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ZILA MAMEDE
(1928-1985)
Nasceu na Paraíba mas está mais ligada às letras e à cultura do Rio Grande do Norte, onde viveu a maior parte de sua vida e onde o mar a levou para sempre. O poema Elegia, incluído na presente seleção, é como um prenúncio de seu destino. Formada em biblioteconomia, tendo exercido cargos de importância no Instituto Nacional do Livro (em Brasília) e como diretora da Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Seus principais livros: Rosa de Pedra (1953), Salinas (1958), O Arado (1959), Exercício da Palavra (1975), A Herança (1984) e Navegos (Poesia reunida 1953-1978). Poeta sutil, elegante, de um lirismo contido e introvertido, de solidão e paixão mas também, não raras vezes, com um fundo social relativo às temáticas do sertão nordestino. Drummond tinha-a entre suas predileções.
(...) fiquei feliz em ler Exercício da palavra, e até me arrependo de ter
publicado um livro também em 75. Na geração de Zila Mamede nin-
guém fez algo mais importante. Algo tão sólido, tão inovador — sem
chegar ao excesso —, onde ela não perdeu a noção do funcional, que é
básico em arte. JOÃO CABRAL DE MELO NETO (Tribuna do Norte, Natal, 22 fev. 1976.)
Veja também: ZILA MAMEDE, poema de Antonio Miranda
TEXTOS EM INGLÊS
MAMEDE, Zila. Navegos (poesia reunida, 1953-1978). Belo Horizonte, MG: Editora Veja, 1978. 201 p. 15x22,4 cm. Capa e ilustrações: Paulo Bernardo F. Vaz. Foto da poeta na última página: Carlos Lyra.
a Ludi e Oswaldo Lamartine
Na medida exata
em que a noite corre
não fico: me ausento
como quem morre
Entre lousa e livro
- único disfarce
que concedo ao tempo =
mudo-me a face
que, no entanto, vária,
inábil, reprimida,
perde-se no encontro
tátil da vida
Bola sete em rude
pano de bilhar
marco meu sem rumo
jogo-de-amar.
Quando vem a procissão
no seu passo de perdão,
Alcaide, comendador
dominam povo e andor
Cada grupo de irmandade
empunhando uma verdade:
A das Filhas-de-Maria
virgindade em romaria
Do SSmo Sacramento
vermelha de emproamento
Do Senhor Jesus dos Passos
roxo em santos e devassos
Irmãs da Ordem Terceira
terço em mãos de camareiras
Os meninos da Cruzada
fome na barriga inchada
A Banda da Prefeitura
solo e soldo de amargura
Estandartes, confrarias
escondem velhacarias
O Santo vai carregado
pelos donos do mercado
E o povo segue inocente
descalço, nu, paciente:
- A compacta multidão
carente de Deus e pão.
Salto esculpido
sobre o vão
do espaço
em chão
de pedra e de aço
onde não
permaneço
- passo.
MAMEDE, Zila. O arado. Poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959; 37 p.
13x18,5 cm.
Arado cultivadeira
rompe veios, morde chão
Ai uns olhos afiados
rasgando meu coração.
Arado dentes enxadas
Lavancando capoeiras
Mil prometimentos, juras
Faladas, reverdadeiras?
Arado ara picoteira
sega relha amanhamento,
me desata desse amor
ternura torturamento.
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OUTROS POEMAS
Não retornei aos caminhos
que me trouxeram do mar.
Sinto-me brancos desertos
onde as dunas me abrasando
tarjam meus olhos de sal
dum pranto nunca chorado,
dum terror que nunca vi.
Vivo hoje areias ardentes
sonhando praias perdidas
com levianos marujos
brincando de se afogar,
com rochedos e enseadas
sentindo afagos do mar.
Tudo perdi no retorno,
tudo ficou lá no mar:
arrancaram-me das ondas
onde nasci a vagar,
desmancharam meus caminhos
- os inventados no mar:
depois, secaram meus braços
para eu não mais velejar.
Meus pensamentos de espumas,
meus peixes e meu luar,
de tudo fui despojada
(até das fúrias do mar)
porque já não sou areias,
areias soltas de mar.
Transformaram-me em desertos,
ouço meus dedos gritando
vejo-me rouca de sede
das leves águas do mar.
Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.
Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.
Que amargura em ser desertos!
Meu rosto a queimar, queimar,
Meus olhos se desmanchando
- roubados foram do mar.
No infinito me consumo:
acaba-se o pensamento.
No navegante que fui
sinto a vida se calar.
Meus antigos horizontes,
navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
Que só existo no mar.
Rua (TRAIRI)
Nos cubos desse sal que me encarcera
(Pedras, silêncios, picaretas, luas,
anoitecidos braços na paisagem)
a duna antiga faz-se pavimento.
Meu chão se muda em novos alicerces,
sob as pedreiras rasgam-se meus passos;
e a velha grama (pasto de lirismos)
afoga-se nos sulcos das enxadas,
nas ânsias do caminho vertical.
Ao sono das areias abandonam-
se nesta rua vívidos fantasmas
De seus rios meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.
MAMEDE, Zila. O arado. Poesia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959; 37 p. 13x18,5 cm. Col. A.M.
MARCHA PARA O JUMENTO PASSARINHO
Passarinheiro
que invoou
Passaligeiro
que não bicou
Você apenas
tão jumentinho
milpradiou
a Pedradágua
lajeslisando
da Corujinha
pró Corredor.
Passacaminho
de caçuás
com resedás
se engravidou.
Passariinho
que não tem ninho
despassará?
Passadotempo
aguassecou
E passarinho
desruminando
não mais lajeiro
passarinhou.
(O Arado)
A APANHA
Do verde o espanto cresce, de repente
se enramam tabuleiros e baxios,
renascem ventanias, sons raízes,
nervuras duma terra que desperta
alucinadamente a fecundar-se.
Agora é tudo um sol encantamento
nos acres cultivados em xadrez.
As ramas do algodão reverdecidas
habitam-se de flores amarelas
irresistíndo à chega dos casulos.
Branca oferenda mostra-se o plantio
quando revinda a apanha. Apanhadores
irrompem dedilhando fibra e hastes:
estendem nas clareiras alvos seios
de carregadas plumas pelas aves.
Quando a lavoura escuta as vesperais
se cala, pois há lábios fatigados
cantando sua apanha no paiol.
Lenta, Ia fora, no rocio, a seiva
fia maçãs, funda capuchos, gomos;
As ladainhas descem dos oiteiros,
cansaços se horizontam nas esteiras
onde é o amor, sementa, lavradura
nas noites desse algodoeiro chão.
CAVALO BRANCO
Cavalo branco
aos cereames abandonado
incerto
nessa pureza de menino antigo.
Cavalo branco
branco de ninguém.
Mastiga teu silêncio;
o meu, deixa-o
largando-se aos fantasmas;
pisa-o
para que as pedras sejam seu regaço,
que as pedras são presenças neutras,
apenas.
Cavalo branco
assoberbado só :
na firmeza dos cascos
há caminhos ocultos que me esperam.
BOIS DORMINDO (I)
Para Tomé Filgueira
A paz dos bois dormindo era tamanha
(mas grave era a tristeza de seu sono)
e tanto era o silêncio da campina
que se ouvia nascerem açucenas.
No sono os bois seguiam tangermos
que abandonando relhos e chicotes
tangiam-nos serenos com as cantigas
aboiadeiras e um bastão de lírios.
Os bois assim dormindo caminhavam
destino não de bois mas de meninos
libertos que vadiassem chão de feno;
e ausentes de limites e porteiras
arquitetassem sonhos (sem currais)
nessa paz outonal de bois dormindo.
MAMEDE, Zila. Exercício da palavra (Poesia, 1959-1975). Natal, RN: Fundação José Augusto, 1975. 73 p. 13,5x18,5 cm. Inclui “Errata” ao final do livro.
RÉQUIEM PARA CERTO AMOR
JAZZ
no papel
a mágoa
o rosto
o tato
a rosa
o fato
Fixa
a palavra
passivamente
o homem
o ato
a dor
o pacto
o amor
nascente
morrente
no tempo
ex
ato.
CAMPOS, Milton de Godoy. Antologia poética da Geração 45.
São Paulo: Clube de Poesia, 1966. 207 p. 16 x 23 cm.
Ex. bibl. Antonio Miranda
CANÇÃO DA RUA QUE NÃO EXISTE
Ideia da cor da rua
Que não tem cor nem tem nome,
Sem gesto, cansada, nua,
Rua pavilhão da fome.
Rua asfaltada de lama,
Tetos negros de fumaça.
A calçada fria e cama
Para os que bebem cachaça.
Ideia que não tem cor
Verteu-se negra do fumo
Daquela rua da dor,
Da rua que não tem nome.
Perdida ideia na rua.
Na rua que não existe
Mas que, sem gesto que nua,
Ao tempo, incerta, resiste.
P A R T I D A
Quero abraçar, na fuga, o pensamento
Da brisa, das areias, dos sargaços;
Quero partir levando nos meus braços
A paisagem que bebo no momento.
Quero que os céus me levem; meu intento
É ganhar novas rotas; mas os traços
Do virgem mar molhando-me de abraços
Serão brancas tristezas, meu tormento.
Legando-me meus mares e rochedos,
Serei tranquila. Rumarei sem medos
De arrancar dessas praias meu carinho;
Que amando-as me verás nas puras vagas.
E te verei nos ventos de outras plagas:
Juntos — o mar em nós será caminho.
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MEMÓRIA VIVA DE ZILA MAMEDE. Entrevistadores: Carlos Lyra (coordenador), Alvamar Furtado, Celso da Silveira. Natal, RN: Editora Universitária, 1987. 14,5x21 cm. 33 9, Capa: Alexandre Oliveira. Tiragem: 300 exs. Ex. bibl. Antonio Miranda
ALVES, Alexandre Bezerra.. Silêncio, mar. A poesia de Zila Mamede nos anos 50. Natal, RN: Sebo Vermelho Edições, 2006. 144 p. 14X21 cm. “ Alexandre Bezerra Alves “ Ex. bibl. Antonio Miranda
ANDRADE, Carlos Drummond de. Cartas de Drummond a Zila Mamede. Org. e introdução de Graça Aquino. Natal, RN: Sebo Vermelho Edições, 2000. 75 p. 14x21 p. “Orelha” do livro por Diva Cunha. “ Carlos Drummond de Andrade “ Ex. bibl. Antonio Miranda
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TEXTOS EM PORTUGUÊS – TEXTOS EM INGLÊS
ZILA MAMEDE
Zila Mamede (1928-1985) published six books of poetry: Rosa de pedra (1953), Salinas (1958), O arado (1959), Exercício da palavra (1975), Navegos (1978), and A herança (1984). She has two posthumous works, the compilation Navegos/A herança (2003) and Exercícios de poesia: textos esparsos (2009). In Natal (RN), she was director of the Central Library at the Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Federal University of Rio Grande do Norte - UFRN) and wrote important researches in the field of Librarianship, especiallly about Luís da Câmara Cascudo and João Cabral de
Melo Neto.
(O Arado)
MAMEDE, Zila. Rosa de Pedra. The stone rose. Edição bilíngue português –
inglês. Tradutor Alexandre Alves. Mossoró, RN: Queima-Bucha, 2013. 104 p. 12,5x20 cm. Inclui errata, ao final. Edição comemorativa dos 60 anos da obra. Col. A.M
FLOR EXTINTA
Extinta flor azul na correnteza,
desfeita luz na face transitória
do tempo, voz perdida na memória
em traços, mudas formas de beleza.
Sob folhas de mangue acobertada,
extinta flor azul entorpecida
numa corola resta vã, sem vida,
navega na torrente, atormentada.
Distantes, já, em sombras liquefeitas
as pétalas marejam sóis, desfeitas
em mil fragmentações, gestos sem cor.
Nas brumas, morto caule inconformado
liberto foi de corpo ensanguentado,
perdido corpo azul de extinta flor.
EXTINGUISHED FLOWER
In the flow, dead blue flower,
undone light on the fleeting face
oftime, a Lost voice on a trace
of memory, beaut´s mute manner.
Under covered mangrove leaves,
blue flower, numb and lifeless
on a corolla, vain and useless
sails into the flow, ever teased.
Ever distant on liquefied shades
petals are weeping suns, they fade
into pieces, gestures without colour.
On a fog, a dead stalk in a bad mood
breaks free from a lost body in blood,
blue body of an extinguished flower.
SONETO GEOMÉTRICO
Ventre da noite, incesto, cavernoso,
gerando ideia longitudinal.
O frio vento insólito e anguloso
vertendo em gesto azul a flor do mal
que vinda foi de rio caudaloso
e após ter sido areia e também sal
fundiu-se logo em ângulo brilhoso
descrito num momento horizontal,
por causa de um desejo da neblina
que, pura, quis traçá-lo na retina,
em formas, já, de justificação.
Tranquila, a flor do mal purificada
despiu-se, pois, de forma avermelhada
por branco horizontal de redenção.
GEOMETRYCAL SONNET
Night hollow womb, incestuous in,
a lengthwise idea is turning over.
The unusual cold and angular wind
in blue ways pouring out the evil flower
which came from a swollen river
and after became salt and sand
blended on a shining angle ever
described on a horizontal instant,
just due to a pure mist desire
which wanted to catch it in the eye
in sooner forms of justification.
Quiet, the evil flower ever purified
— on a reddish way - got undressed
into a horizontal blank of redemption.
SONETO DA TUA VINDA ANTECIPADA
Chegaste antecipado de mistérios
tendo na face, amorfo, o meu segredo.
Na argila do teu beijo adolescente
trazes canções molhadas de esperanças
sobrepairando lábios e hemisférios
onde se oculta, informe, o teu degredo.
Te vejo aproximado e intransparente,
te sinto inatingido de lembranças.
Por onde andaste, ó ave de granito,
plantando os pensamentos? Onde a veste
a seduzir-te chamas, branco e espaços?
Meus olhos te investiram de infinito
guardando, intato, o amor que não trouxeste
na tarde prematura dos teus braços.
SONNET OF YOUR ANTECIPATED COMING
Soon, you arrived under mysteries
my shapeless secret on your face.
On the clay of your teen kiss, likewise
you bring wet songs of expectancies
fluttering lips and hemispheres
where its hidden your exile place.
I see you not so clear but nearby,
I feel you unattained ofmemories.
Oh granite bird, where have you been,
placing your thoughts? Where do you wear it
in flames, in white, in space to seduce you?
My eyes vested in you with innnity
keeping intact a love you didnt bring on it,
on your arms as a premature afternoon.
SONETO PARA O MOMENTÂNEO
REENCONTRO DA PERDIDA INFÂNCIA
Não. Esse não, porque esse quadro encerra
os seus limites infantis de outrora
quando plantava as mãos de medo e terra
nos flocos de algodão sujos de aurora.
Não esse quadro antigo em que se aferra,
surda, uma dor que uma antes criança chora
perdida no caminho que a desterra
e no pranto que então seus anos mora.
Esse não: que ainda busca o procurado
abismo de onde os traços seus, feridos,
surpreendam voz pedindo claros sons.
Não essa inútil forma em céu crestado
descolorindo os ecos ressurgidos
nos dedos que inventaram lírio e tons.
SONNET TO THE MOMENTARY
COMEBACK OF THE LOST CHILDHOOD
Not. Not this, because this picture ends
your childish limits of a past time
when you planted hands offear and grains
on the cotton flakes, all dirty of daylight.
Not this old picture which holds on tight
a dull ache which a child weeps before
lost on away that takes her out, on a cry
over the years which live therefore.
Not this: which it still looks for the tried
abyss from where your traces are wounded,
they surprise a voice into sounds on and on.
Not this worthless form on a parched sky
discolouring these echoes on a rise
among fingers which created lily and tones.
Versos de Zila Mamede, gravura de Marília Rodrigues
MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME I. Rosa de Pedra. Natal, RN: EDUFRN, 2023. 64 p
(Zila, toda poesia, v.1) ISBN 978-65-5569-291-4-
Ex. bibl. Antonio Miranda
Mar morto
Parado morto mar de minha infância
sem sombras nem lembranças de sargaços
por onde rocem as de gaivotas
perdendo-se num rumo duvidoso.
Pesado mar sem gestos, mar sem ânsia,
sem praias, sem limites, sem espaços,
sem brisas, sem cantigas, mar sem rotas,
apenas mar incerto, mar brumoso.
Criança penetrando no mar morto
em busca de um brinquedo colorido
que julga ver no morto mar vogando.
Infância nesse mar que não tem porto,
num mar sem brilho, vago, indefinido,
onde não há nem sonhos navegando.
Frustração
O poeta, em verde sonho desposado
perdeu-se na fumaça, descontente.
Onde o gesto, onde a musa permanente
fincou raiz? em solo devastado?
Palavras. Só palavras. Concentrado
o pensamento voga, de repente,
por mares de salina, indiferente
ao poeta, àquele sonho evaporado.
Fantasmas de mil coisas na retina:
um grito azul — nas sombras da neblina,
inconsequente flor a soluçar.
Em vestes de loucura embevecida,
o poeta, a muda face desprendida,
o morto sonho verde atira ao mar.
Soneto da tua paisagem interior
Para que azul manhã no pensamento
gerando louros sonhos impossíveis?
Lá fora o céu já não semeia orvalhos
e longo, o mar vai sombras sepultando.
Há corvos devorando a vil matéria
abandonada a ventos e rochedos.
O verde não é verde, é triste asfalto,
caminho vão de inúteis suicidas.
Até a branca rosa do canteiro
jaz insepulta em negra lama impura.
Não queiras desvendar inacessíveis
segredos pelos vales derramados,
pois nunca saberás, ó grande inquieto,
das flâmulas trementes nos penhascos.
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MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME II. Salinas. Natal, RN: EDUFRN, 2023. 64 p. (Zila, toda poesia v.2) ISBN 978-65-5569-298-3-
Ex. bibl. de Antonio Miranda
Caminhos
Imersos meus pés na fonte
para os sapatos calçar
os sapatos se quebraram
e os somente pés, intactos,
já não pensam caminhar.
Sapatos quase vermelhos
(abril fizera-os de branco):
Agora dois rostos negros
conduzem meus pés medrosos
pelas ruas sem lirismo
e becos que não têm mar.
Seis retângulos dispersos
prendem meus pés matinais.
As estrelas me libertam
e meus pés, nus, me acompanham
nos rios abandonados
onde flores se envenenam,
onde, estéreis, meus limites
vão chegando sem chegar.
Que cores me aniquilando?
Que tintas serão meus pés
no final dessas andanças,
nas marcas que eu não deixar?
Tripulantes descompostos
da vida que não vivi,
navegam meus pés comigo
as luas desarvoradas
e os nortes sem girassol.
Cais
Três navios fugindo, três demônios
do mar fazendo suas montarias.
Ninguém dizendo adeus, todos chorando,
eu querendo remar, mas eu ficando
de bruços nesse cais que não desejo
pois, loucas, peço as três cavalgaduras
que pisaram no espelho cal, repolhos
e encheram seus pulmões de maresia.
Três demônios velejam satisfeitos,
três navios mergulham no horizonte,
e eu nem sequer me faço mastro ou leme,
nem galopar eu posso três navios
(à noite, quando as brumas me ferirem)
presa nas rédeas desses três demônios.
Poema de viagem
Na estrada cinzenta e desigual
o automóvel se abisma.
Onde, o sono da mulher
carregando uma criança nos olhos?
A fala da criança
ficou dependurada lá fora
no tempo
a vestiu as árvores magras,
as árvores nuas,
os cactos tristes dos caminhos.
De tudo,
durou apenas
na memória
a última estrela
do anteamanhecer.
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MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME III . O arado. Natal, RN: EDUFRN, 2023. 848‘ p. (Zila, toda poesia, v.3) ISBN 978-65-5569-299-0-
Ex. bibl. Antonio Miranda
Antecolheita
Ah te saber distante, embora a chuva
amareleça em frutos e a colheita
não tarde. Já meus dedos se presentam
como instrumentos à hora matinal.
Ausentes os teus braços, a charrua
nega-se à lida, caminhança e bois;
o cata-vento remudece as hastes
que calentavam cedo anoitecer.
Não sei que faça dos celeiros. Vem:
setembro amadurece nos folhados
deixando-se nascentes para o estio.
Vem que me espanta o apascentar das ramas
e minhas mãos, de frágeis, agonizam
nessa visão de lavras, de eira e sol.
Trigal
Por entre noite e noite, essas veredas
para os trigais maduros me acenando.
Despertam-se campinas, precipitam-se
as invenções da luz na ventania.
Por entre lua e lua, essa querência
— um resmungar de espigas conscientes
do retorno às searas, que ceifeiros
já descerram olhos invernais.
Planície enlourecendo se oferece
e um mar desenha nos pendões crescentes.
Ceifeiros — seus marujos sem navios —
pescam sementes, riscam no amarelo
a saudade dos peixes inascidos
nesse (não mar de águas) mar de pão.
Um pássaro me hás de dar
Na manhã de pastoreio
ovelhas apriscando
largarás de tuas cismas
e cajado
que um pássaro me hás de dar
quando me amares.
Leve levemente mo trarás
das fontes dos teus olhos
sem nenhum pensamento
sem gesto liberto
a mansidão do teu silêncio
apenas.
À minha face matutina
descerá uma carícia
de pássaro
pousado.
MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME IV . Exercício da Palavra. Natal, RN: EDUFRN, 2023.
80’ ‘ p. (Zila, toda poesia, v.4) ISBN 978-65-5569-294-5
- Ex. bibl. Antonio Miranda
MÃE
A mulher fia o filho.
No silêncio do corpo
inaugura-se: mãe.
O ventre: curvatura de sol
levantando-se
em mansidão de horizonte.
De si própria se esquece:
tecelã da rosa que já aflora
em crescimento lento
no seu sangue.
Poema para Van-Gogh
Amarelo é giro de sol
voo de canário é
no outono
breve giro de lua
Amo esse amar,
elo entre a flor
e o espanto
agressivo de cor
Nesse chão de matiz
a dimensão do mundo
é síntese e vertigem:
em girassol explode.
Queda de pássaro no asfalto
1. Ave
arribada
salta em
cegueira
(Ousaram violar
o espaço
do pássaro)
2. Olho afundado no olho,
paira no asfalto a queda:
em que voo e canto desintegram-se.
MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUMEV Corpo a Corpo . Natal, RN: EDUFRN, 2023. 46 p. (Zila, toda poesia v.5) ISBN 978-65-5569-296-9-
Ex. bibl. de Antonio Miranda
Um rio duas vezes
a Carlos Drummond de Andrade
1.
Num só-brado
habitas o corpo:
nele,
rio novo
te precipitas
Estuário, eis que o corpo
(na planície da cama)
selvático
se rebela
e te ama.
2.
Num só-brado
arrebentas solos:
neles,
avalanche
te precipitas
Corpo atingido, ágil
o estuário
selvático
todo um delta
re-clama.
Onde
Entre a ânsia
e a distância
onde me ocultar?
Entre o medo
e o multiapego
onde me atirar?
Entre ao querência
e a clarausência
onde me morrer?
Entre a razão
e tal paixão
onde me cumprir?
Caieiras
Memórias há (vão e vêm)
das queimadas de caieiras:
a vida deslembra a gente
da vida que não se tem.
Fumaça assobe na frente
labareda vem depois.
Tijolo e telha cobrindo
a querência de nós dois.
Viola bem assentada
no florir dos cajueiros,
alpercatas batucando
o chão do chão do barreiro,
as mulatas ressurgindo
com seus dengues noveneiros.
As comadres se benzendo
frente ao santo milagreiro.
Aluás somem dos potes,
fogem em risos de tropeiros,
nas prendas dos namorados,
no aboio dos vaqueiros,
na presença do Senhor
da Casa-Grande — o festeiro,
no fogaral projetando
seu calor pelo terreiro.
Caieiras milavoengas,
tijolos: encantação
de caminhos não batidos,
de telha embicada vã,
dos pedregais dos açudes
(sem água), de solidão:
o tempo resumiu tudo
em vida-palavra-chã.
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MAMEDE, Zila. ROSA DE PEDRA, COLEÇÃO ZILA, TODA POESIA. VOLUME VI. A Herança. Natal, RN: EDUFRN, 2023. 56 p. (Zila, toda poesia v.56) ISBN 978-65-5569-297-6-
Ex. bibl. de Antonio Miranda
Retrato de João Cabral de Melo Neto
O gesto de tirar os óculos, de apoiar a testa na mão
(como para sustar a explosão das ideias e interioriza-se)
O ricto de autocomiseração (ou zombaria):
apertar os lábios num sorrisos seco e horizontal de máscara
O medo do demônio e dos infernos
e nenhuma convivência com um Deus que seja
O pavor e o pudor: onipotência e técnica
de preservar a intimidade dolorosa
A neurose da aspirina, do relógio e do tempo
como se o instante último fosse necessariamente aquele
O desejo de amor, a recusa do amor, o pecado do amor
e a casuística fidelidade ao próprio amor
A missão, a omissão e a ousadia da distância
na rotineira ausência, intempestiva presença
O degredo e o segredo na tortura
pela aspereza da dor invulnerável
A necessidade de confirmar se se “compreende!”
o debate, a fluição, a lucidez
A dialética e a disciplina do poeta
e o preconceito atávico da casta
O compromisso ascético com a palavra:
salvação e danação, perdição e deificação.
Hermelinda no espelho
O rosto exige unção de creme nutritivo
textura de loção hidratante
sedosidade de sabão adstringente
O rosto seleciona cores de potes,
formatos de tubos e de frascos
na concordância das embalagens
que se oferecem em fiteiros e vitrines
— o chamariz harmônico e ofuscante
do gás néon, luz fria, candeeiros
Espelhos salientam abusivos olhos
pincéis acentuam a descritiva sensual dos lábios
dedos massageiam impiedosas geometrias de
pescoços e colos
Sacralizados em banheiros e termas
multíplices cosméticos realimentam
as vibrações do rosto que exorciza o tempo.
Página ampliada e republicada em outubro de 2023
Página publicada em agosto de 2020
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