POETAS DO AMAZONAS
Coordenação: Donaldo Mello e Inês Sarmet
Ilustração de Inês Sarmet |
ALDISIO FILGUEIRAS
Aldisio Filgueiras, compositor, poeta e jornalista, nasceu em Manaus, em 1947. Iniciou sua produção poética ainda no curso secundário, feito no Colégio Estadual D. Pedro II, com a participação no Grêmio Literário Mário de Andrade. Sua estréia literária aconteceu em 1968, com o livro de poemas Estado de Sítio, que teve circulação proibida pela censura. Porto de Lenha, um dos maiores sucesso da música regional, foi composta por Aldísio em parceria com o compositor Torrinho. Membro da Academia Amazonense de Letras, os livros Malária e outras canções malignas(1976); A República muda (1989); Manaus – as muitas cidades: 1987-1993 (1994); A dança dos fantasmas (2001) e Nova subúrbios (2004) compõem sua obra poética.
“Há dois conceitos de linguagem que sobressaem e caracterizam a poesia de Filgueiras: as palavras já não são mutiladas pelo conhecido organismo amazonense e aparecem como um jogo sonoro de articulações críticas. Assim, é uma poesia que se abre para fora do confessional, rompendo com a analogia de vitrine e estabelecendo uma subjetividade livre de especulações psicológicas. Não é mais o espírito doente do poeta provinciano que vislumbra na natureza os sinais antropomórficos de sua doença. Filgueiras desaloja esta analogia castradora e enfrenta o significado do mundo amazônico que risca funda fronteira / e aliena / seu feudo do mundo / em líquido / estado de sítio”.
MÁRCIO SOUZA
“A dança dos fantasmas é um livro evocativo dos compromissos e inquietude do poeta diante dos descaminhos do mundo. Num tempo fraturado, subtraído da esperança e dos sonhos, a poesia é uma forma de negação do vazio e do absurdo. Apesar dos anos, das provações e das perdas, Aldisio construiu uma história literária fundada na coerência, no rigor literário e espírito crítico. Sua obra é como um espelho estilhaçado em que se reflete o mundo em seu permanente devir. A vida pulsa em seus versos e se faz canto - cantar irresignado, prenhe de intensidade humana e consciência da realidade: Não é apenas o século que se vai / e as utopias. O cigarro / também e, agora, as unhas.”
TENÓRIO TELLES
A noção de “frêmito” na poesia de Aldisio Filgueiras é muito mais sociológica do que psicológica, pois a Arte que o desencadeou lançou-se como um impacto contra um determinado tipo de sociedade que acabará por levar o livro de estréia do poeta – Estado de Sítio – (1968) – às barras da circulação proibida pela censura militar. E qual teria sido esta sociedade? Senão a do revelador poema “Quero os meus amigos de volta”. A sociedade do declínio da democracia brasileira. Porém o “transtorno” das sensibilidades que o poeta Aldisio Filgueiras acarretava era apenas uma parte do sentido desestruturante-antecipatório (Maio 1968/ A polícia atirava em Manaus contra as barricadas de Paris). Paris, em 2006, em chamas, sitia seus estudantes na Sorbonne fechada sob as barricadas policiais. “Todo poeta é um fora da Lei. A glória de um poeta (profeta) é uma contradição, armadilha. A poesia hoje e sempre é, de preferência, peça de resistência. O canto do poeta desmonta o discurso perverso do poder” (Rogel Samuel). O poeta Aldísio Filgueiras chocou mais por sua ruptura com os conceitos tradicionais da poética, com ternura e elegância próprias do riso. Talvez a resistência a um desencontro entre a poesia e o formalismo estabelecido, transportando-nos assim a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais suave, certamente inquieto e crítico, por isso mesmo diferente daquele (tradicional) e, na prática, quase inabitável: um “cantar irresignado”.
DONALDO MELLO
FILGUEIRAS, Aldisio. Estado de sítio. Edição comemorativa 50 anos: 1968-2018. 3ª. edição Apresentação e organização: Tenório Telles. Manaus: Valer Editora, 2018. 130 p. 14 x 21 cm. Capa: Heitor Costa. Ex. bibl. Antonio Miranda
Estado de Sítio foi escrito entre 1965 e 1969. Em 1968, foi premiado em concurso da União Brasileira de Escritores, seção do Amazonas. Impresso, a UBE decidiu por sua não publicação, inspirada no momento político do país, temperado pelo AI-5. A edição se perdeu. Na verdade, foi jogada fora(...)
Fomos falsos em alguma coisa
gesto palavra renúncia.
Esquecemos outubro
a roupa nova do século.
Talvez que não tiramos
a camisa no inverno
e a vida gripou
nas alamedas do tempo.
Mas compramos sapatos automóveis
Deitamos com mulheres limpas
vulcânicas. Por isso não vimos
a cidade tomada pelos flancos
e a corda do horizonte
fechar-se em nossos pescoços.
Com os olhos eretos trocamos
o sentimento do mundo
pela rua cheia de nádegas e seios.
Há cartazes de preços móveis
em nossa calças novas.
Temos um preço. Somos transmissíveis.
2
Ah! os pássaros suicidaram-se
nos ninhos com medo
das tempestades.
3
O militante com medo das feras
guardou as armas
e empunhou a língua
como as mulheres velhas.
4
Compramos relógios
trancamos as portas
temos um suicídio
na gaveta do móvel.
5
Ninguém gritou o ventre do tempo
cheio de hóstias anticoncepcionais
contra a pluralidade dos séculos.
6
Os escaravelhos tomaram a cidade
e os namorados morreram surpresos
nos bancos elétricos da praça.
De repente, as abelhas aprenderam
a fazer urânio
com as flores envenenadas
e os pássaros verdes ensinaram
ao sol chocar granadas.
O poeta é o responsável pela humanidade.
Mas o poeta tem cu e tem medo.
O poeta tem conta no banco.
7
O poeta é o responsável pele humanidade
Mas o poeta tem medo:
Deus espirrou tão forte
sobre a rosa dos ventos
que os pontos cardeais
perderam as direções do futuro.
Estamos sós, diante do século.
8
O poeta é o responsável pela humanidade,
mas o poeta tem conta no banco.
Os escaravelhos tomaram a cidade.
Temos um preço. Venceram
as tradições de comércio.
9
Estamos sós: não temos partido
e precisamos de ordem.
Com os olhos eretos trocamos
o sentimento do mundo
pela rua cheia de nádegas
e selos de qualidade. Há cartazes
de preços móveis
em nossas calças novas.
Fomos falsos em alguma coisa.
Talvez que não tiramos
a camisa no inverno
e a vida gripou
nas alamedas do tempo.
maturidade
os clarins da cidade
despertam os sentidos
leicidade
ergo a minha
cabeça guerreira
para ganhar a vida
deus é uma tática comercial!
mulher, onde está o meu
casaco à prova de balas?
FILGUEIRAS, Aldisio. Cidades de puro nada. Organização: Tenório Telles. Manaus: Editora Valer, 2018. 176 p. ISBN 978-85-7512-6 Ex. bibl. Antonio Miranda
Nascem as cidades
infladas do mais puro
nada com agravo
e suspeita
de ser cada uma
outra cilada,
onde, à noite, a criança
soluça entre paredes
ocas e a tosse
da esperança é o ronco
das redes
sem azeite nos ganchos
presos a uma trança
de garranchos
sobre um chão que dança.
*
Desde onde e quando
nascida, a cidade
é um beco sem saída.
*
Começar
de onde
a pedra
ferve,
se dissolve ao sol
e desce
do longe dos montes
alheios para nascer
quando na várzea brota
o tempo de agora
e nunca,
— o nunca é sempre,
não vislumbra o próprio fim.
*
— Teremos o que não
nos pertence, a terra
de ninguém: lugar
de estar salvo e são,
de ter onde largar
os ossos, se cansados,
de deitar na mulher,
se quando apaixonados,
lugar de ser, ter e estar
de noite ou de dia,
em pelo ou encoberto
de suor do trabalho
ou da umidade
sem a monotonia
de estar sempre a caminho
de lugar nenhum.
Basta estar para crer.
*
A fome espreita
a floresta
que se esconde atrás
de cada árvore
Ninguém
quer discutir
o mérito
dos mártires.
Nômades do rio
Nômades da rua
Ai! Este povo em fuga
Nômades de não
mais serem que
um zé sem nome
Ai! Este povo em fuga
Um número zero
zero zero zero
sem troco
Em pele e osso,
tão peregrinos
Ai! Este povo em fuga
Tão peregrinos
de tudo e tudo
Ai! Este povo em fuga
Que nem a benção
do Pai o norteia
Ai! Este povo em fuga
Nômades sem nome
da rua e do rio
Ai! Este povo em fuga
Mas não se pense
que este silêncio
de fuga
é surdo
e mudo:
os olhos danam-se
a querer
e os pequeninos
deuses da intolerância
inventam cinco
estações de sol e chuva
ao ano e não calam
a sintaxe que articula
passeatas e cartazes
nos beiços da cidade.
Extraído de NOVA SUBÚRBIOS. Manaus: Valer Editora, 2006. 144 p.
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Quero os meus amigos de volta
Primeira lição: não entrar em pânico.
Segunda lição: não entrar em pânico.
Terceira lição: perna pra que te quero!
Foi assim no Vietnã. O Amazonas-Mekong
fluía entre discursos cineclubistas
e as tropas de ocupação do Exército brasileiro
descobriam enfim um inimigo à altura
da Guerra do Paraguai
em seu próprio quintal.
Crianças, quase todo ele - o inimigo - e uns poucos
velhos que escaparam ao primeiro assédio.
Maio de 1968.
A polícia atirava em Manaus contra
as barricadas de Paris.
Luiz Buñuel dormiu na rede roída
lá de casa e o fantasma do seu Cão Andaluz
foi caçado mais de uma vez por aquela amante
do diretor do colégio que trepou
com toda uma geração de comunistas
cristãos sem ficar grávida uma só vez.
Linda espiã das escadarias do ginásio.
Lindo torneio de pernas e juventude.
Insaciáveis tesões.
Prazeres que só um Serviço Nacional
de Informação pode conceder.
Já ali só havia uma verdade
absoluta: todo fascista é um filho da puta.
E quando o Araguaia convocou 10 mil
desocupados de uma nova safra de soldados
para vencer uma guerra de ficção
o socialismo já era um tigre de papel
e títulos vencidos.
Só o comunismo dos Yanomami resiste
hoje à doença da moeda.
Mas este mesmo anda em pânico
e sem pernas para chegar a algum lugar.
Agora sabemos com quantas perdas
se faz um Muro de Berlim.
Pudemos contá-las, pedra por pedra,
aqui mesmo quando ruiu
em Manaus onde
tudo acontece à revelia da cidadania
e tudo é simulacro da realidade
Apesar das más línguas, somos modernos.
Assumimos o personality show
das máscaras sorridentes do mercado.
É quase chique ser cínico.
Mas não é a Eletronorte que nos remete
à mais ilustre escuridão, todos os dias.
Todos os dias é maio de 68.
Quem espiona sobre os meus ombros
está a quilômetros de mim
e dos meus ridículos escritos.
Mas já esteve muito próximo.
Tão próximo que meus
escritos não eram ridículos.
Quero esses amigos de volta, sem culpa.
É preciso não entrar em pânico.
Mesmo porque não existe mais para onde ir,
ainda que sobrem pernas.
É preciso encarar de vez.
Ter é ser em todo lugar.
O que quer que signifique isto.
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Canção do Rio Negro
para Sérgio Pires, lá em Curitiba
Este rio, canção
de rádio agora,
que me escapa
por entre os dedos
e se enrodilha
na rua - dobrado
nas calçadas
sob o peso
das gentes
ribeirinhas
às costas -, não é um rio
que se construa
roteiro e viagem
de férias para o mar.
Não é um rio
de invenção esse um.
De voltas e voltas
tantas e tantas
que dá ele próprio
perde o sentido
de rio. Fica parado
no ar sobre as escamas
curtas. Sintoniza
os pássaros nas estrelas
e chove. Funda
as civilizações
da água e da floresta
que a história idiota
ignora. Se alguma vez
chega este rio ao mar
é só o puro suor
que se decanta do olho
das margens que mira
e mira a rua por onde
se esvai todo o sal
nosso de cada dia
para o verão do litoral
oceano. Este rio
se enraíza em mim
em ondas curtas e médias.
É feito o rádio: único
vizinho, mesmo
se o endereço velho
mudou-se para a cidade
para fugir às dívidas
da origem mestiça
de água e floresta.
É quando se fica mudo
que se aprende
a falar deste rio. Nada
no entanto me passa
ou passará que não seja
este olhar e espanto
que o rio me arranca
da ribanceira sem pressa
(como se não doesse)
de chegar a tanto lugar
subúrbio.
Este é o rio - canção
de rádio agora -
que me convoca e antena
para a aventura
das gentes e das cidades.
Este é o rio
que me entrega o que sou
e me escapa.
Poemas transcritos de A DANÇA DOS FANTASMAS. Manaus: Editora Valer, 2001.
FILGUEIRAS, Aldísio. Ararinha azul – o sumiço. Manaus: Editora Valer, 2011. 42 p. (Col. Florescer da Leitura) ilus. col. 17x23 cm. (Série Renascer da Leitura) Editor Isaac Maciel. Capa e projeto gráfico Bruno Raphael. Ilustração Otoni Mesquita. ISBN 978-85-7512-489-3 Col. A.M. (EE)
FILGUEIRAS, Aldisio. Cidades de puro nada. Organização: Tenório Telles. Manaus: Editora Valer, 2018. 176 p. ISBN 978-85-7512-6 Ex. bibl. Antonio Miranda.
Aldisio é um apaixonado por Manaus, amor que se expressa em sua infindável capacidade de atormentá-la dia sim e outro também. É autor de "Porto de lenha", hino-canção da cidade, cantiga conhecida de cor pelos manauaras (e aqui vou escrever uma heresia que depois de lida deve ser imediatamente esquecida) -. que é cantada até com mais entusiasmo do que o próprio hino oficial da cidade guerreira dos manaós. PAULO JOSÉ CUNHA
Desde onde e quando
nascida, a cidade
é um beco sem saída.
Mas e mapas e planos?
Onde fica a porta,
que deixará os anos
ciganos - carga morta -
para trás, esquecidos,
assim como se fora
um nunca existido,
lá, do lado de fora?
E o vaso da janela,
que eu sonhei parindo
uma flor amarela
como um sol de domingo ?
E antes que me esqueça:
a janela do vaso
quero-a larga; meça-a
sem horizonte raso.
*
De quanto custo e medo
se ergue uma cidade
de calor e aconchego
se nada se dá de graça?
Uma opção drástica
esclarece esse ponto,
sem meias palavras:
vamos fazer... e pronto!
FILGUEIRAS, Aldisio. Manaus, como se diz, como se vê. Manaus: Editora VALER, 2023. ISBN 978-65-5585-380-3 240 p.
Ex. bibl. de Antonio Miranda
Manaus, quando se vê —
surpresa: encrespa rumo
acima (uma de arranha-
céu) — não mais se espreguiça:
mal acena das janelas.
A Manaus falta um desejo
que a faça seguir adiante.
De que vale um cabeça
sem pés no chão, sem olhos
no horizonte distante?
Algoritmos vorazes
(no fundo, fitas gravadas)
propagam ordens do dia
que apagam da lembrança
o gozo sem sofrimento.
Sem o que lhe traduza
tempo, espaço e clima
a cidade anda na água,
como a pisar em ovos,
assim — feito quem tem asma.
Sem mais o que lhe sirva
da cheia e da vazante,
Manaus exuma o suor
morno da testa e exala
rancor e ressentimento.
Manaus está no centro
do mundo que fabrica
seus próprios estrangeiros:
eu, tu, ela, nós, vós, eles,
fora os que vêm de fora.
— Quem sabe onde fica a China?
— Eu: ali, na esquina.
— E o Japão, onde é?
— Ali, na contramão.
Manaus sabe onde fica o mundo.
Mas o mundo não sabe
de nada, nem onde ficam
as imitações miúdas
de Manaus. O mercado —
não o rio — comanda a vida.
Cópias, cópias e cópias.
Em cada curva e braço
de rio e esquina de rua,
um suvenir de Manaus
reflete a crise do mundo.
Cópias, cópias e cópias
capazes de refletir
vidas de segunda mão
que não sabem mais compor
um sonho, por exemplo.
A Manaus falta um desejo
que se atire ao perigo
desde o décimo andar
à flor que nasce no asfalto
sem as algemas do medo.
O rio Negro, no entanto,
prende a cidade aos barrancos
brutos de testa vermelha
para que não se perca
do passado ribeirinho.
*
Página ampliada e republicada em novembro de 2023.
Página ampliada e republicada em janeiro de 2019.
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