TRIBUTO AO POETA
AFFONSO AVILA - A MANEIRA TEXTUAL DE VER
Por Antonio Miranda
Palestra apresentada na sessão do TRIBUTO AO POETA dedicada ao Affonso Ávila, no auditório da Biblioteca Nacional de Brasília, dia 24 de junho de 2009.
“maneira de fazer da leitura uma maneira textual de ver
— ou de ler como se víssemos o que as palavras significam”,
BENEDITO NUNES, p. 25.
“sob permanente pressão crítica, provocada pela instabilidade das formas em evolução” que se constitui numa “épica do instante.” AFFONSO ÁVILA
As epígrafes assinalam e orientam o sentido da poesia de Affonso Ávila, de quem usa as palavras para inscrever em vez de escrever, para ilustrar em vez de descrever. Épico de circunstância, mas com substrato histórico e projeção para a modernidade constante — a tal “épica do instante”.
A vanguarda é sempre retrógrada quando passa. Mas a poesia de Ávila parece que se situa num espaço temporal imanente, numa modernidade que nunca se consome.
Muitas vezes laureado. Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, 1991; Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, 2003, Prêmio Wessel, e muitos outros. É surpreendente que o autor tenha, em vida, o reconhecimento devido, quando outros vanguardistas só foram descobertos pelos pósteros. Sousândrade, entre eles, para citar apenas um.
“Quando antitradicionalista, ele é um desviante; beneficia-o a rebelde vontade de negar o aceito, o consagrado, o dito e o redito, o por demais expressado. E negando-os, principia a mudar-se e a mudar a poesia. Mudando a poesia, critica-a e, por sua vez, entra em crise. É a crise o comum estado de consciência do poeta em nosso tempo.”
“É uma poesia difícil”, reconhece Antônio D´Elia, ( p.57) e acrescenta; “Os poemas de Affonso Ávila são belos. Sente-se neles essa beleza — um pouco fria, é claro — da poesia pura.” [ sobre Carta do Solo, 1961].
Hermético? Certamente que não! Concreto, conciso, minimalista, raramente discursivo, mas, neste caso, com a economia máxima das palavras, como se estas fossem a razão última de sua poesia. Palavras-coisas. Há quem o associe ao concretismo, ao poema-processo, a uma superação do verso de João Cabral de Melo Neto por sua alcalina engenharia e pela voz quase árida e penetrante: aquilo da “faca só lâmina”. Tem tudo a ver, mas não é uma imitação consciente, mais bem um desvio. Sendo barroco, nunca teve medo da imitação, desde que reelaborada, transfigurada em novos sentidos. Artesão da palavra, sim, mas na sua cristalização no espaço-tempo, em sua consubstanciação de significados.
“Em crise, o poeta de hoje, temendo a insídia da linguagem, para melhor poder estadear, na palavra, o que em torno de si se dá — procura mostrar, enfim, o que ela enuncia. E que outro melhor meio de mostrar do que fazer ver, colocar o que se mostra verbalmente, como uma coisa no espaço à frente de quem lê — intuída pelo poeta e perceptível para o leitor?” ( Benedito Nunes, p. 25)
Repito: conciso, mesmo quando faz multiplicar as palavras numa litania visual que vai tecendo uma mensagem além das palavras. Como que contradizendo o que dele diz o crítico Benedito Nunes: “Mineiro de poucas palavras no verso e na vida” (p. 26)
O poeta inicia-se pelos sonetos de versos introspectivos, intimistas, com algum hermetismo. Sem os ressábios parnasianos, fugindo dos preciosismos e dos adjetivos dos simbolistas e até do versilibrismo ainda em voga. O poeta reconhece estar “em pleno desconcerto das palavras” (Soneto do Ad vento, p. 42). Há quem o associe, apressadamente, à “Geração 45”. Seu primeiro livro – O Açude e os Sonetos da Descoberta –reúne seus versos escritos entre 1949 e 1953. Na opinião de Henriqueta Lisboa, “Cuja força emotiva está presente no ritmo, no verbo substancial, na mesma escolha do parcimonioso adjetivo.” (Fortuna crítica, p. 14). Da obra citada extraímos o
SONETO
Não vos traga tristeza a chuva fria
a se esgueirar nas tardes sem corola.
Sobe o chumbo (o sem cor) das coisas vivas
sufocando o clamor das vossas horas.
Sobre o ontem deitastes. Neve amiga
da pegada os sinais na terra afoga
(vede o exemplo da nuvem que destila
o fel de si na gota que se evola).
Sede o espelho, não mais. O próprio nervo
se desfaça no plano de cristal
onde a imagem enfim se compreende.
Plenitude da origem e do termo
o nimbo vos ensine o largo mar.
Sereis então o grande indiferente.
Na época do modernismo tardio, da restauração conservadora da Geração 45 e às vésperas das vanguardas verbivocovisuais dos concretistas, Affonso Ávila se inaugura nesse rito de passagem que ele soube apropriadamente absorver sem aderir.
“(...) chegar ao essencial, ao ponto que une criação e reflexão, após um percurso solitário de lutas e desafios para construir a história de Minas, descobrir as identidades brasileiras e descobrir-se a si mesmo.” Camila Diniz, editora do Suplemento Literário de Minas Gerais.
Ou melhor dizendo, nas palavras de Antonio D´Elia, Affonso Ávila “ fala mais a uma sensibilidade refletida do que ao sentimento.” (p. 15)
BARROCOLAGENS
(1981)
Vamos saltar para uma obra de sua maturidade — Barrocolagens — porque ela é a chave para entender em larga medida a poesia de Affonso Ávila. Separata da revista Barroco (11, 1981). Os especialistas chamam a atenção para a sigla “AA” que aparece no alto da página, dando a entender que Affonso Ávila é também o crisol ou amálgama de autores que o precederam, não somente os poetas arcádicos, mas sobretudo os cronistas que inscreveram a história de Minas. Autores de textos que ele usou, transformou numa espécie de intratextualidade de apropriação débita, ostensiva.
No entender de Anelito Pereira de Oliveira, na interpretação de A.A., seguindo o pensamento de Lacan, o Barroco é “um campo material, bruto, onde vozes e imagens encenam o sofrimento de corpos e almas “encorpadas”. (Fortuna Crítica, p. 31) Relação corpo-alma, promíscua, o corpo tentando dominar o espírito. O autor barroco
“(...) usa elementos técnicos e artifícios de nossa era pós-moderna, como o recurso parodístico e a técnica do pastiche – apropriação crítica de textos que constrói réplicas textuais capazes de alargar e burla a possível exaustão de procedimentos criativos”.
Afirma Carlos Drummond de Andrade, em carta ao poeta (1953) referindo-se ao livro “O açude...”, vendo no autor uma “tendência ao aprofundamento”. (p.49), a busca de interrelações de palavras e sentidos que configuram sua poesia.
É bom lembrar, uma vez mais, que o conceito de autoria e originalidade é um fetiche, algo que os autores medievais – ao recuperarem os valores helênicos e clássicos –, cultivavam em sentido contrário, absorvendo e recriando a partir das formas e fórmulas consagradas. Barrocolagens, em certo sentido, assume esta antropofagia literária. *
*Rogério Barbosa da Silva, na análise do livro Barrocolagens de A.A., reconhece o artifício e sua transliteração textual: “Embora estejamos lidando com as palavras textuais de cada autor “pastichado”, seu conteúdo já não é o mesmo por não pertencerem suas palavras ao mesmo contexto, e até mesmo porque a orientação da leitura acaba mudando. É notório que a transcontextualização já induz uma operação crítica da leitura. Estas questões estão, porém, na base da própria idéia de representação artística, e foram tratadas por Giles Deleuze em seu ensaio “A reversão do platonismo”.” (p. 167)
AA (Antonio Vieira/Luís de Góngora/Juan de la Cruz/Garcilaso de la Vega/Oswald de Andrade)
I
OS REMÉDIOS DO AMOR E O AMOR SEM REMÉDIO SÃO AS
QUATRO COISAS E UMA SÓ
O PRIMEIRO REMÉDIO É O TEMPO
TUDO CURA O TEMPO, TUDO FAZ ESQUECER, TUDO GASTA,
TUDO DIGERE, TUDO ACABA,
ATREVE-SE O TEMPO A COLUNAS DE MÁRMORE, QUANTO
MAIS A CORAÇÕES DE CERA?
SÃO AS AFEIÇÕES COMO AS VIDAS, QUE NÃO HÁ MAIS CERTO
SINAL DE HAVEREM DE DURAR POUCO, QUE TEREM DURADO MUITO
SÃO COMO AS LINHAS QUE PARTEM DO CENTRO PARA A
CIRCUNFERÊNCIA, QUE QUANTO MAIS CONTINUADAS,
TANTO MENOS UNIDAS
POR ISSO OS ANTIGOS SABIAMENTE PINTARAM O AMOR
MENINO, PORQUE NÃO HA AMOR TÃO ROBUSTO QUE
CHEGUE A SER VELHO
DE TODOS OS INSTRUMENTOS COM QUE O ARMOU A
NATUREZA, O DESARMA O TEMPO
AFROUXA-LHE O ARCO, COM QUE JÁ NÃO TIRA
EMBOTA-LHE AS SETAS, COM QUE JÁ NÃO FERE
ABRE-LHE OS OLHOS, COM QUE VÊ O QUE NÃO VIA
E FAZ-LHE CRESCER AS ASAS, COM QUE VOA E FOGE
Y SÓLO DE EL AMOR QUEDA EL VENENO
Silviano Santiago afirmou que “os poemas de Barrocolagens justificam a idéia de que a tradução de um significante avança um novo significado” (citado por SILVA, p. 169).
O barroco evita uma comunicação explícita, prefere os circunlóquios, o disfarce, o despiste na construção de uma teia de sentidos em lugar da comunicação linear. Fonte para o gongorismo posterior. Ávila transita neste território híbrido com lucidez, como buscando luz no túnel, enxergando nas trevas. Quem não conhece os “labirintos” criados pelos poetas medievais, em mosteiros, pacientemente? Sonetos circulares, tentativas palindrômicas, esferoidais, dando uma visualidade aos poemas? Cruzando acrósticos no interior dos poemas, traçando linhas diagonais pelas letras do tecido dos poemas? Até o “palavra-puxa-palavra” que pareceu ser uma grande novidade na feitura de poemas, entre nós, em meados do século passado, já era uma prática nos tempos de Gregório de Matos:
“Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não digo, porque a musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.”
CÓDIGO DE MINAS
(1963-1967)
Trata-se de um livro-síntese de toda a obra artesanal de A.A., código de Minas também código de toda a sua produção poética.
Vamos direto a alguns textos desta obra, antes de tecer qualquer comentário, pois eles antecipam o que se possa dizer...
eu em mim
eu em minas
eu em minas de mim
(...)
eu em onírico de mim
eu em omisso de mim
eu em opaco de mim
(...)
1720
o pai com a febre no pântano
o filho conferindo o ganho
o neto com os escravos
(pai rouba
filho come
neto passa fome)
(...)
1930
o pai conservador
o filho contemporizador
o neto conspirador
(pai rouba
filho come
neto passa fome)
(...)
o sogro na situação
o consogro na oposição
o genro na coligação
(na prebenda a parentela)
o irmão na câmara federal
o cunhado na câmara estadual
o concunhado na câmara municipal
(no cartório a parentela)
(...)
Publicada originalmente em 1967, com uma edição pela Civilização Brasileira em 1969, sob censura, a obra foi reeditada na íntegra somente trinta anos depois, pela 7Letras. Texto multiforme, que parte da recuperação de leis, preceitos, disposições, normas, regras e regras oitocentistas, revisitados e analisados na perspectiva do tempo, numa reinterpretação histórica que envolve a relação dos fastos passados com os desvios históricos de outros tempos. Ronaldo Polito (p. 75) registra que o poemário de Àvila comporta lugares-comuns, chavões e palavras de ordem, tradições, personagens e lugares da mineiridade, revisitada e reinterpretada ideologicamente, sem descuidar da sátira e da crítica. Seriam os “resíduos seiscentistas de que nos fala Benedito Nunes em relação à obra citada.“ Vale dizer, “interferir politicamente com a poesia no contexto adverso de nossa história contemporânea” (Ronaldo Polito, p. 78), com raiva e ironia:
O burocrata é o censor
O burro crasso é o censor
O burguês clássico é o censor
(sua informação é o estado de minas
sua informação é o estágio de minas
sua informação é a estafa de minas)
A negrita é nossa para deixar óbvia sua referência ao jornal O Estado de Minas... Polito conclui: “Este código se constitui de 21 peças a modo de monumentos-ruínas que repropõem uma leitura às avessas do baú de ossos.” (p. 79) Seriam as “reproduções infiéis” de textos, na opinião arguta do comentarista. “Em vez de argumentação, a decomposição; em vez de justificativa, o estranhamento” (p. 79).
Paralelismo referencial, justaposto e contraposto, coloca o fato e sua contrafação, lado a lado, para um confronto de idéias e valores, tarefa interpretativa que fica a cargo do leitor, pois o autor apenas monta diametricamente sua composição:
Com sua crosta
com sua crônica
de cera e diamantes
de seriados amantes
de recintados balofos
de reincidentes abortos
as deselegantes senhoras
as dezmaiselegantes senhoras
Como disse Picasso, Ávila também “não busca, encontra” para dizer que não tem um plano concebido para a montagem: vai montando num exercício de palavra-puxa-palavra, sentido buscando sentido, numa colagem de textos e intenções súbitas, no decurso do discurso. Versos interrompidos e recompostos em mosaico, como as colchas de retalhos que formam um cenário para a interpretação, pois não é explicita além de seu conjunto. Mas é nas entrelinhas — literalmente — que se encontra a mensagem do poeta
Devagar... atenção
a 200 m
fiéis saindo
da igreja
devagar... atenção
há 200 anos
fiéis saindo
da igreja
(Passagem de Mariana)
em que o poeta monta seu significado valendo-se de recursos de composição tipográfica, substituindo “a” por “há” para demonstrar que se trata de um exercício lúdico de arquitextura, de inscrição no tecido e forma do poema, onde forma e fundo são ambivalentes. As idéias surgem das palavras, de sua composição, em vez de buscar palavras para descrever idéias. Colecionador de frases-feitas, de motes e slogans, de citações recursivas, de sentidos e contra-sentidos, numa ideogramização que supera o discurso linear.
? o amor o que é o amor uma ciência
uma ocorrência uma intercorrência
uma vivência uma convivência
uma ascendência uma condescendência
uma vidência uma evidência
uma inerência uma inferência
o amor que é o Amor uma insciência?
CANTARIA BARROCA
A matéria-prima do poeta, além das palavras, dos documentos, inclui também imagens, objetos, vivências com a história de Minas que está à vista, em toda parte, não apenas nos arquivos, mas nas fachadas, na linguagem, na idiossincrasia.
Exercendo
“uma crítica exercida não apenas sobre a linguagem, mas principalmente sobre a realidade de que ela emerge, que ela exprime, que ela denuncia, realidade que cabe ao artista auxiliar a modificar com a ação sempre renovadora da arte verdadeiramente inventiva”,
prognostica o próprio A. A.. Exemplos:
& a gente pensa que está subindo
& está é descendo
& a gente pensa que está sabendo
& está descrendo
& a gente pensa que está somando
& está é diminuindo
& a gente pensa que está salvando
& está é destruindo
& a lição é fingir
& a lição é fingir de morto
(...)
A diagramação lembra, sem dúvida, os “labirintos” medievais, os textos palindrômicos, as construções textuais barrocas em forma renovada e inovadora:
& em cada conto te cont
o & em cada enquanto me enca
nto & em cada arco te a
barco & em cada porta m
e perco & em cada lanço t
e alcanço & em cada escad
a me escapo& em cada pe
dra te prendo & em cada g
rade me escravo & em ca
da sótão te sonho & em cada
esconso me affonso & em
cada cláudio te canto & e
m cada fosso me enforco&
CARTA DO SOLO
(1957-1960)
Não sendo possível apresentar e analisar todos os (muitos) livros de A.A, vale ressaltar Carta do Solo por sua singularidade, pelo retorno ao discurso que remonta ao trovadorismo popular, valendo-se de ritmo e rimas entre comuns e preciosas.
CASTRAÇÃO
Com suas iníquas
máquinas de tédio
aprende o degredo
com seus chãos reversos
— com suas escumas
de vinagre e pasmo
celebra os opróbrios
com seu desamparo
— com suas sezões
de pejo e salsugem
arqueja os verões
com seus gozos rudes
— com suas ilhargas
de fuligem e asco
deslembra as novilhas
com seus curvos favos
— com suas obesas
barbelas de adorno
ostenta a vergonha
com seu grão roncolho
IMPROVISO
A palavra justa
a mim não pertence,
busco-a nessa luta
em que não se vence,
trabalho diário,
pelo amor de sempre.
A palavra triste
a mim não pertence,
perco-a numa lide
cujo amor me vence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.
A palavra louca
a mim não pertence,
bebo-a noutra boca
e ela me convence,
trabalho diário
pelo amor de sempre.
De Carta do Solo, "Tendência",
Belo Horizonte, 1961.
CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO
(1971)
Outra obra singular. Um texto dado e outro contraposto, dialeticamente: um no sentido oficial, mandatório, ostensivo; o outro na contramão, no contra-sentido, não do código de trânsito em si, mas da conjuntura em que ele se revela. Na oposição a uma ordem estabelecida autoritariamente. Como disse o crítico Fritz Teixeira de Sales (p.119); “O código mostra uma face das coisas, mas ao poema cumpre desvendar a outra face oculta pelo código.” Em paralelo, o texto oficial e o contexto:
“dirija com prudência
divirja com prudência
divida com prudência
desdiga com prudência.”
E mais um fragmento:
não ultrapasse
quando a faixa for contínua
não ultraje a pátria
quando a farsa for contínua
não vire a página
quando a farsa for contínua
não pule a pauta
quando a farsa for contínua
não mude a prática
quando a farsa for contínua
Ou seja,”do texto vão sendo fisgadas as centelhas conotativas que haviam sido encobertas pela superfície denotativa. Por conseguinte, o processo composicional, centrado na contraposição barroca da montagem (...)” (p.120), resultando em um “efeito poético conscientizador”., “numa poética metonímica”, conforme a análise percuciente de Fritz Teixeira de Salles.
De
O DISCURSO DE DIFAMAÇÃO DO POETA
(1978)
Ávila trilhou pelas vanguardas de seu tempo, sem filiar-se plenamente a elas. Promoveu-as organizando exposições, palestras, fazendo contatos – principalmente com os membros do concretismo — os irmãos Campos, Décio Pignatari – aqueles que percorreram o caminho do poema-processo. “Affonso Ávila recolheu, da poesia concreta, a lição do apuro gráfico, da síntese, da imprevisibilidade dos signos” (Moacy Cirne, p. 151). Mas sua trilha tinha uma base barroca, híbrida, em que ele avançou, independente, no seu percurso criativo original. Inclusive na resposta à suposta alienação das vanguardas no processo político em curso. Foi engajado, assumindo uma linguagem politizada, mas equidistante das ortodoxias do realismo soviético e do discurso panfletário dos poetas da linha de protesto. Como ressalta Moacy Cirne (p. 151), seu Discurso da Difamação do Poeta (1978) “fornece ao leitor substanciosas indicações que problematizam a relação discurso artístico/discurso político”.
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Affonso Ávila e Haroldo de Campos
Lembra aquela máxima que foi muito discutida na época, atribuída a Mao Tsé Tung (outros atribuem-na a Maiakovisky) de que uma arte para ser verdadeiramente revolucionária deve ser, precisa ser esteticamente revolucionária, como no caso da poesia de Affonso Ávila.
ARTE DE FURTAR
O poeta declarou que toda criação é tributária de outras
criações no permanente processo de linguagem da poesia
O poeta afirmou que todo criador é tributário de outros no
processo de linguagem da poesia
O poeta se confessou um criador tributário de outros na
linguagem de sua poesia
O poeta não esconde que sua poesia é tributária da linguagem
de outros criadores
O poeta não esconde que sua poesia é influenciada pela
linguagem de outros criadores
O poeta não faz segredo de que se utiliza da linguagem de
outros poetas
O poeta fala abertamente que se apropria da linguagem de
outros poetas
O poeta é um deslavado apropriador de linguagens
O POETA É UM PLAGIÁRIO
Neste poema metapoético, A.A. refere-se à multivocalidade intrínsica da poesia, de recorrência às fontes primevas e contemporâneas, da força do contexto no texto.
Se quiséssemos estabelecer algum paralelo da poesia de A.A. com algum poeta vanguardista, seria com o suíço-boliviano Eugen Gomringer, considerado um dos “pais” do Concretismo, a partir de seu livro Konslellationen, de 1953. Sua obra só foi traduzida (por Percy Garnier e Philadelpho Menezes) e publicada no Brasil em 1988 – quando Avila já estava com sua obra consolidada —, embora já fossem conhecidas algumas de suas composições, divulgadas em revistas de vanguarda nos anos 50. Efetivamente, os versos repetidos com variações mínimas de palavras (ex. “resplandece intenso/ resplandece externo/ resplandece alternante”, do Gomringer), recurso largamente usado por A.A. em sua fase mais barroca, também já era utilizada por poetas como e.e. cummings. O próprio Affonso Ávila nos afirma a multivocalidade da poesia, reconhecendo que o poeta se vale de intertextualidades e até de imitação. Por certo, há quem encontre resquício de Oswald de Andrade na poesia de Gromringer (ex. “sol sul sal” precedente no poema América do Sul do nosso modernista-mor). De qualquer maneira, vale reconhecer que A.A. faz um uso mais apropriado e aprofundado do recurso do que o precedente.
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O BELO E O VELHO
(1982-1986)
Livro publicado em Florianópolis pela Editorial Noa Noa, em 1987, apenas 350 exemplares, é hoje peça disputada por colecionadores. Está entre os mais experimentalistas da linguagem na produção do autor.
te alerta poeta que a p/i te espreita
desestruturou o discurso e embaralhou as letras
te aleart paeto que o pe te recrimina
barroquizou a linguagem e descurou da doutrina
te alaert peota que o sni te investiga
parodiou o sistema e ironizou a política
te alaret poate que o womens lib te corta o genitálio
glosou o objeto sexual e teve orgasmo solitário
te alerat peato que a puc te escanteia
foi tema de mestrado e não quis compor a mesa
te alreta petoa que a cb não te reedita
gastou muito papel e pouco sangue na tinta
te alrate petao que a abl te indexa
fez enxertos de inglês e sujou a água léxica
te arealt patoe que a cnbb te exorciza
macarronizou o latim e não aprendeu a nova missa
te alatre potae que o esquadrão te desova
traficou palavrina e não destruiu a prova
te atrela ptoea que o doicodi te herzoga
suspeito sem suspeição e enforcado sem corda
i must be gone and live or stay and die
O VISTO E O IMAGINADO
(1988-1990)
Prêmio Jabuti como o melhor lançamento do gênero poesia no ano 1990. Na opinião do também poeta Nelson Ascher, “com O Visto e o Imaginado, Affonso Ávila chega ao ponto mais alto da sua poesia”, lógico, em seu momento, ou seja, no início da década dos 90... No entendimento do crítico, uma obra “auto-reflexiva”.
Trata-se de um percurso literário pela arquitetura da Pampulha, em preito (peito aberto) às contribuições de JK, Niemeyer, Portinari e Burle Marx que pautaram a arquitetura moderna brasileira: “Não ganhei a palma do Oscar/ ganhei a prancheta de Oscar.”. Niemeyer e Ávila, cada um à sua maneira, conseguiram aproximar o barroco de nossa modernidade, naquela perspectiva de Edgar Morin de que a melhor vanguarda se hasteia na tradição.
Mediterrâneo, isolado nas colinas de Minas, o poeta reclama: “Nasci num país/isento de mar”... Uns trechos do livro:
redondo
bar
ó meu mar
azul sem retórica
isto é que é brasil céu de anil
outra leitura: trata-se simplesmente de um céu de abril
iate clube
metáfora a mais
no mar a menos de minas
Poema-piada vem da tradição modernista: Oswald, Bandeira, Drummond... Affonso Ávila cultiva a paródia, a ironia, o sarcasmo e a piada...
paródia malgré le garçon
mundo imundo
se eu chamasse o Raimundo
ele traria café
não traria uma solução
DÉCADE 7
dez odes joco-sérias
(1998-2000)
Na opinião de Jacó Guinsburg, nesta fase – diríamos nós, “fin-de-siècle” do poeta, “não flui mais como um ego definido, mas como um self-universo”... Perquiridor, cáustico e extremamente crítico da convencionalidade. Sem deixar sua ironia, o telúrico e o experimentalismo. Uma relação “entre memória individual e histórico” (Júlio Castañon Guimarães, p. 195), arrematando: “uma memória sem autocomplacência”.
Versos taquirrítmicos, construindo e desconstruindo sentidos.
Seu dia de glória já passou
Advertência da gerontóloga
rosto composto mosto decomposto em cara-
quadro vegetal de arcimboldo
retro old man maquiado de fimbrias desfibradas
do diabo guisado requentado em rescaldo ou
rescoldo
(sabe-se aqui o que de culinária quando muito de
azia e suas carquejadas)
de rabanete nabo quiabo em babas mal
temperadas
mas vá lá vadio pé-de-valsa goliardo goliold(o)
young old man without gold or god oficial de
ofício das madrugadas
o dia foi duro irmão durão as favas a fatiota de
dom Bertoldo
Quand nous étions à Nantes
la saison était très belle encore
Do primeiro exercício de francês
coração sôfrego e sofrido
insofreado sexo
óbvia obviação do vivido
imprevisível acaso do nexo
arresto sequestro do amplexo
pra pro nobis compungido
genitália em genuflexo
extrema unção do sentido
CANTIGAS DO FALSO ALFONSO EL SÁBIO
(1987-2001)
Uma das mais recentes e bem engendradas peças do autor, invocando e evocando Alfonso El Sábio como se fora um sósia por antecipação. Pretexto para discursar, de forma lúdica, seu próprio memorialismo confundido com a história de Minas. E o barroco tem fronteiras que chegam às origens ibéricas...
CANTIGA DE NOSSA SENHORA DA MODÉSTIA
do nicho elipse ontem fresta
sem coroa ou aura à sobretesta
sem louvor barroco à testa
cheia de graça em enfesta
lindeira de urbe e floresta
névoa ao olho imanifesta
oculta por imolesta
flor ou bem que se requesta
coração que se empresta
a nenhum juro infunesta
em seu sol tarde seresta
de som noite que se apresta
ao ardor deste à ânsia desta
dada mão furtiva ou presta
príncipes de brim voile em véstía
rímel pó rouge à arte honesta
na esquina de amor ou festa
ao cadente beijo da hora é esta
sua luz vertia em réstia
nossa senhora da modéstia
CANTIGA DE ESPANTO E BEM-DIZER
PARA O MINEIRO HÉLIO GRAVATÁ
(fragmentos)
mas que coisa é mineiridade,
conceito que o aurélio mal dá?
— ora, pergunte ao gravatá!
de todo o ouro e do diamante
estatística haverá?
— ora, pergunte ao gravatá!
o obelisco da praça sete
de que pedra consistirá?
— ora, pergunte ao gravatá!
por que, como e quando ocorreu
ocorreu a cassação de JK?
— ora, pergunte ao gravatá!
Que fazer, Myriam, se sem fonte
a BARROCO não sairá:
— demitiram o gravatá!
minha terra tem um arquivo onde encantava o gravatá,
mas sem nosso sábio lá nenhum papel encontro eu mais...
e agora”ai de nós, ai do reino, ai de minas gerais!”
Na lide com a poesia affonsina, Sebastião Nunes (p. 217) reconhece ser o autor um “Poeta difícil por sua própria carga de originalidade, que jamais afaga o sentimentalismo dos leitores acostumados aos derramamentos e floreios discursivos”. Sobre a questão, faço minhas as palavras de Antônio Sérgio Bueno: “A poesia de Affonso tem apurada oralidade e privilegiada visualidade.” (p. 205)
Difícil, mas fascinante. Sem dúvida, estamos diante de um fenômeno singular de criação poética, que marca a nossa poesia pós-moderna de forma modelar, no melhor sentido cervantino do termo.
Brasília, maio-junho de 2009.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Affonso. Homem ao termo: poesia reunida (1949-2005). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.669 p-.
ÁVILA, Affonso. O poeta e a consciência crítica; uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda. Petrópolis: Editora Vozes, 1969. 103 p.
FORTUNA CRÍTICA DE AFFONSO ÁVILA. Introdução de Melânia Silva de Aguiar. Belo Horizonte: Secretaria de Esado de Cultura de Minas Gerais; Arquivo Público Mineiro, 2006. 483 p. ilus.
GOMRINGER, Eugen. 31 Poemas. Tradução Percy Garnier {e} Philadelpho Menezes; edição multilíngüe. São Paulo: Arte Pau-Brasil, 1988.
NUNES, Benedito. “Código de Minas & Poesia Anterior”. In: Revista Colóquio Letras. Lisboa, n. 3, p. 89, set. 1971.
by Guilherme Mansur
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