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AS ABSTRUSAS PALAVRAS DE MANUEL BANDEIRA,

por Cláudio Murilo Leal

 

Em ariesphinx, soto-ponho
          
MANUEL BANDEIRA

 

Extraído de

 

POESIA SEMPRE – Ano 5 – Número 8 – Junho 1997. Revista semestral de poesia.  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional de Livro.  Editor Geral: Antonio Carlos Secchin.  Ex. bibl. Antonio Miranda.

 

    A poesia se faz com palavras, disse Mallarmé. Mas que palavras? As abstrusas palavras de um Augusto dos Anjos ou as domésticas palavras do cotidiano? Mallarmé, em sua turris ebúrnea, imprimia nos platôs da sublimidade vocábulos como azur, récif, étoile, hasard. João Cabral de Melo Neto legitima o direito de a palavra fezes integrar o poema. Manuel Bandeira, poeta lírico que escreveu num estilo despojado de excessos retóricos, paradoxalmente deu guarida a frumento, vulgívaga, Pasárgada, protonotária, caroável.

 

   Em sua fase pós-parnaso-simbolista (período esteticamente difuso e eclético do sincretismo pré-modernista) Bandeira escreve, ainda sem as rupturas da Semana de Arte Moderna, palavras e sintagmas que cairiam em desgraça depois de 1922: miríades, desassisadas, roubaste-mas, branqueja, ebúrnea, sevícias, licorne, alvinitente. Já em Libertinagem (1930) o poeta vai encontrando a sua peculiar dicção coloquial, num estilo simples mas não simplório. Neste livro, aparecem poemas-crônicas, instantâneos da poesia do dia-a-dia que se tornaram a marca registrada de Bandeira, como "Pensão familiar", "Camelôs", "Porquinho-da-índia", "Poema tirado de uma notícia de jornal", "Andorinha" etc...

Com raras exceções, uma delas a dos sonetos neoclássicos do final de sua vida — "Mal sem mudança" e "Sonho branco"—, o poeta mantém, ao longo de sua obra, um compromisso com o cenário e os pequenos alumbramentos do cotidiano, ao lado de um ouvido sempre atento para os registros da oralidade e uma fina ironia que se revela ao permitir, em muitos de seus versos, a contaminação de rasgos estilísticos da prosa.

 

   A consequência dessa estética do prosaico, adotada pela maioria dos poetas modernistas, foi a banalização formal do poema, rebaixando-o à condição de discurso não-artístico, isto é, um discurso sem originalidade, indiferenciado, sem qualquer tensão entre as palavras, onde predominam o lugar-comum e o déjà écrit.

 

   Para compensar um possível mimetismo verbal, produzido pelo jogo especular em relação a outras dicções que não a da poesia, como a do jornalismo, da piada ou da publicidade, Bandeira apela para o fenómeno do estranhamento, como elemento perturbador da linguagem vulgarizada. Introduzir abstrusas palavras no harmonioso universo linguístico do poema é um truque verbal para produzir no leitor o sobressalto da novidade.

 

   Que palavras são essas e quais as suas características? Algumas são palavras em desuso, poeticamente anacrónicas, datadas por suas vinculações com escolas literárias do passado, mas reutilizadas num contexto moderno. Em "Noturno do morro do Encanto" (1953)  encontramos sitibundo, miserando.

 

   A leitura de um poeta do passado exige o conhecimento dos cânones que determinara a produção do poema. Assim, não há impropriedade para um poeta parnasiano usar, por exemplo, palavras como abrolhos e paul (Bandeira usa escolhos em "Um sorriso"). Quando a rima era obrigatória, os poetas precisavam encontrar, a todo custo, correspondentes para olhos e azul.

 

   Ao apreciarmos um quadro de Velázquez ou um automóvel de 1920, é necessário olhá-los relacionalmente, em seu contexto de passado e em sua permanência no presente (sua eternização). O leitor de Manuel Bandeira, psicologicamente preparado para ler um poeta modernista, se surpreenderá com os vocábulos que aparecem nos versos:

 

 

Ó esquizóide! Ó leptossômica! ("Última canção do beco")

 

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável) ("
Consoada")

Antônia morava numa casa que para mim não era casa, era um empíreo. ("Antônia")

Essa doçura, esse mortal derriço... ("Ad instar Delphini")

E passada a sazão das rosas,
Tudo é vil, tudo é sáfio, árduo. ("
Poema do mais triste maio")

 

   Todos esses versos são de poemas escritos após a revolução modernista, portanto causam espanto sazão e sáfio. No entanto, quem reconhece a existência de uma impregnação camoniana na última fase de Bandeira justificará empíreo e derriço. O poeta não se intimida em incluir, no vocabulário coloquial modernista, palavras eruditas ou raras, além de outras, de baixa voltagem poética, como volutabro, no poema "A ceia".

 

   Não é exatamente o que ocorre com as palavras empregadas pelo poeta em seu livro Carnaval, publicado em 1919, antes da Semana de Arte Moderna, portanto quando Bandeira ainda não havia encontrado a sua verdadeira, moderna voz. Em "Pierrete", na terceira estrofe: "Génios caprípedes e broncos / Estupram virgens hamadríades"; na quinta estrofe: "O sexo obsidente alucina"; e na última:  "a lua verte como uma âmbula".

 

   É possível que as abstrusas palavras tenham a função de despertar o leitor sonolento que se deixa embalar por um tipo de poema que, pela sonoridade e ritmo de seus versos, escoa monotonamente através de uma hipnótica leitura. Nessa espécie de viagem sonora, o leitor é seduzido pela voz encantatória de uma poesia-sereia de acentos simbolistas. Sintagmas como curvas cicloidais ou jactos fumigatórios (em "Noturno da rua da Lapa") desempenham o papel de obstáculos que rompem o natural fluir do verso. Na fase pré-modernista de Bandeira detecta-se a eleição de um certo léxico que não chega ao poema por via popular, mas pode ser considerado com lugar-comum da poética dita passadista. Por exemplo: bátega (em "Enquanto a chuva cai") ou roreja (em "Inscrição").

 

   Por outro lado, num trabalho intertextual, Bandeira "desentranha" poemas de outros discursos, científicos ou jornalísticos, que servem como matriz para uma reciclagem poética. "Astéria" leva a indicação: "poema desentranhado de um estudo do Dr. Júlio Novais". Integrante do livro Mafuá do malungo, esse poema segue o estatuto dos versos de circunstância, em que a inspiração se subordina à existência de um acontecimento, de uma homenagem, de um brinde (hommageou toast, de Mallarmé). Na apropriação do texto do dr. Júlio, trata-se do reconhecimento das qualidades poéticas intrínsecas de um relatório de astronomia. Assim, as científicas palavras, descontextualizadas, tornam-se insólitas peças na montagem do poema. Bandeira, ao posicionar-se como mero escriba, encarregado de transpor as belezas da prosa científica para o poema, inicia-o, esclarecendo: "O Mestre me ensinou."

 

   A criatividade de Manuel Bandeira se concretiza através de um trabalho de bricolage em que a sensibilidade profissional do poeta garimpa, recorta e monta o poema, apropriando-se de frases e palavras do texto primitivo e seminal. Eis o poema:

 

 

O Mestre me ensinou;

 

                   Fáculas nitentes
                   Como metal luzidio
                   Bordam as manchas
                   — Abismos de remoinho eletromagnéticos
                   A verrumar a espessura solar.
                   Massas de nuvens
                   Em colunatas coesas de fímbrias froculares
                   Atestam lá longe a despesa ignescente da estrela
                   Um vómito de suas ondas
                   Despedidas e soltas
.

 

 

O oceano celeste
Outrora tido por oco
Está cheio dessas como lavas vulcânicas
Pairando invisíveis no cosmos
E eu as detecto no meu registro natural e inédito
— O esqueleto e modelo exterior do corpo radiário de Astéria
.

 

   Já em "Poema tirado de uma notícia de jornal" o poeta se vale da mesma técnica intertextual, mas, nesse caso, o fascínio pela linguagem jornalística foi o motivo deflagrador do poema. A título de curiosidade, podemos citar, nessa mesma linha, "Poema desentranhado de uma prosa de Augusto Frederico Schmidt", cujo ritmo bíblico, de versículos de largo hausto e um lirismo nostálgico, atraíram Bandeira nessa homenagem poundiana à poesia de Schmidt.

 

   A ironia que envolve o poema "Pneumotórax" ameniza a intratabilidade do termo, impossível de dissociar de sua origem médica. "Pneumotórax" integra o glossário das abstrusas palavras pela sua estranheza fônica, já revelada de chofre no título e, depois, no final do poema, simbolizando a inútil última esperança do poeta em curar-se antes de ser-lhe receitado um tango argentino.

 

   É possível que a intromissão, em muitos poemas de Bandeira, de desestabilizadoras palavras (como protonotária, caroável ou vulgívaga) esteja autorizada, explicitamente, em sua "Poética": "Abaixo os puristas / Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais." Os puristas poderiam ser identificados com os gramáticos lusófilos ou poetas parnasianos, cujos tratados e poéticas (como os de Bilac e Guimarães Passos) impunham uma rigidez em todos os sentidos: gramatical, temática e de construção formal do poema. Mas é preciso não esquecer a outra ponta do símile: os puristas. Os poetas simbolistas propugnavam por uma pureza de linguagem. Pretenderam criar poemas ascéticos e assépticos que não deveriam ser contaminados por palavras que não refletissem um ideal superior de beleza.

 

   As palavras mal sonantes ou de baixa extração eram expurgadas do rarefeito ar respirado nos poemas de um Verlaine ou de um Alphonsus de Guimaraens. Uma outra palavra, título de poema, de voluptuosas ressonâncias é vulgívaga. Seu significado é simplesmente o de meretriz. Em outro poema "A dama branca" a palavra é repetida nos versos: "A Dama tinha caprichos físicos: / Era uma estranha vulgívaga." Quem escutou Bandeira em disco, recitando "Vulgívaga", percebe o clima de patética emoção que a palavra introduz desde o início do poema. Ao lado da garimpagem de exóticas palavras, Bandeira acrescenta neologismos de sua lavra: "inventei, por exemplo, o verbo teadorar," confessa marotamente.

 

  Em "Poema para Santa Rosa," Bandeira dá indícios de um dos motivos que o levam a salpicar seus versos com abstrusas palavras: o aproveitamento de um substrato comprometido com a ironia. Ao escolher protonotária como a palavra vedete deste poema, Bandeira dá algumas deixas para o leitor. Primeiro, o prazer que o poeta desfruta ao descobrir e utilizar palavras de uma conformação peculiar. Bandeira afirma, textualmente, no poema: "Gosto de protonotária." É o poeta fascinado pela palavra-fetiche. Protonotária...protonotária... Segundo, é o elemento surpresa que pega o leitor, de repente, gerando um clima de novidade. Como disse o próprio Bandeira também no poema: "eu mesmo já escrevi: Pousa a minha mão na testa."

 

   E Raimundo Correia: "Pousa aqui, pousa ali, etc." É pouso demais. Basta Pouso Alto. Com tanto pousa e Pouso era necessário buscar uma novidade para contrabalançar. Melhor ainda, uma antiga novidade, resgatada do olvido, atribuindo-lhe um aspecto inusitado: protonotária.

 

   Finalmente, o poeta, utilizando palavras não correntes e de obscuro significado, despertará no leitor o desejo de procurá-las no dicionário. O poeta alegra-se ao prelibar o momento em que a outra pessoa perguntará: " O que é protonotária?" E ele:


 

Responderei:


— Protonotária é o dignitário da Cúria Romana que expede, nas grandes causas, os atos que os simples notários apostólicos
expedem nas pequenas.

 

   E o contraste da exclamação: " — Será o Benedito?"

 

   A História, o passado são fontes de inspiração e de renovação. Pasárgada transpôs as fronteiras da literatura para se tornar um signo de utopia amplamente reconhecido pelo imaginário popular. "Vou-me embora pra Pasárgada"... a fuga para um lugar paradisíaco, onde os nossos desejos tornam-se realidade. Em Pasárgada, seremos poderosos, irresistíveis... "sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei."

   Aqui o poeta não é feliz, nem ninguém. "Pasárgada tem tudo / É outra civilização." Quem quiser saber onde fica Pasárgada pode recorrer ao Itinerário:

 

 

Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropédia e não encontrei a passagem (...) Esse nome de Pasárgada, que significa "campo dos persas" ou "tesouro dos persas," suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias, como o de L´invitation au voyage de Baudelaire. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só, na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: "Vou-me embora pra Pasárgada."

 

   Um grito estapafúrdio escapa do inconsciente e se verbaliza em abstrusa palavra. Mas, na poesia de Manuel Bandeira, todas as palavras têm entrada franca. Como a preta e boa Irene, não precisam pedir licença ao gosto do crítico, à lógica do gramático, às teorias dos professores de poética. As palavras vão entrando no poema, à espera da rejeição ou da consagração do leitor.

 

 

 

Página publicada em março de 2018


 

 

 
 
 
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