VIVIANE DE SANTANA PAUL0 & FLORIANO MARTINS
Viviane de Santana Paulo (Brasil, 1966). Poeta e ensaísta, residente na Alemanha. Publicou Passeio ao longo do Reno (2002), Estrangeiro de mim (2005), Depois do canto do gurinhatã (2010) e Abismanto (com Floriano Martins, 2012).
Veja também: VIVIANE DE SANTANA PAULO – mais poemas
Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor, residente no Brasil. Autor de muitos livros de poesia, antologias, ensaios, etc. Diretor da revista Agulha Revista ade Cultura, na web.
PAULO, Viviane de Santana; MARTINS, Floriano. Em silêncio. Fortaleza, CE: ARC Edições, 2014. 99 p. 14x21 cm. Projeto gráfico: Márcio Simões. Capa: foto de Floriano Martins. Fotografia interna: “Porão do coração” de Cláudia Horta. Fotografia de Floriano Martins: por Bea Saboia. Tiragem: 300 exs. Escrito através de uma troca pela internet, ele em Fortaleza e ela em Berlim, “uma ousada aliança, a de criar um mundo poético baseado na alteridade, na troca de humores, em um jogo entranhável em que embaralham os sentidos”. Ex. col. Antonio Miranda.
FALHANDRAS
um a um os objetos foram desaprendendo suas formas
compondo um esqueleto invisível em que novas sombras se
traduzem
o vento intimida a ideia que fazemos do tempo
tudo dentro da casa se esgueira como se
tateasse outro mapa de enredos
nada mais se reconhece como a composição do lugar
eu mesmo sou estrangeiro buscando entender esta nova
cartografia
e fugir deste interior limítrofe procurando minhas
fronteiras
minha falange no meio do dia das pessoas do trabalho
da família descobrir as falhas que me acertam
que me dirimem que me denegam que me refazem
as falhas que carrego e as que colho no equívoco do jogo
das cenas das quais faço parte e das
outras que me apresentam
em palcos improvisados na fímbria das tragédias íntimas
as sobras do lar a memória desfolhada o baile de
fantasmas
louças esvoaçantes que atuam como bailarinas loucas
o armário desabando em conflitos
o instinto desfiando antigas visões por cómodos que se
multiplicam
trama de portas que sussurram ao ritmo convulsivo das
luzes
parentes mortos solidão destroçada por mais solidão
meu corpo tropeçando na falta que sente de tudo
este corpo estrangeiro que não reconhece o vazio de sua
nova morada
e desespera ao encontrar janelas fora de lugar com
paisagens que nunca estiveram aqui
SUSPIRANÇA
jamais soube que nome dar à vegetação do silêncio
estendida diante de si permitindo que o caminho ao mar
lhe oferecesse uma provável resposta
por vezes rabiscava na areia umas primeiras tentativas de
esquecer o tempo
e o tempo se expandia sob suas pegadas acesas
o nome que pretendia escrever não cabia na areia gotejava
solidão das letras desencontradas
como insetos que houvessem perdido as asas
vaga-lumes sem rumo apagados como segredos no
azinhavre das tentativas que vêm e vão
segredos esquecidos na ferrugem dos pêndulos jamais
soube lidar com a imensidão da folhagem que recolhia
como uma relíquia
e a transformava em imprevisível queda no salto do louva-
a-deus no instante do perigo
atingir o desconhecido repentino as ciladas que os anseios
iminentes criam
conforme o avanço incerto de cada um de nós jamais
soube lidar
com a linguagem da névoa nas primeiras palavras do
amanhecer
na qual o tempo lhe recalcava como um nome na areia
breve mas por um momento infenso às línguas
ininterruptas do silêncio e do efémero
nada poderia fazer pelas luzes queimadas em seu íntimo
nem mesmo mudando o tempo dos verbos sangrando
antes da ferida soluçando sem motivo
aparente saltando da ponte antes de sua construção
a memória queima em cima do telhado sem saber como
descer
AMANAJÉ
tudo isto aconteceu há muitos anos quando ainda vivias
dentro de mim sem que eu soubesse quantos um
dia chegarias a ser
as tuas primeiras formas eram tão diferentes que eu não
saberia
como povoá-las eu simplesmente deixei que fosses
mudando e mudando até um ponto
em que não restasse mais nada teu no jorro de cada
expressão
e o silêncio hircípede farejasse as fissuras das letras
a inflorescência dos cactos o silêncio
caçando as mínimas histórias germinadas dos olhares
e gestos agrestes espalhados junco modesto no campo do
silabário
tu te refaz como a calda da lagartixa as cabeças de hidra
do nada cresce de novo os dizeres móveis nas dunas
e nas porções no meio do prato onde te alimentas dos
erros
que não pudeste cometer oh pedra errante dos sentidos
oh pavio intumescido do abismo quimera repleta
de acidentes indecifráveis tudo isso proliferou
como a relíquia deformada de um mundo impossível
que fomos arrancando de nós como tumores
e livres dos buracos colhemos as luzes com as nossas mãos
e simplesmente fomos dali sem mais nada a dizer
Página publicada em maio de 2014
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