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FLORISVALDO MATTOS
Nasceu no Município de Ilhéus, Bahia, a 8 de abril de 1932. Cursou o ginásio na cidade de Itabuna. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade da Bahia em 1958, onde integrou a equipe de redação da revista Ângulos, durante três anos. Participou do grupo literário que publicava a revista Mapa, em 1957-58.
Reside em Salvador onde foi chefe de Redação do "Diário de Notícias" e correspondente do "Jornal do Brasil". Membro da Academia de Letras da Bahia.
VEJA POEMA ILUSTRADO de FLORISVALDO MATTOS em 4 POETAS 4 GRAVADORES
AGROTEMPO
Há poentes: aves renascemos
armaduras cintilam aço e escamas.
Outono muge de elmos reluzente.
Abril (diurno algoz) que somos nós?
Sob desfraldados relhos dorsos tesos.
Metais fuzilam. Descem das narinas
herança e gelo de armas latifúndio
raízes da memória rastros velhos
presença de chão rútilo meus sóis
ultramarinos. Aéreos potros puxam
meus avós: galope surdo anterior.
REINO.
Cavaleiros de retorno sofrem
súbita lança dos meses contra
limo das equipagens. São
cavaleiros em fogo rodeados
de fúria, ancoram sombra e
cúpulas. Não
dormem, nem olho nem aparições.
Nem elmos cruzados. Ó nuvem
de remota poeira já meus deuses
singram de rio leito calcário.
Há ferrugem: goteja dos escudos
hora-incêndio das três. Garcia D'Ávila
madruga em caracóis, amadurece
BOINVIO transmudado agricultor
refúgio de evidências perseguidas.
Um pouco vem do mal. Do outro lado
perde-se acontecido sem mudanças
gira escasso pensar embrutecido.
Tantas pedras arrasto, tanto sono.
Feudo, casa plural do Ávila, FEUDO.
(Extraído da antologia A NOVÍSSIMA POESIA BRASILEIRA. Seleção de Valmir Ayala. Rio de Janeiro: 1962. (Série Cadernos Brasileiros, 2)
Passos e acenos
Nada tens de ave. Fera lúcida, olho
felino (pantera de Rilke entre grades)
nunca indefesa, à espreita. Além dos olhos,
bebo teu corpo, teu cabelo (franja
dos dias) — o mais dardeja. Também és
elástica e macia: braços, pernas
de roliça cogitação. Vais, vens.
De pé, agitas os vaporosos membros,
ao calor da voz que atordoa o vento.
Sentada, as formas se acomodam, urdem
rútilo desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do sexo, ávido. Bem
que mereço essa onda, ronda de garras
que me acenam, me buscam pela tarde.
In Galope Amarelo e Outros Poemas Edições Cidade da Bahia/ Fundação Gregório de Mattos Salvador, 2001
Sistema agrário
Meu canto gravado de um saber oculto de águas
esquecidas fabricarei no campo com suor
de rudes trabalhadores, na chuva sepultando-se
de búzios pontuais, lamentos e desgraças.
Forçosamente rústico caindo sobre troncos,
pelo ar, compacto de húmus e branco vinho caindo
sobre plantações. Sobre homens caindo. Não os sei
com metralhadoras e mortes pesadas flutuando
em suas mãos calosas de sonho e agricultura.
Senão com amargo clamor ao meio-dia, quando
com rijas ferraduras rubro sol golpeia-lhes
decisivo o tórax sombrio. De sangue a sua
permanência rural de árvore e vento.
Materiais e diários, continuamente os vejo
por frios vales e serras recolhendo incertezas
e dores unânimes, pontes que lhes pesam úmidas,
como rios perduráveis, sobre o rosto seguro (banhados
tão por cinzentos rios, girassóis destroçados
vigiando rebanhos e metais decadentes
revisando no tempo em sonora aliança), como
estranhas biografias e equipagens
de passados cavaleiros, em derrota.
Impossuídas colheitas vão durando,
como denso muro de sono cicatrizado
em seu corpo amanhecido sobre a terra, que
pensamentos cruéis e sombras apunhalam.
Meu canto fabricarei com lágrimas e suor
subterrâneo de músculos e ferramentas
Maduram no verde dos cacauais suas asas telúricas.
Nas semeaduras, sob tempestade, reside no solo
seu mecanismo de luta e existência
de incessante labor camponês. Agrário sempre.
Suas armas essenciais, sua geometria agreste
hão de impregnar-se necessárias de úmidas
paisagens agrícolas de horror precipitando-se
sobre homens em silêncio nas estradas pacíficas.
Eles que sonhavam com instrumentos longínquos
terão na cabeça, rugindo sempre uma voz de ameaça,
quando a seus pés um ruído grosso de sacrifícios
vai sua boca de amor sem pão revolucionando.
MATTOS, Florisvaldo. Mares Anoitecidos (Transações e desdita do Sig. Flamminco, em baía de sal e sol, com forma de útero — e outros inéditos). Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia/ Imago, 120 p. (Bahia: Prosa e Verso - 500 anos de Brasil) 14x20,5 cm. ISBN 85-312-0713-4 “ Florisvaldo Mattos “ Ex. bibl. Antonio Miranda
“Melhor seria defini-lo como um ensaio em versos, que intenta captar, de maneira pessoal, o universo dramático em que se moveu o destino de milhares de indivíduos, tão europeus quanto os que, precedendo-os no tempo, subjugaram os primitivos habitantes do lugar, fixando-se na terra, para explorar suas potencialidades e riquezas e exercer dominação económica e política — enfim, trafegar pela humanidade daquela multidão de seres de diversa nacionalidade, que, tomados de decisão, sonhos e ambição de poder e fortuna, vieram ter às costas do Brasil (...)”
FLORISVALDO MATTOS, no Preâmbulo do livro.
Paisagem de Água de Meninos
A Ruy Espinheira Filho
Estão as prostitutas no poente
(este verso consagra o belmontino),
quando o horizonte é só vinho fervente,
e a tarde se dispersa em ouro fino.
São as nuvens acaso o detergente
que depura o cristal e o feminino
contorno derramado à minha frente?
São distorções de um olho peregrino?
Prefiro ressonhar por outro espelho,
dos dias que se foram, e que, ainda hoje,
fazem-me a alma luzir como ouro velho.
Então, se a noite é calma, de repente,
algo acontece, enquanto a tarde foge,
e as prostitutas dançam no poente.
Tropas de cacau
Para James Amado
Conduzindo cacau para Agua Preta,
Sinto na tropa um fio de soluço;
E algo de mim que viaja em fuga, é seta,
Que aponta um tempo em que eu, pagem de buço,
Mirava o efeito que um sol exegeta
Produzia na flora, de onde um ruço
E um castanho rompiam (quanta meta,
Quanta preparação para o soluço...).
Aqueles burros hoje, aquelas cargas,
Recalcando ladeiras na memória,
Como em todas as estações amargas,
Fazem trajeto inverso de outra glória:
São estrelas em tardes andarilhas,
Remédio que à alma exausta chega em bilhas.
De
Florisvaldo Mattos
Fábula civil
Capa e ilustrações de Calasans Neto.
Salvador: Edições Macunaima, 1975.
57 p. 32 x 24 cm
ANTROPOEMA
a GEORG LUKÁCS, in memoriam
É o homem ser
de cabedal:
a fauna e a flora,
o aspecto somado.
Ei-lo ajustado
à ordem animal.
É o homem ser
de cabedal:
a mão e o gesto,
o objeto inventado.
Eis conquistado
o chão natural.
É o homem ser
de cabedal:
o som e a fala,
o dom revelado.
Eis despontado
o sol nominal.
É o homem ser
de cabedal:
o espaço e o tempo,
o rumo aflorado.
Eis assentado
o humano real.
É o homem ser
de cabedal:
o medo e o mito,
o peito assombrado.
Ei-lo dobrado
ao sobrenatural.
É o homem ser
de cabedal:
o fato e o feito,
a posse do achado.
Ei-lo imprensado
entre o bem e o mal.
É o homem ser
de cabedal:
a regra e o juízo,
o assomo do lado.
Eis levantado
o dique moral.
É o homem ser
de cabedal:
o ente e o contrário,
supremo reinado.
Eis pronto, acabado
o bicho racional.
É o homem ser
de cabedal:
o dono e o servo,
o acordo negado.
Eis desatado
o nó principal.
É o homem ser
de cabedal:
o agente e seu ato,
o ardil anulado.
Eis consumado
o homem total.
Lavrado intercâmbio
de acento plural,
do homem para o homem
jogo material,
desabrocha o arranjo
do tempo em caudal,
luz em que se trançam
vida e cabedal
ou mesmo se escombro<
é humano, é real.
De
MATTOS, Florisvaldo.
Galope amarelo e outros poemas.
Ilustrações Ângelo Roberto.
Salvador: Edições Cidade da Bahia; Fundação Gregório de Mattos, 2001. 168 p.
(Coleção Poesia, v. 7) formato 13,5x20 cm.
“Florisvaldo Mattos é um grande poeta. Isto já foi há muito confirmado pelos seus livros anteriores— e agora se reafirma nesta mostra de sua lírica: tão suave quanto vigorosa, tão tênue quanto telúrica, tão plena de sublimações quanto de vibração carnal. O que chega, portanto, ao leitor, neste Galope amarelo e Outros Poemas, são, sem dúvida, alguns dos momentos mais límpidos e altos da poesia brasileira contemporânea.” RUY ESPINHEIRA FILHO
JANELA PARA O DIA
Algo sonoro me acena
e todo meu corpo se eriça
quando ao fundo do horizonte
severo me olhas severo
como um deus ofendido.
Algo mais do que minhas heranças
familiares levanta-se
do verde gramado de sonhos
onde pastam meus ontens.
Mais me alveja o silêncio
em livre descobrimento.
Sou todo uma selva de hábitos
e nada sei que outros lábios
já não tenham dito ou tentado.
No aglomerado dos dias
me detenho objeto de assalto.
Ponho as mãos sobre meu rosto
cego para a verdade que está
no chão debaixo de meus olhos.
Não aos céus. Não às águas.
Não à terra impossuída. Ao
sangue só ao homem
debito o que tarda.
E me guardo inconverso
ao poder do desconhecido:
não há magia em saber-se
passado e futuro nem.
MATTOS, Florisvaldo. Sonetos elementares: uma antologia. Ilustrações de Fernando Oberlaender. Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2012. 94 p. ilus. Orelha escrita por Myriam Fraga. Inclui foto do autor, por Márzia Lima. ISBN 978-85-98866-33-9 Carmurê Publicações – apoio Banco Capital. Tiragem 1000 exs. Col. A.M.
“Curioso é como um criação visceral, tão desmedida, como a de Florisvaldo Mattos, pode acomodar-se tão naturalmente no espaço contido na medida exata, da concretude do soneto. Mistérios da poesia.” MYRIAM FRAGA
Banhadas de lágrima
estão as pedras
A Itamar Espinheira
Nós somos um caos irisado.
Paul Cézanne
Ver a força do dia romper, vibrando
Entre um crepúsculo e o outro crepúsculo,
Ver surgir da terra um ranger de músculo;
Nada tenho a dizer, estou chorando.
O dia amanhece, quando amanheço,
Estático, no espaço da varanda.
Preso a formas e cores, não esqueço
A mão universal que isso comanda.
Afasto da mente a mediocridade
Que navega de um polo a outro do dia.
Cá me defronto com outra realidade,
Não tenho hora para a melancolia.
Natureza é tudo, me diz Cézanne.
Cá estou para ver, o resto se dane!
Carne murada assim
Y de mi mismo yo me corro ahora
Garcilaso de la Vega
Vim procurar. Amor, sem dor nem pejo,
De teu olhar a doce proteção,
Que vale em tudo um sonho e meu desejo.
Se busco em Garcilaso inspiração,
Carne murada assim, quando te vejo,
Me inflama o olhar, me queima o coração.
Sinto o quanto me aturde o realejo
Do rubro lábio (rubra intimação),
E do seio também o bico rubro.
Pasmo, subitamente me descubro
Habitante de um mar de sensações:
Se há regras de infinitas violações,
Na angústia de pensar, mais do que escrevo,
Quero de mim correr; não sei se devo.
Um inédito
ÍNTIMOS CAMIINHOS
"Não sei para onde vou / - Sei que não vou por aí!"
(José Régio: Cântico negro", in "Poemas de Deus e do Diabo", 1925)
Não. Nada de penhascos irreais,
Tampouco de florestas invisíveis!
Por aqui tudo fala à sensação;
Ao olhar, ao aroma, à língua, ao tato,
Ao som. Feliz de quem os tem. Ó vós,
Que ditais pelos montes de onde venho,
Por trás de sombras como que vazias?
Enquanto me desfaço de meus fardos
Ancestrais, meu cabedal de fadigas,
Lábios trazem clarões de frescas auras,
Meus pés sibilam sobre sendas rudes,
Mas com promessa de horizontes novos.
Se me pedes que siga o teu caminho,
Descansa. Sei que não vou por aí!
1º maio 2013
CINCO POETAS: Florisvaldo Mattos, Godofredo Filho, Fernando da Rocha Peres, Carvalho Filho , Myriam Fraga. Salvador: Edições Macunaima, s.a. 85 p. 17 x 23 cm. Ex. bibl. Antonio Miranda
Instrumentos Verdes
(1959)
Angústias cio metal, frutos do sangue,
sobre terra vencida os instrumentos
caem. Do maciço (tortura do âmago)
lamento que aliena machado-gume,
descerro portas negras e janelas:
geografia de sombras anunciando
duro clamor entre raiz e cogumelo.
Verdes como sonho oculto sem velhice
entardecem água e terra. Homens.
Verdessonante rio, suas rodas
e pássaros latentes, muito verdes,
umiclade do solo, os instrumentos,
quando cintilações de aço rápido,
ardem podando plumas vegetais.
Sal e olho residente nos caminhos
repousam sobre rio vigilante.
(Colho ouro e sortilégio).
Curvo de calendários, búzios gastos
e patrimónios outros vesperais,
armadura de outono todavia
teço. E é do oficio presa imerecida
que o lavrador recolhe pranto quando,
sobre rebanho e campos de lavoura,
água desnuda, lâmpada tenaz,
verte ânfora dos dias.
4 POETAS 4 GRAVADORES. Florisvaldo mattos; josé carlos capinam; fernando da Rocha peres; godofredo filho —— emanuel araujo; sônia castro; calazans neto;gley. Gravura de Henrique oswald ceidia pela família do artista. Apresentação gráfica: Sônia Castro. Salvador, Bahia: Editora Casa Grande, Gráfica Santa Rita Ltda, 1966. Edição: 200 exs
Ex. bibl. Antonio Miranda
POETA FLORISVALDO MATTOS
GRAVADOR HENRIQUE OSWALD – Água forte inacabada 1965
A Cabra
Talvez um lírio. Máquina de alvura
sonora ao sôpro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és, já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra: o capim ao sonho preferindo.
Sulca-me perdurando nos ouvidos,
laborado em marfim — luz e presença
de reinos pastoris antes servidos —,
teu pêlo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.
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Página publicada em outubro de 2021
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