MOACYR FÉLIX
(1926- 2005)
Para Moacyr, “qualquer poema é político”. Escreveu versos combativos, discursivos, longos, persuasivos. “De que adiantou?”, ele indagava. Muito, certamente. Moacyr Félix de Oliveira marcou o seu tempo, com a veemência e a clarividência de um poeta comprometido, engajado nas lutas ideológicas e literárias da segunda metade do século passado.
Advogado, fez estudos de filosofia em Paris com os mestres Merleau-Ponty e Bachelard, foi editor de revistas, organizou os célebres volumes da serie Violão de Rua, interrompida pelos militares, foi editor de poesia na editora Civilização Brasileira, etc, etc, etc., no Rio de Janeiro, onde nasceu. Sua voz chegou até à espaçonave Myr, em órbita terrestre, homenageando Gagarin, o primeiro astronauta, em português, com tradução simultânea em russo...
NOTURNO
Quero dormir
o sono sem mitos, um sono longo como o da pedra
que não sonha à beira do caminho
Quero a forma das chamas congeladas
ou das sombras mudas
em que a Noite morre como um bicho escuro
sob o Olhar dos doidos
Não quero mais as grades
nem a luz sem sangue desta cidade!
Quero marijuana, ópio, cocaína
o despertar sem tempo,
mas tão sem tempo como aquela rua que termina num ponto
feito para a minha poesia dançar
vitoriosamente a morte de Deus.
1948
TRÊS APONTAMENTOS NOTURNOS
I
Eis-me aqui crucificado novamente nesta janela escura
que se dissolve
ao som de uma canção qualquer
entre as mil janelas claras de tantos edifícios.
É noite, eu sempre soube que era noite
mas nunca soube tanto como agora.
II
Absorto, dentro da noite eu pensava a própria noite.
Fiz-me coisa, coisa me fizeram; aceitei-me sem saber
onde encontrar o porquê de mim no vasto maquinário.
Perdi-me. Entre sapos e estrelas me perdi
e fui-me escurecendo aos poucos, como um bicho que apodrece.
Se levei a vida para o glabro rendez-vous dos metafísicos,
engordurei-a de espasmos sem parentes; e a fiz tão só
como um cacto no deserto em que só os ratos passeiam
ou como esse luar que naufragou no olhar do louco.
Absorto, dentro da noite eu pensava a própria noite.
III
Morres, todas as vezes
em que o mundo é simplificado como a lâmina de uma faca
que não cortou laranja ou boi, mas continuou terrivelmente faca
nas dobras de um casaco ou pensamento.
1959
Submersos mundos
na desolada areia
sonham distâncias.
E em gesto verde afloram
ao descampado,
na aventura noturna
e sempre oculta
de violentar a terra.
E se quedam atentos
ao redondo silêncio
que envolve a angústia
dos ventos sem morada,
a perquirir estrelas
e horizontes.
Enfim, amor e noite
geram o instante;
e a luz breve de um dia
outonece caminhos
na desolada areia
aos homens que acamparam.
É a terra intacta?!
(Na sombra virgem,
nas mãos, ou nos celeiros,
com sutis trajes
os frutos apodrecem.)
1951-1953
Revenir serai t une chute
écrasante.
Paul Éluard
I
Se em cada porto,longe, o verde alfombra
uma esperança, uma salgada brisa
para os pesados barcos sobre a sombra
toda feita de nadas, imprecisa
(mas devorando o peixe e o ar e o homem),
alastro as rubras aves do incorpóreo
pelo dorso desnudo de uma tarde
(que é esta parte de mim que eu vou queimando)
e insisto em que eles partam, vou deixando-os
acompanhados desta dor acesa
levar o aviso dos meus olhos, mar
e mar afora ... Mas eu fico. E finco
na sombra irreversivelmente minha
a permanência - ciclo e madureza
dos troncos regravados pela chuva,
dos troncos que se cumprem sempre os mesmos,
imóveis, simplesmente se cumprindo
sob um pórtico de nuvens giratórias ...
II
Destino. Que é o destino? Que fazer
contra estas sombras íntimas, tão minhas
como o tecido esquivo de mim próprio
preso em meus ossos, latejando um ser
de asas de sal mordendo um chão de ópio?
Ah, destino, oxalá não haja enganos
quando chegar nas pontas dessa teia
de gastos gestos lentos costurados
com o arame triste desses muitos anos!
Quando parar, no tempo, esta alma cheia
de escolhas acabadas, rosa quieta
a desmanchar-se em desenhados ventos,
ah, vida, não me vença a noite alerta
atrás do abismo
e que os abismos incendeia:
deixa eu colher no rosto um rosto certo
do tempo irreversível, som de areia
que já foi casa ou ponte, e não deserto ...
1959
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De
CANTO PARA AS TRANSFORMAÇÕES DO HOMEM
(1964)
- MEU PAI, O QUE É A LIBERDADE?
(fragmento)
A mão limpa, o copo d´água
na mesa qual num altar
aberto ao homem que passa
como vento verde do mar.
E o alto simples de amar
o amigo, o vinho, o silêncio
da mulher olhando a tarde
— laranja cortada ao meio,
tremor de barco que parte,
esto de crina sem freio.
(...)
A liberdade, meu filho,
é coisa louca que assusta:
visão terrível (que luta!)
da vida contra o destino
traçado de ponta a ponta
como já contada conta
pelo som dos altos sinos.
(...)
ENREDO
(fragmento)
I
Onde se destrói o mundo em que vivo
aí estou.
Onde há destruição, aí se define o meu caminho.
Onde os deuses se desmoronam é que apareço
sem rosto
atrás de suas formas feitas de noite e de medo.
Onde se morre, onde se nasce.
Onde se morre é que eu renasço.
(...)
“É inútil querer para o Homem
e o seu sonho a dar longas voltas
ou a inventar estradas no cárcere,
o seu sonho mais essencial
a demolir, a enferrujar
metais de qualquer ditadura.”
Estes versos fazem parte de um livro-poema – CANTO PARA AS TRANSFORMAÇÕES DO HOMEM (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964) escrito (certamente) nos dias duros do Golpe Militar de 1964 (em verdade, em maio do mesmo ano) e publicado com dedicatória a Ênio Silveira (o editor), Moacyr Werneck de Castro e Miguel Arrais, figuras logo perseguidas pelo novo regime vigente. Tem ilustrações de Poty e hoje é peça almejada por colecionadores.
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FELIX, Moacyr. O Pão e o Vinho (poesia). Rio de Janeiro: Antunes & Cia.Ltda, 1959. XVI, 162 + 2 p. formato 16x23,5 cm. Capa de Vera Tormenta. Inclui uma retrato de Moacyr Felix por KAJ. Col. A.M. (EA)
VÉSPERA
Na minha rua
guardam as pedras
dor e silêncio.
Será de sangue
o suor nas pedras
de minha rua?
Por quê escurece
a alma das pedras
na minha rua?
(No escuro da onda
o ágil barqueiro
pressente os passos
da tempestade)
FELIX, Moacyr. Em Nome da Vida. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, São Paulo: Massao Ohno, 1981. 140 p. (Poesia Hoje) 14X21 cm. Capa: detalhe de Guernica, de Picasso. Ex. autografado na Col. Bibl. Antonio Miranda.
EU E MEU POEMA
Aranha, o trágico enreda. Atónito, o mundo
não é mais o nosso lar: as coisas e o seu avesso
não dão mais o ser, somente o estar.
A planta, ereta, cresce com a sua certeza.
E eu, o homem, nem sei a minha natureza.
Assim crescemos juntos, em modos desiguais:
ela, serena e sem erros, a ouvir a Terra em suas raízes
e eu, solto no espaço em que me crio de abismos
em cada rosto que indago ou em cada chão que repiso.
Navegando em mar sem água, o meu poema flutua
entre os buracos do tempo milenar como se fosse
a flor de uma planta que até agora nunca existiu.
FELIX, Moacyr. Invenção de Crença e Descrença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 208 p. ilus. Capa de Eugêio Hirsch. 14x20,7 cm Col. Bibl. Antonio Miranda
SENTIMENTO CLÁSSICO
Pisados, os olhos com que pisaste
a soleira escura de minha face;
e por mais pontes que entre nós lançasse,
ao que de fato sou nunca chegaste.
Que distâncias lamento, e que contraste!
Gravando em cada ser o amor que nasce
não encontrei o amor que me encontrasse:
amaram sem me ver, como me amaste.
Tinhas os olhos tristes como eu tenho,
e o pranto que eu te trouxe de onde venho
é o mesmo que te espera adonde vais.
Se a mesma sóbria dor em tudo pomos,
não vês o que me calo. E assim nós somos
o que não somos nem seremos mais.
Rio,1958
Extraído de
POESIA SEMPRE. Revista Semestral de Poesia.. Ano 3 – Número 6 – Fevereiro 1995. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Departamento Nacional do Livro. ISSN 0104-0626 Ex. bibl. Antonio Miranda
Quintetto Di Autunno
("Quinteto de Outono")
I
Scrivere un poema non è giocar
di essere con parole e suoni
sul bianco indifeso
della carta o della vita che non fu vissuta.
In fondo ai vicoli senza uscita
li è che il poema si trova
lato a lato con le morti
innumere e indefinite
nella mano che lo scrive.
Muori e trasformati!
Non c'è altra via:
il poema è sempre un'autopsia.
II
Nell'immondezza della piazza le ossa del mondo
brillano come lune malate.
Nell'immondezza della piazza il poeta
vuol essere appena un uomo
con una canzone nei grilletti
di una rivoluzione necessaria.
Nell'immondezza della piazza le ossa del mondo
brillano come lune malate
aspettando la poesia, cagna
feroce e ferita, cagna
che al poeta si lega
nel rinchiudere della vita
più forte che la voragine
del desio di ammazzarsi.
Nell'immondezza della piazza, il poeta e la sua poesia
deambulano tra le ossa del mondo
la violenza del sole imprigionata nelle lune.
III
In fondo al piatto c'era un viso.
Io mai lo potei decifrare;
la sua velocità era diversa della mia,
in questi momenti la mia speranza era
uno straccio che nè più vestiva
la fatica della vita spaventata.
In fondo al piatto al mio paese i topi
usavano la faccia dei dominanti
e mangiavano e mangiavano questo viso.
Un viso che mai spariva
ogni giorno sepolto e ricomposto
nel viso di ogni morte operaria
in ogni cosa ch'io vedevo.
In fondo al piatto c'era un viso
ch'io mai potei decifrare.
Al di là di me, però, quello era il mio viso, il viso
in cui neanche mi incontrai
come chi compie, infatti, la propria legge.
IV
Spezzai le pareti di vetro che mi avvolgevano.
Spezzai le pareti di mattone che mi incatenavano.
Spezzai le pareti, tutte le pareti, di pietra e pensieri.
Spezzai la crosta di tutto quello che mi limitava
e saltai — anima dei morti — verso l'occhio del lago
che guardava dell'ai di là, molto al di là
di quello che mi insegnarono essere fisicamente l
e rotazioni dell'eternità nell'universo infinito.
Fu quando rilessi la parola stoltezza
nel certificato di decesso della poesia
natamorta perchè nata lungi
dalle dimensioni del vento in cui si muove
nel ventre dell'universo la vita
incendiata dai gridi di quello che dovrebbe essere del sole
sepolti sotto la storia e sotto la tragedia.
E la solitudine, essa diventa totale e notturna
quando saltiamo la cerchia che ci nasconde
della nostra morte promettendoci ai cimiteri
e lì ci fermiamo, delirio appena, senza sentire
la fragile perfezione delle varie morti di un fiore
per secoli e secoli a colorirsi, ostinato e bello
sulle non-risposte del silenzio in tutte le tombe.
V
Sì, c'è sempre un suon di morte dissecato
sotto la parola che nomina ed ammansa
i moti in cui si trasforma la vita umana
tra l'essere e'l non essere, tra quel che è e quel che non fu.
Morte e trasformazione: questo io perseguo
in questo mondo in cui creare è anche distruggere.
Perché non esiste modo di camminare
nel poema, che è sempre un'autopsia
dell'attimo, porta infinitamente aperta
nella carta
con le chiavi del bianco a liberare l'indicibile
partendo dalla metafora che seppe
muoverlo in noi come un essere vivente
dell'infinito in cui alle volte nostra vita è
sentimento e sogno al di là del suono e della parola.
Traduzione de Fausto A. L. S. Ricca
Página ampliada em dezembro de 2017
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