VAMPIROS
Asas de vampiro que morcegais
docemente meus negros ais,
vós, juntos, os dentes jamais
libertaram minh’alma da amargura,
o meu coração, a selva escura
em que ele vive. Sei que dura
pouco sermos, assim, humanos,
mas não é com o passar dos anos
que se apagam vozes e desenganos.
O consolo vem do verso antigo,
que me lambe como um cão amigo
e parece querer dialogar comigo.
Ainda bem há cães e morcegos,
uns velam-me os sonhos e os sossegos,
outros são inimigos: alados e cegos.
ETERNIDADE
Passem os anos, os dias, os minutos,
os segundos, os terceiros, os quartos,
cães, poetas, reis, madres e putos,
os planetas de gelo, lavas e quartzos.
Passem milagres de cristos, os escorbutos,
que limparam e mancharam os corpos fartos
de tanto pecar, comer, lançar eructos
na mesa redonda para mortes e partos.
Passem as paixões, as artes, os esconjuros,
e fique no pó dos incunábulos, lácteo,
apenas o pacto das promessas e dos juros
eternos, assim como o inferno e o látego.
Para todos os hojes, sempres e futuros,
a eternidade espera a ordem: “mateo-o”.
INFINITO
Algo que fosse essencial e íntimo,
o âmago, o cerne, a medula:
o sidéreo campo, imenso e ínfimo.
Filósofo que cria e especula
o sentir e os saberes, lídimo
representante do Gênio e da Azêmola.
Uns riem e dançam, acompanham o ritmo
do Teatro do Mundo, onde espetacula
a trupe de anões, sacristãos e cambonos.
Outros lêem Nobre e Anjos, Só e Eu,
feitos de ácido amniótico e carbonos.
Infinita ascese, recolhido gineceu,
mantido com drágeas e sonos,
espaço uterino sem o meu e o seu.
LOUCURA
O pão que o diabo amassou também se come,
nem tudo é hóstia, carne ou peixe;
o jejum alegra o faquir sempre que deixe
em suas entranhas o frenesi da fome;
quando seu corpo se torna um magro feixe
de ossos, uma louca vertigem consome
o sonho que vem e volta, vai e some,
sem que o peripatético quixote se queixe
do seu destino de cavaleiro andante.
O farnel é parco, a utopia é farta,
as visões simbólicas são as de Dante.
Na viagem, sem astrolábio ou carta,
o que era depois passa a ser antes
e o naipe do desvario não se descarta.
ANGÚSTIA
A floresta que na sibéria arde,
combustão expontânea, lenta agonia,
é o carvão com que escreve kirkegaard
a página cotidiana que vangloria
a vitória do sol negro, naquela tarde,
em que a angústia veio, e ele não sabia.
Veio do pó, pé ante pé, sem alarde,
e apagou o texto que se imprimia
no livro noruego. Os necrológios,
últimos remorsos e quimeras,
revertem as hastes de vãos relógios,
buscando as frias, subterrâneas eras,
onde estão guardados os despojos
que resistiram ao sortilégio e às feras.]
De
Cláudio Murilo Leal
As guerras púnicas.
Prefácio de Carlos Nejar.
São Paulo: Massao Ohno Editor, 1990.
111 p. Capa de Arcâgelo Ianelli.
SONETO ATLÂNTICO
A vulva de mar que me envolve,
válvula maré que mexe e goza,
leva meu sémen limpo e devolve
detritos de água ferruginosa.
No ventre atlântico se dissolve
o ritmo vai-e-vem de nossas vidas,
amor que sempre foge e sempre volve
às mesmas chegadas e partidas.
Beber, beber, beber, fel oceânico,
em meu corpo de volúpia e pânico,
sorver tuas espumas de ressaca.
Onda. Linfa. Aquática hemorragia.
Engolfas meu corpo, suja baía:
e sou o braço de mar que te ataca.
CORPO E ALMA
Como uma pevide,
áspera matéria.
Mas seu duplo é luz,
forma única e etérea.
O corpo vai tranquilo,
a alma com medo.
Um terá seu asilo
a outra o segredo.
Incógnito cemitério
dúvida de fogo e céu.
Sou aquele que vai.
O que fica: sou eu?
POETA, CANTA
O poema é ócio?
Perdida e puma
Em mar no cio?
Ou será alguma
Flor inodora,
Sonho, fastio?
Ou será agora
A fome e o frio?
Poeta, canta
O estrito mundo
Que te espanta,
Mesmo imundo.
O poema hoje
É guerra e grito.
Prepara na forja
Um canto infinito.
De
Cláudio Murilo Leal
13 bilhetes suicidas. 2 ed.
Rio de Janeiro: Batel, 2009.
47 p. ilus. ISBN978-85-99508-15-2
“De um ponto de vista estritamente formal ou mesmo estilístico, os 13 bilhetes relevam por sua economia e concisão seja do prisma da linguagem, seja do ângulo das imagens e metáforas, às quais o autor recorre com notável parcimônia e senso de propriedade. Não há sobra nem abuso nesses poemas que se pretendem, acima de tudo, austeros e talvez algo lacônicos.” IVAN JUNQUEIRA
I
Riscar o fósforo:
o banho de gasolina
sob chuveiro fatal.
Recordar a palavra,
flor de espinhos preservada
entre recibos e entradas
de teatro.
Recordar o exato momento
quando o telefone tocou
o minuto estagnado
sem ponteiros no relógio.
Ninguém impede
a mão que acende o fogo;.
Depois, a notícia no jornal.
II
O áspero fio da faca
não serve
para os seus desígnios.
Será gilete, estilete,
o frio das agulhas.
Resgatar com o suicídio
a palavra de cânfora
que oxidou todos os sóis
da infância.
É preciso executar
o rito terminal.
A luz, a lâmina,
nuvens sonolentas de mercúrio,
a pia, a privada, o bidê,
a banheira ensanguentada.
(...)
Os 13 bilhetes de Cláudio Murilo Leal formam um continuum dramático, dilacerante, numa economia de palavras contradizendo a vertiginosa profusão de imagens e sensações que levam o leitor ao (próprio) suicídio. Emocionante. Quem não suicidou alguma vez?” ANTONIO MIRANDA
De
Cláudio Murilo Leal
MÓDULOS
Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. 299 p
20 de abril
No princípio, a vida, o pólen,
espermatozóides kamikazes,
corações ao alto, orai, orai.
Aqui, no asfalto, as fezes.
Renascer das cinzas, da droga,
dos chopes elétricos, fénix.
Sair desse hospício, da noite,
sol em catarse, em zênit.
Ver a luz, a folha, Sábado
de Aleluia, céu ( vermelho).
Subir como um zeppelin,
longe do alcance das baterias
antiaéreas. A vida: primavera.
Gérmens, bactérias, genes
embalsamam o Corpo.
Vida morta
Alameda sem fim,
beco sem saída,
caminho de mim a mim
mas não descubro a vida.
Apesar de querer, não consigo,
o presente já é passado
e nunca encontro comigo
na esquina, no espelho quebrado.
Se fujo, carrego-me junto,
se enfrento, me abandono,
a ficção não serve de assunto,
a realidade morre de sono.
De
Cláudio Murilo Leal
Cinelândia
Rio de Janeiro: Sette Letras, 2002. 61 p.
De Antonio Miranda para Cláudio Murilo Leal:
a Cinelândia foi também o cenário de boa parte de minha juventude. Antes e depois da demolição do Monroe, e de minhas crenças e convicções políticas... Comecei meus estudos universitários nos porões da Biblioteca Nacional e voltei a ela, na condição de assessor, depois de andar, tal como você, meu caro poeta, por muitos países. Antes de recolher-me, uma vez mais, nas alturas planaltinas de Brasília.
Agradeço o envio de seus livros, e celebro esta peça onírica e memorialista, entre verdades e invenções, com personagens que assistimos nos escombros. E aqui vai um fragmento de seu livro para os nossos internautas:
GRAN FINALE
O dia vinha chegando ao seu ocaso de cores,
a púrpura do sol em tons de aquarela
se esvaía, como veias abertas, nas dores
das lâminas rubras e amarelas.
Os cadáveres desafiavam a eternidade,
esperando que alguém viesse recolhê-los.
Fevereiro incendiava o vento
que fustigava as fantasias, as armas, os cabelos
ensanguentados dos pretendentes.
Memento moris.
Alguns foliões vão se aproximando
e espiam, curiosos, pela porta,
enquanto os ritmistas estão chorando,
despedindo-se da quarta-feira morta.
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TEXTO EN ESPAÑOL
LLANTO POR MI PATRIA
Traducción de Saúl Ibargoyen
y Jorge Boccanera
Tierra del apocalipsis,
almas calcinadas,
venas abiertas y desesperación,
aliento perdido en los caminos,
Noches negras y niebla
de los días deshechos.
¿Dónde está la luz,
los cielos luminosos?
Sólo te resia sufrir
mi país desvaiido,
Y a los poetas les resta el canto
estéril, la queja inútil.
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EN FRANÇAIS
LEAL, Cláudio Murilo. Reflets. Traduits par Yves Gervaise. Rio de Janeiro: Antares, s.d. 33 p. 14x21 cn, Edição bilíngue português – français.
(TELE)SPECTATEUR
Je ne vis pas dans une tour d'ivoire, élevant
des oiseaux chanteurs ou des scarabées.
Mais je n'ai pas non plus d'arme à feu,
seulement l'arme blanche du papier.
Je contemple des batailles sur des photos de journaux,
le monde explose, les hommes s'assassinent
dans le vidéo en couleurs, vallée de larmes:
tout est fiché pour l'Apocalypse.
J'écris, j'efface, je rature sur la feuille muette,
le bras impuissant pour le mot Paix.
Je regarde, je scrute; j'imagine alors des astres
inhabités, au paysage solitaire, gelé,
désert, et je subis de lugubres pensées.
Je déesir l'ivoire froid de la lune. Loin.
(TELE) ESPECTADOR
Não vivo em torre de marfim , criando
pássaros canoros ou escaravelhos.
Mas também não tenho arma de fogo,
somente a arma branca do papel.
Contemplo batalhas em fotografia de jornal,
o mundo explode, os homens se assassinam
no vídeo colorido, vale de lágrimas:
tudo documentado para o Apocalipse.
Escrevo , risco , rabisco a calada folha,
o braço impotente para a palavra Paz.
Miro, perscruto; imagino então astros
desabitados, de paisagem erma, gélida,
desértica , e sofro lúgubres pensamentos.
Anseio pelo frio marfim da lua. Longe.
RECHERCHE
Le stalactite
pleure
une goutte
tous les mille ans.
Cherche son antipode
le stalagmite
qui croît
un millimètre
tous les mille ans.
Des années lumières les séparent
dans l'obscurité
de cette grotte
perdue
dans la préhistoire.
Le dévoué stalactite
le patient
stalagmite
un jour (nuit)
se rencontreront.
PROCURA
A estalactite
chora
uma gota
a cada mil anos.
Busca sua antípoda
estalagmite
que cresce
um milímetro
a cada mil anos.
Anos-luz as distanciam
no escuro
desta cave
perdida
na pré-história.
A abnegada estalactite
a paciente
estalagmite
um dia (noite)
se encontrarão.
A HERACLITE
Oh Tamise, oh Pomba
en quels extrêmes
ma vie s'enfuit.
Il s'écoule, hier,
eaux et macules meuvent
le moulin. Aujourd'hui.
Nous ne sommes qu'une fois.
Songes non réalisés.
Après: se répète le Néant.
A HERÁCLITO
Ó Thames, ó rio Pomba
em que extremos
minha vida esvai.
Flui ontem,
águas e máculas movem
o moinho. Hoje.
Só uma vez somos.
Sonhos irrealizados.
Depois: repete-se o Nada,
SEANCE 1
Mon père me battait
ma mère jetait des fleurs sur ma sépulture
ma soeur souffrait
je courrais, courrais, courrais.
Le paysage n'étais pas au bout:
il était dedans, la rue, mon monde.
Cavaliers et cow-boys de mon âge
je les fouettais
et les tuais
et poussais des cris de victoire.
Mon coeur était sans fiel
mais mon père me battait
et moi aussi je frappais,
frappais, frappais.
SESSÃO I
Meu pai me batia
minha mãe jogava flores sobre a minha sepultura
minha irmã sofria
eu corria , corria , corria.
A paisagem não era ao fundo:
era dentro , a rua , o meu mundo.
Cavaleiros e cow-boys de minha idade
eu açoitava
e matava
e urrava gritos de vitória.
Meu coração era sem fel
mas meu pai me batia
e eu também batia
batia, batia.
Página ampliada por Sebastião Sousa e republicada em abril 2008; novamente ampliada em setembro de 2008; ampliada e republicada em setembro de 2009; ampliada e republicada em setembro 2011. aMPLIADA E REPUBLICADA EM JAN. 2013.