POESIA PORTUGUESA
Colaboração de NICOLAU SAIÃO
RUY VENTURA
(Portalegre, 1973) é professor na península da Arrábida, a trinta quilómetros de Lisboa. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003), Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006); em 2009 editará o original Chave de ignição, com edição simultânea em Portugal (edições Cosmorama) e em Espanha (Littera Libros).
Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005), Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003).
É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Poemas e/ou livros seus estão traduzidos em castelhano, francês, inglês e alemão. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.
Coordena o blogue Estrada do Alicerce http://www.alicerces1.blogspot.com/
(Os poemas apresentados pertencem a Vale dos Homens, livro inédito.)
POEMAS INÉDITOS
[de Stefan Zweig, a meio do Atlântico]
a língua arde. queima
o coração, as veias, as células.
entre duas árvores, a corda
aperta a garganta. dissolve o anel e a saliva –
essa melodia
no interior do dragoeiro.
o incêndio alastra, sempre de negro.
sobe a escada, coloca sobre os olhos essa espada.
a língua arde. deixa entre as cinzas
vestígios de sombra. nada mais encontro
entre os escombros. antes da derrocada
levo para longe a última gota de sangue.
a saliva preenche o desespero,
o sopro do oceano.
fico deste lado, junto do medo.
tento salvar a última fronteira.
deixei este livro no sopé da montanha.
consigo ler. os símbolos
contudo têm pouca nitidez –
mesmo quando os entendo.
a língua arde. a flama acompanha-nos
neste forno. a chama desfaz
os ossos e o cabelo, o anel
e a melodia onde tento navegar.
de que vale cruzar o horizonte
quando a cinza guarda rebentos e palavras?
o incêndio alastra
deste lado do oceano. o sal lava o corpo
e a linguagem. o fogo devora a distância.
este fogo
encontra no coração
(na terra?)
essa ave nascida no início.
[de Zénon p/ Marguerite Yourcenar]
não existe passagem.
nesta barca dissolverei
a parte branca do caminho
no forno que hoje regressa
à temperatura do teu corpo.
em que tear irei tecer de novo o horizonte?
percorro a mina, o fogo e a fogueira.
encontro no odor do campo
um pouco de saliva.
a cicatriz permanece
apesar do nome.
a ferida corrói a alma.
respiro o sopro do oriente.
transfiguro o ouro em madeira –
como essa flor que nasce na lanterna.
atravessarei a ponte
pela última vez
sem ver que a água reflecte
um rosto estranho.
nada reconheço na paisagem e no medo.
apenas o calor no cume da montanha.
o sereno acorda-nos.
em que século ficou
a última página
desta língua que enegrece?
a saliva congela.
percorro a mina, o fogo.
encontro a fogueira.
não existe passagem.
a barca apodrece.
[de Hans Castorp p/ António Nobre]
iluminei os teus passos, o cemitério
(longe da cidade, entre rochedos,
lágrimas e uma pequena alegria)
uma ferida no olhar
tão longa quanto a neve
modelando o caminho que percorremos.
a respiração acolhe-nos.
o navio, ao longe, dissolve
o ouro e a madeira apodrecida.
nada vislumbramos nas duas esferas.
o pó e o frio guardam esta monotonia eterna.
à superfície, esse verde dos prados
dissolve o sangue, abandona os pulmões,
a voz, a garganta (ligeiramente trémula),
a varanda – e este sopro na circulação.
falar em luto iria embelezar as coisas
dizes olhando de longe o teu irmão.
o mundo recolhe esta tristeza.
dentro do gelo –
um insecto minúsculo
que o tempo resguardou
como vestígio da última morte na floresta.
a chuva incendeia o baile,
essa dança ardendo no interior da casa.
uma palavra: o movimento.
a circulação do sangue
espargindo a montanha.
[de Wradislaw Szpielman p/ Roman Polanski]
aguardo na sombra o sangue.
em ruínas, guardo sombras e palavras –
o verde dessa melodia
e algumas vozes cantando.
recolho, na síntese deste corpo,
a estrada, os teus olhos
vigiando a cidade.
respiro a pólvora. desfaço
entre os dedos este muro,
a linha do comboio
transportando as raízes desta árvore.
a madeira seca. a seiva
desce este caminho, a cinza
desse caminho
sem passos, sem memória.
procuro a voz e o alimento,
a semente (a cinza?)
que nos dedos germina.
na sombra e na saudade.
aguardo o sangue (a morte?),
esta memória. a pedra e a cal
reconhecem a secura
da pele
em ruínas.
os músculos vencem a febre e a cinza.
o pilar subsiste
no centro da avenida.
este corpo nasce
como um rebento
entre duas raízes.
[de H. P. Lovecraft p/ o tradutor d’ “Os Fungos de Yuggoth”]
agitada pelo vento, a torre.
um grito na montanha.
uma porta, tão longe do universo.
este livro onde desfaço o mundo.
séculos e séculos, alimentando-me deste gelo.
dissolvo a pele, os ossos, o sangue.
nesta caverna, recomponho o rosto.
coso memórias e desesperos,
angústias e espantos. mesmo quando sonhava
ia apenas revendo aquele prado antigo
rodeado por um pano de muralhas,
velando uma parte desse deserto.
uma porta. aberta para que lado?
o frio conserva este corpo
em agonia. a mão acaricia esta ferida.
a cicatriz tarda em aparecer.
ao longo das margens, a noite
vai caindo. a rua arde. dissolve
nesta água a habitação do tempo.
agitada pelo vento, a torre
separa-nos do abismo.
um sinal na pedra. aquela porta –
sinuoso caminho
no labirinto do medo.
[de Casaubon p/ Umberto Eco]
a beleza da colina
dissolve no sangue as raízes do medo.
noutra ordem, as células
misturam no cérebro
o tempo e a ilusão do tempo,
matéria e aparência de matéria
– que uma legenda corrompida
codifica na memória.
a prumo sobre a terra,
o segredo preenche o vazio dos ossos.
ele próprio vazio, governa
o alimento e a viagem
por esse vale onde a pedra
sustenta a contemplação
das vísceras do mundo.
ouro e excrementos
mantêm de pé o edifício.
mesmo falso, o observatório
devolve-nos uma imagem
de família, traços e formas
num rosto perdido há tantos anos.
legítima, a incerteza
dissolve na sombra as raízes do medo.
a vida conserva-nos sem matéria.
existimos sem eixo, sem prumo –
procurando em qualquer lugar
a gravidade que nos liberte
e faça renascer das cinzas.
[de Orlando p/ Virginia Woolf]
destruo o tempo para que o espaço me revele –
para que o espaço se revele
enquanto um corpo (feito de palavras?)
modifica a estrutura da matéria. a carne e a madeira
dispõem de outro modo moléculas e memórias.
vulva e tecidos cavernosos, um carvalho
e uma criptoméria, vínculos e outros tecidos mecânicos
são talvez capítulos ou estrofes de um texto ininterrupto
em que o vinho e a tinta registam
fatias de lembrança transmitidas pela seiva
de uma raiz com vista para um território sem limites.
cópula e nascimento dissolvem-se
no palimpsesto das células. a voz
responde a outras vozes (de dentro? de fora?).
o vórtice revela espaços sobrepostos.
o tempo rebenta. espalha sobre o homem
estilhaços que nenhum cirurgião
poderá retirar.
[de Luiz Pacheco p/ os seus abutres]
do escarro e do mijo não reza a história do mundo.
da esporra há ténues vislumbres
entre os dentes de uma narrativa
cujas pernas se abrem a qualquer membro sem sombra.
o sarro permanece no copo
por onde bebemos o último vinho.
(deixou nódoas nas paredes e no tecto da casa
que nem várias camadas de tinta conseguiram ocultar.
a merda, mesmo limpa, continuará sendo merda.
não vale a pena escondê-lo.)
é preciso descalçar
as frases, mesmo que os pés sejam feios.
mostrar a trampa
que cobre uma parte do mundo, os ossos
(mordidos pelos cães?) que alguém lançou no carneiro.
e, no entanto, há luz no meio do entulho: livros
colocados numa mão incerta
cuja humidade permite o nascimento
de fungos e, mais tarde, de pequenas plantas
(haverá por ali um grão de mostarda
ou outra semente cuja árvore um dia reconheceremos?)
livros – e tecidos impuros
com húmus e estrume
no meio da batalha.
fósforo e amónio não fertilizam
a linguagem. só um estrume ácido
(ou a acumulação de matéria orgânica sobre o solo)
dá garantias de crescimento.
mesmo que no teatro da existência escolhamos
vestes apodrecidas – e o cheiro da flatulência e dos excrementos
afaste a multidão
(tão tarde vos chegastes, quando a minha carne
trazia apenas um odor que vos agradava)
são essas as palavras que interessam
descobertas, com paciência, entre
quilos e quilos de trampa.
Página publicada em janeiro de 2009
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