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Despertar das Águas:

Metáfora da Poesia Diante da Realidade

 

 

» Prof. Dr. Jayro Luna

 

 

            Foi com surpresa e alegria que recebi outro dia pelo correio três exemplares do livro de Antonio Miranda, Despertar das Águas (Brasília, Thesaurus, 2006). Surpresa pelo fato de ver ali nas orelhas do livro transcrito um trecho de um texto que escrevi fazendo uma leitura de dois poemas desse engenhoso poeta. Na ocasião desse texto eu comentei acerca dos poemas “Em Stonehenge” e “Cubismo Verbal”. Agradável surpresa, pois ao ter escolhido parte de meu texto para colocar nas orelhas do livro era um sinal de que minha leitura se não foi totalmente perspicaz para a apreensão da correta dimensão do poema, foi ao menos suficiente para compactuar com os pensamentos poéticos de Antonio Miranda.

 

         Mas a alegria, a alegria maior, foi a de ler o conjunto de poemas que forma esse Despertar das Águas. Um dos exemplares vinha com um folheto em que se lê um parágrafo escrito por Anderson Braga Horta acerca do livro. Brilhante na sua concisão e na extensão com que conseguiu abarcar vários poemas do livro. Anderson comenta que o livro tem o domínio da “memória e da autoperquirição, desde o apego do nascituro à paz amorosa do útero materno até a revolta contra a mão destruidora do homem”. Destaca Anderson ainda o poema “Despertar das Águas” que é “fortemente confessional” e logo a seguir, cita Anderson alguns poemas em que parece existir uma continuidade desse sentimento confessional ou ao menos da memória e autoperquirição.

 

         Penso, suponho talvez, que Anderson Braga tenha se deixado levar pelas palavras da “Apresentação” do livro, feita pelo próprio Antonio Miranda em que ele diz: “Despertar das Águas é mais autobiográfico do que meus títulos anteriores. Não no sentido de refletir um eu estrito, mas de rever-me no mundo das memórias, das idéias, dos outros eus”. Não quero aqui discordar de Anderson, mas lembrando Fernando Pessoa (e o poeta modernista português é citado textualmente no poema “Pressentimento”) que dizia no famoso “Autopsicografia” que “o poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Em “Pressentimento”, Antonio Miranda escreve: “porque é ausente de palavras? / se a palavra sempre mente”. Minha hipótese é de que Despertar das Águas tem apenas uma superfície tênue, fina como papel de arroz dessa coisa de “memória e perquirição” ou de “confessional” se tomamos essas palavras pelo sentido corrente e mais comum, de alguma coisa que se refere à vida do autor, à sua biografia. Mudando um pouco o foco da leitura estou propenso a pensar que o mais que temos em Despertar das Águas é uma estrutura profunda e forte de elementos biobibliográficos. Entendamos biobibliografia como o conjunto de obras escritas durante a vida de um autor. E, no caso específico desse Despertar das Águas é um conjunto de livros lidos e repensados pelo poeta que se apropria das sensações e dos pensamentos lidos para transfundi-los com os seus próprios, criando algo como uma superposição num palimpsesto. Poeta do Neobarroco (“Em tal gongorismo / ama-se o amor / que é amado / e não o próprio amor” - “Pressentimento”), Antonio Miranda vai diante dos olhos do leitor levando-nos a conhecer uma pequena biblioteca de poetas e artistas: Fernando Pessoa, Giordano Bruno, Drummond, Mário de Andrade, Glauber Rocha, Elis Regina, Almodóvar, Affonso Romano de Sant’Anna, Marx, Portinari... Onde está essa biblioteca? Na mente de Antonio Miranda, como estava a infindável de Borges em Borges. É lá que se constrói um amálgama aparente de recordações, de memórias, mas que são perpassadas constantemente pelas ligações (links) com as páginas dos outros livros. A internet é aqui uma analogia, uma figura, o mundo virtual de que Antonio Miranda mais se admira não é este mundo googleano. Qual é a sua terra? A sua terra é inefável, é a virtualidade dessa biblioteca de textos escritos e por escrever que a teoria da informação nos tempos de Shannon e Abraham Moles soube apenas quantificar e teorizar matematicamente, mas que poucos homens conseguiram entender o significado expresso por detrás daquelas fórmulas e números. Esse o dom dum Pitágoras, perceber o mistério para além das representações numéricas. E isto Antonio Miranda consegue:

 

         “Há muita poesia em toda esta fantasia

         em que a mente humana se consente

         em afirmar que uma coisa

         é compreendida por outra coisa

         indefinidamente:

         que um objeto parece limitar outro objeto

         na relação de uma relação

         em qualquer direção”

         (MIRANDA, “Sobre o Infinito em Giordano Bruno”)

 

         Ou ainda, para outro exemplo sobre a mesma cousa, lemos em “Eu me Deleto” como o vocabulário internético e da informática é a tênue casca de folha de papel de arroz a que me refiro:

 

         “mas estou infectado pelo vírus

         eletrônico, invado por hackers de plantão

         eliminando minha individualidade

         —inteligência destrutiva

         viral, virtual, visceral, vital.”

 

         Daí que em Despertar das Águas outra metáfora se constrói, a dos rios. Não mais os rios como metáfora da vida, esta já uma metáfora bem gasta pela história da poesia afora, mas agora como uma dupla metáfora, primeiro como metáfora da navegação virtual pela internet e depois essa internet como metáfora da mente do poeta, esta sim a depositária supra-googleana das memórias, vivências, leituras de mundo que o poeta Antonio Miranda constantemente faz. Assim rios como o Sena (“O Sena ferve e fede / e o girassóis fenecem no estio”), o Ganges (“e mergulho no Ganges com asco / e horror” - “Notícias de Viagem”), o Orinoco, o Plata, o São Francisco (“o Orinoco lado a lado / do Rio de La Plata, / la Plaza Altamira / más allá de La Recoleta / (eu transitar inconsútil) / e aponte de São Francisco / separando Nova Iorque / do Rio de Janeiro” - “Um Desmemorial”), ou ainda uma avenida em analogia com um rio sem nome (“havia um jovem poeta brasileiro / de casaco surrado e a alma transcendida / pelo sonho, andando pela Avenida.” - “Avenida Corrientes”), são imagens, ou seja,  formulações de um entrocamento metafórico entre o tempo que o poeta vence pela memória das leituras, uma vez que os poetas mortos são redivivos no amálgama de sensações do poeta e que, ao mesmo tempo, o poeta vivo, sente sua alma transcender o corpo e juntar-se às sensações amalgamadas: “Troco experiência / (vivência) com o ar, / com os sons, a luz /—-pelo corpo e não / (apenas) com a razão.” - “Auto-Conhecimento Pelo Corpo”.

 

         O tempo metaforizado nos rios, na navegação pela internet, nas memórias recuperadas, por fim, é a última fronteira para a compreensão dessa identidade poética que ao fim e ao cabo não é apenas a identidade física e social “Antonio Miranda”, mas a pluriidentidade formada pelos outros eus que a memória viva de Miranda se apropria para reconstruir-se transcendente acima dos limites da existência física e limitada do ser humano: “É bom que haja identidade / e que o coletivo nos uma / e nos irmane” (“Identidade e Dissimulo), ou para outro exemplo: “Ver-se numa sucessão de quadros: / fragmentos, momentos vividos.” (“Cubismo Verbal”) ou ainda: “Não há mais lugar para a autoria. / Vou decompor Fernando Pessoa / e reconstruir Cesário Verde / e gerar Drummonds” - (“Eu sou Trezentos”). Esse o exemplo mais vívido disso que pretendo comprovar como minha hipótese acerca da poesia de Despertar das Águas: a memória biobibliográfica, a biblioteca mental das vivências e leituras de Antonio Miranda, essa sua razão mais fundante do tom confessional. Nesse âmbito ainda podemos inserir poemas como “Os Vários Eus” (“Os meus vários eus / se defendem como podem / exarcebando as divergências”), “Diário Sem Autoria” (“Você é que se refugia em certezas / enquanto eu afundo no colchão / desabitado de mim, mas assustado.”) ou “Radical” (“Radicalismo pela contrafação / pela transitoriedade / de sua fixação / em não-ser instituído”).

 

         Esse “eu múltiplo”, amalgamado de Antonio Miranda e os poetas e artistas que leu-experienciou-viveu, que forma a biblioteca de suas sensações vividas-experimentadas-lidas, reconhece o duro parto que é seu nascimento, não o nascimento físico como quando Fernando Pessoa nasceu e lhe deram o nome “Fernando Pessoa”, mas quando, na alma do poeta - e o que chamo alma nada tem de espiritualista ou espírita - se reconhece ao espelho a variedade de rostos de que se compõe a face poética de Antonio Miranda em Despertar das Águas:

 

         “20. Não, eu não quero nascer!!!

         Enfrentar as associações extemporâneas

         (referências cruzadas, hiperlinks fortuitos)

         na rede semiótica do interpretante

         —atônito, diante da terrível Esfinge

         que finge e se apresenta como Oráculo”

         (MIRANDA, “Eu Não Quero Nascer”)

 

         E se os acontecimentos cotidianos, mas dramaticamente cotidianos do mundo atingem a percepção de mundo do poeta, esses acontecimentos são elementos que ligam o universo dessa biblioteca virtual e interior com o mundo, pois Miranda (formado em ciência da informação) sabe que a única via possível para o nascimento é a exteriorização do corpo (disso MacLuhan também falava - Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem - Understanding Media) na tridimensionalidade do espaço-tempo. Assim, alguns poemas trazem indicações de quando e porque foram escritos: “Má Educação” (“19//11/2003 - escrito depois de assistir ao filme ‘Mala Educación’, de Pedro Almodóvar, que a crítica recebeu com muito ceticismo”), “Diário Sem Autoria” (“6 de Julho de 2005, depois das explosões das bombas em Londres”), “Eu Sou Trezentos” (“Brasília, 10/11/2005, depois de um aula sobre cibercultura”). Mas se existe esse estranho nascimento, existe também uma morte, não a morte do poeta Antonio Miranda — pois ele ainda é um poeta vivo, e muito vivo — mas a morte da consciência solitária, unívoca, individual que o acompanhava quando menino e que foi pouco a pouco sendo diluída pelas novas consciências que compactuaram com seu corpo: “Morto, irei por onde queira / a força do vento / por não haver pensamento” (“In Memoriam”) ou “A fotografia como espelho / no meu álbum de família // Eu em diversos momentos / de minha morte” (“Meditações sobre a morte” - que tem epígrafe de Lacan: “Sou onde não estou / estou onde não sou”).

 

         Por fim, esse “eu-múltiplo” que vive no lugar do “eu-solitário” que morre, descobre o conceito de “Não Lugar”. O “Não Lugar” de Marc Augé  aqui se redimensiona nos limites da identidade poética: “O sonho é um não lugar / que habito / virtualmente / -no tempo e no espaço / da não-existência” (“Não-Lugares”).

 

         Esse Despertar das Águas de Antonio Miranda é também um outro despertar, o da consciência da poética acerca da necessidade de poesia no mundo contemporâneo atualizando as metáforas e percepções diante da dinamicidade complexa dessa mesma contemporaneidade.

        

 

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Trad. Lúcia Mucznik, Bertrand Editora, 1994.



 

 

 
 
 
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