Gottfried Benn. Seus poemas já foram publicados em revistas e jornais da Europa e América Latina.
Veja também: VIVIANE DE SANTANA PAULO – mais poemas
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor, residente no Brasil. Autor de muitos livros de poesia, antologias, ensaios, etc. Diretor da revista Agulha Revista ade Cultura, na web.
PAULO, Viviane de Santana; MARTINS, Floriano. Em silêncio. Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014. 99 p. 14x21 cm. Projeto gráfico: Márcio Simões. Capa: foto de Floriano Martins. Fotografia interna: “Porão do coração” de Cláudia Horta. Fotografia de Floriano Martins: por Bea Saboia. Tiragem: 300 exs. Escrito através de uma troca pela internet, ele em Fortaleza e ela em Berlim, “uma ousada aliança, a de criar um mundo poético baseado na alteridade, na troca de humores, em um jogo entranhável em que embaralham os sentidos”. Ex. col. Antonio Miranda.
FALHANDRAS
um a um os objetos foram desaprendendo suas formas
compondo um esqueleto invisível em que novas sombras se
traduzem
o vento intimida a ideia que fazemos do tempo
tudo dentro da casa se esgueira como se
tateasse outro mapa de enredos
nada mais se reconhece como a composição do lugar
eu mesmo sou estrangeiro buscando entender esta nova
cartografia
e fugir deste interior limítrofe procurando minhas
fronteiras
minha falange no meio do dia das pessoas do trabalho
da família descobrir as falhas que me acertam
que me dirimem que me denegam que me refazem
as falhas que carrego e as que colho no equívoco do jogo
das cenas das quais faço parte e das
outras que me apresentam
em palcos improvisados na fímbria das tragédias íntimas
as sobras do lar a memória desfolhada o baile de
fantasmas
louças esvoaçantes que atuam como bailarinas loucas
o armário desabando em conflitos
o instinto desfiando antigas visões por cómodos que se
multiplicam
trama de portas que sussurram ao ritmo convulsivo das
luzes
parentes mortos solidão destroçada por mais solidão
meu corpo tropeçando na falta que sente de tudo
este corpo estrangeiro que não reconhece o vazio de sua
nova morada
e desespera ao encontrar janelas fora de lugar com
paisagens que nunca estiveram aqui
SUSPIRANÇA
jamais soube que nome dar à vegetação do silêncio
estendida diante de si permitindo que o caminho ao mar
lhe oferecesse uma provável resposta
por vezes rabiscava na areia umas primeiras tentativas de
esquecer o tempo
e o tempo se expandia sob suas pegadas acesas
o nome que pretendia escrever não cabia na areia gotejava
solidão das letras desencontradas
como insetos que houvessem perdido as asas
vaga-lumes sem rumo apagados como segredos no
azinhavre das tentativas que vêm e vão
segredos esquecidos na ferrugem dos pêndulos jamais
soube lidar com a imensidão da folhagem que recolhia
como uma relíquia
e a transformava em imprevisível queda no salto do louva-
a-deus no instante do perigo
atingir o desconhecido repentino as ciladas que os anseios
iminentes criam
conforme o avanço incerto de cada um de nós jamais
soube lidar
com a linguagem da névoa nas primeiras palavras do
amanhecer
na qual o tempo lhe recalcava como um nome na areia
breve mas por um momento infenso às línguas
ininterruptas do silêncio e do efémero
nada poderia fazer pelas luzes queimadas em seu íntimo
nem mesmo mudando o tempo dos verbos sangrando
antes da ferida soluçando sem motivo
aparente saltando da ponte antes de sua construção
a memória queima em cima do telhado sem saber como
descer
AMANAJÉ
tudo isto aconteceu há muitos anos quando ainda vivias
dentro de mim sem que eu soubesse quantos um
dia chegarias a ser
as tuas primeiras formas eram tão diferentes que eu não
saberia
como povoá-las eu simplesmente deixei que fosses
mudando e mudando até um ponto
em que não restasse mais nada teu no jorro de cada
expressão
e o silêncio hircípede farejasse as fissuras das letras
a inflorescência dos cactos o silêncio
caçando as mínimas histórias germinadas dos olhares
e gestos agrestes espalhados junco modesto no campo do
silabário
tu te refaz como a calda da lagartixa as cabeças de hidra
do nada cresce de novo os dizeres móveis nas dunas
e nas porções no meio do prato onde te alimentas dos
erros
que não pudeste cometer oh pedra errante dos sentidos
oh pavio intumescido do abismo quimera repleta
de acidentes indecifráveis tudo isso proliferou
como a relíquia deformada de um mundo impossível
que fomos arrancando de nós como tumores
e livres dos buracos colhemos as luzes com as nossas mãos
e simplesmente fomos dali sem mais nada a dizer
INIMIGO RUMOR – revista de poesia. Número 16 – 1º SEMESTRE 2004. Editores: Carlito Azevedo, Augusto Massi. Rio de Janeiro, RJ: Viveiros de Castro Editora, 2004. 176 p.
ISSN 1415-9767. Ex. biblioteca de Antonio Miranda
NÃO SABIA COMO doeria deixar de amar,
mas as pessoas
continuam levantando cedo e indo ao trabalho,
continuam desempregadas, abastadas,
se empanturrando e arrotando hipocrisia,
se beijando nos aeroportos,
construindo seus poderes fétidos,
achando graça nas piadas, nos inúteis esforços...
Nada deixou de ser outra coisa.
Os dias continuam nublados, ensolarados, empoeirados,
tímidos, secos... o trigo desperdiçado longe da fome,
os amigos convidando para algum programa fútil,
interessante, os congestionamentos nos feriados,
os amante se entregando árduos, as traições
incontidas, raras comedidas...
Tudo continua com uma impecável regularidade,
uma imutável anuência com o fluxo das coisas
como se eu nunca tivesse estado na beira do precipício,
como se o rubro não tivesse sido do meu sangue vertido
e simplesmente aquarela, como se não tivessem sido
[salgadas
minhas lágrimas, nem estreita a minha cela...
nem dimensão na minha liberdade,
nem eternidade nas nossas mãos,
na nossa boca, nas nossas palavras...
Não sabia como doeria deixar de te amar,
porque a indiferença das coisas me toca tão
[compadecida,
que a dor enfraqueceu em sua própria chaga.
Restaram as reminiscências, como uma distante estrela
transformando o escuro dos meus sonhos
com sua simples centelha.
QUERO SER IMORTAL como a chuva
caída no meio da madrugada
e o açúcar dissolvido no café
ralo na xícara de minha avó
a gota d´água desperdiçada
da torneira do tanque
no quintal de algum passado
Quero ser imortal como o brilho
do sol purpureando as palavras
da água, sua correnteza
que jamais retorna
e o caminho percorrido das sombras
e as frutas amadurecidas
mordidas pelas bocas menos mentirosas
Imortal como as placas
enferrujadas dos nomes antigos
das cidades crescidas
e das ruas modernizadas
o reflexo dos lindos olhos
de uma jovem de longos cílios
no vidro da janela do último trem
como a curva do ocaso
no canto do telhado
o cheiro de pó levantado
pela chuva de verão no meio
da tarde de uma São Paulo de outrora
Imortal como aquele
outdoor na esquina da casa
pichado e rasgado
pela saudade anarquista
da juventude
Imortal
como toda fragilidade
que simples e fácil
e quase imperceptível
sobrevive na eternidade
de todo efêmero
20.2.04
TEXTOS IN GERMAN - EM ALEMÃO — TEXTOS EM PORTUGUÊS
SANTANA, Viviane de. Lebendiges wesen namens gedicht vom satellite aus gesehen. ser vivo chamado poema visto do satélite. Gedichte poesia. Leipzig, Berlin: Engelsdorfer Verlag, 2023. 103 p. ISBN 978-3-96940-642-7 No. 10 872
Exemplar biblioteca de Antonio Miranda
A poetisa reside na Alemanha
Das dilema eines Engels I
die falten der Welt vertiefen die zweifel
wir machen fortschritte mit der technologie
und folgen mit schildkrötenschriten dem weg des friedens
und der sozialen gerechtigkeit
irgendwo auf dem planeten gibt es immer einen krieg und wir
machen uns vor er sei nicht in unserer nähe
ich müsste fest auf das meer blicken
und nicht auf die zeitung müsste meine augen in
seimen blau und wellengang schwimmen lassen
ich müsste die wäsche auf der leine wäscge
sein lassen während ein warmer wind weht
und den geräuschen der insekten in der trägheit des nachmittages
[lauschen
was ich zu sagen habe?
das veste won tag heute ein kurzer regen ausgenommen
der den staub von den wänden wusch war es ein gedicht von
tanikawa shuntaro zu lesen
einer zeichnung von paul klee gewidmet das so etwas sagt wie
ein engel der von einer zweiten welt neben dieser hier kam
schleppte sich durch die jahrhunderte und war sos dünn so dürr
wie ein strich er musste fliegen weil seine flügel
ein geschenk des menschen waren er musste fliegen genauso wie
eine drosófila nur einen tag lebt und er lechzte
nach einem winzigen tropfen der freude
wie nach wasser
was ich dazu zu sagen habe?
ich die ich nicht mal flügel habe!
das dilemma eines engels II
beim betrachten des regens der gegen das fenster prasselte
[denken
Etwa zwei Milliarden Menschen haben keinen Zugang zu
[sauberen Trinkwasser
und da war ein kind das glaubte das Licht gehörte allen
der wind das wasser die erde
die sterne die pflanzen die kräuter die samen enthalgten
die obstbäune gehörten allen
am anfang schuf gott den himmel und die erde
er könnte sie verkaufeb da er der eigentümer
der blauen ströme ist wo die wolken segeln
des herzens der berge das hoch pocht‘
der gärten cassiopeas der handvoll dunkler erde
des universums aus der runde planeten sprieBen
des feurs das vom revers des windes augespuckt wird
des atems der farben im mund des lichts eines jeden samens
von regen der auf die haut der fliesen fällt
von allen quellen die aus den augen der erde entspringen
aber wozu diese fragen wenn wir die antwort kennen?
Etwa zwei Milliarden Menschen haben keinen Zugang zu
[sauberem Trinkwasser
und da war ein kind das glaubre dass die finger bäume
sich an die erde wie die wurzeln des schaums klammerten
in den schwingenden wellen des meeres
dass die zöpfe des wassers die schuppen des trockenen todes
[umringten
heute ust das jubd gewachsen und auf dem fensterbrett
liegt eine unbewegliche dass sie vor müdigkeit
[zusammenbrach
sie liegt si friedlich da als müsse sie von neuem beginnen
aber wenn man sich nähert its es keine fliege mehr
sondern ein winziger sengel mit gebrochenen flügeln
und man wei ß nicht ob er schläft
medusa
es gibt nichts was kein labyrinth ist
vom wiedertreffen eines jugendfreunds
nach vielnj jahren
bis hin zum gefangensein im aufzug eines hochhauses
vom undurchshaubaren blick von jemandem dem ich
am meisten vertraue
bis hin zum hören meines namens augesprochen von
[demjenigen den ich so sehr lieb
ob asphalt oder berg
ob meer oder flu ß
ob himmel oder brücke
ob zeit oder zeitung
gestern oder geste
spiegel oder spiel
ob moderne haustellen
oder einehandvoll erde
es gibt nichts was kein labyrinth ist
auBen oder in mir drinnen
und perseus habe ich durch
meine resignation und verlassenheit
durch meinen eigenen mut
in den spiegsel zu schauen
TEXTOS EM PORTUGUÊS
o dilema de um anjo I
as rugas do mundo aprofundam a dúvida
progredimos com a tecnologia
e seguimos a passos de tartaruga a caminho da paz e da justiça
[social
há sempre uma guerra em alguma parte do planetas e fingimos
[não ser perto de nós
eu precisaria muito olhar o mar
e não o jornal flutuar meus olhos em seu azul e movimento
e deixar as roupas no varal e o vento morno soprando
reparar no ruído dos insetos na indolência da tarde
e que tenho a dizer?
a melhor coisa do dia hoje excluindo uma rápida chuva
que lavou a poeira dos muros for ler um poema de Tanikawa
[Shuntaro
dedicado a um desenho de Paul Klee que dizia algo como
um anjo que chegou de um segundo mundo ao lado deste
arrastou-se pelos séculos e estava tão magro fino
como um risco precisava voar porque suas asas foram
um presente dos homens precisava voar mesmo como
um drosófila vive por um dia e ansiava como água
uma ínfima gota de alegria
o que eu tenho a dizer?
eu que nem asas tenho!
O dilema de um anjo II
contemplar a chuva de encontro à janela e pensar
“cerca de dois bilhões de pessoas não têm acesso à água potável”
e lá estava uma criança e acreditava que a luz era de todos
o vento era de todos a água era de todos a terra era de todos
as estrelas eram de todos as plantas as ervas que contém
[sementes
as árvores frutíferas eram de todos
no princípio Deus criou os céus e a terra
ele poderia vende-las uma vez que é o dono
das correntezas azuis onde as nuvens navegam
do coração das montanhas que pulsa alto
dos jardins de cassiopeias do punhado de terra
escura do universo onde brotam planetas redondos
do fogo cuspido pela lapela do vento
sopro das cores na boca da luz de cada semente
de chuva caída na pele dos ladrilhos
de todas as fontes que nascem do olho da terra
mas para que tais indagações se conhecemos a resposta?
“cerca de dois bilhões de pessoas não têm acesso à agua
[potável”
e lá estava uma criança e acreditava que os dedos das
[árvores
se agarravam na terra como as raízes das espumas
nas oscilantes ondas do mar
que as tranças das águas cingiriam as escamas da morte seca
hoje a criança cresceu e o parapeito da janela
carrega uma mosca inerte
lutou tanto contra o incompreensível que caiu de cansaço
está ali tão em paz como se tivesse que recomeçar
aproximando-se não é mais uma mosca
é um minúsculo anjo com as asas quebradas
e não se sabe se dorme
medusa
não há nada que não seja um labirinto
desde o reencontro com um amigo de infância
após muitos anos
a ficar preso no elevador de um edifício
desde o ínvio olhar de quem mais confio
a ouvir o meu nome dito por quem tanto amo
seja asfalto ou montanhaa
seja mar ou rio
seja céu ou ponte
seja tempo ou jornal
seja ontem ou gesto
espelho ou brincadeira
seja as construções modernas
ou um punhado de terra
não há nada que não seja um labirinto
fora ou dentro de mim
e perseus eu matei
com a minha indiferença
com a minha resignação e abandono
com a minha própria coragem
de me olhar no espelho
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/sao_paulo.html
Página publicada em dezembro de 2023
Página publicada em maio de 2014
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