NICOLAU SAIÃO
nasceu em Monforte do Alentejo, 1946. Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Publicou Os Objectos Inquietantes (prémio nacional Revelação/Poesia 1990, da Ass.Port.Escritores), Flauta de Pan e Os Olhares Perdidos (poesia) e Passagem de Nível (teatro). Outros livros inéditos ou em elaboração: As Vozes Ausentes (prosa diversa), Cantos do deserto, Escrita e o seu contrário (poesia), As estrelas sobre a casa, O desejo dança na poeira do tempo (teatro), Em nós o céu (policial) e, em Moçambique, saído pela mão de António Cabrita, O armário de Midas e, a sair, Poemas dos quatro cantos (poesia). Editado pela paulistana Ed. Escrituras foi dada a lume no Brasil a antologia de poesia e pintura Olhares perdidos, organizada por Floriano Martins.
Traduziu Vestígios, de Gérard Calandre e Fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (publicado por Black Sun) e orientou o suplemento Fanal. Organizou Poetas na surrealidade em Estremoz (antologia). Na rádio, realizou o programa cultural Mapa de viagens.
É colaborador da revista virtual brasileira Agulha e do Jornal de Poesia e do luso TriploV, bem como de Saudade e de DiVersos – revista de poesia e traduções.
Vive em Atalaião (Portalegre).
“O olho posto sobre a obra de Nicolau Saião, o convívio com ela, ir tomando seu pulso a cada desdobramento de imagens, sondando como as presenças evocadas saltam do plano poético para a plástica, como ela rabisca imagens que depois transitam com exímia vertigem de um ponto a outro, esta intimidade de figuras que saem e entram a todo instante em salas aparentemente distintas, exuberância serena com que o poeta se mostra e ao mesmo tempo oculta partes de si, dá-nos uma prazerosa sensação de entrar no espelho como se tratasse de um mergulho na memória. Este é o poema central de sua obra: trazer de volta da transfixão dalinguagem o que cada um de nós considera único em sua experiência.”
FLORIANO MARTINS no prefácio de “Olhares Perdidos”, edição brasileira da editora Escrituras, São Paulo, 2006.
SEIS POEMAS EUROPEUS
Encontro em Paris
Atravesso os bairros e sou um homem só entre as casas
onde patrões e criados vão vivendo o seu dia
E Paris é para mim a face de Manolo Fuertes Refólio
o barbeiro que sabia aparar-me o cabelo
e que depois se exilou nestes lugares de salvação
Até Saint Michel verei pelo menos 60 conhecidos
mas o seu rosto já não é o que me lembro de lhes ver.
Notre Dame fica perto e repousa tranquilamente.
Todos os anos a imaginava, como que levitando na manhã
esperando os seus fiéis franceses que a sonham amorosamente.
A ela voltam uma e outra vez e olham em redor admirados
pensando se um de nós acaso não será um príncipe ou um mago
vindo de terras estranhas debaixo de um impulso fremente
Depois baixam os olhos com tocante delicadeza
pois a nossa expressão entrou-lhes bem no centro do coração
e o ar em volta ficou como se lhe tivesse fugido o sol.
(2003)
Querido primo Jacob
Chamas-te assim, mas eu apetecia-me chamar-te Tiago
ou Jaime, para dar fantasia aos meus versos
Vou caminhando e pensando nas presenças que às vezes
me visitam nos cinco dias de semana
em que vale a pena trabalhar
os tais em que se ganha ou se perde o universo.
Mas eu digo-te: lembro-me do pai e da mãe todos os dias
e estão como dantes estavam: risonhos e um pouco perdidos.
Mas a sua semana entrava pelo mundo adentro.
Quanto a mim, sou apenas o NS
o seu menino tão cansado e sempre repleto de memórias.
(Arronches, 2004)
NA COZINHA
Deuses que entram e saem
com o pão
a fruta
uma bilha de água
um gesto de mãos
um de barriga ao léu
dois três anos
que saberá do seu futuro tempo
interroguemo-nos
A mamã põe os olhos no ar
assim são os sonhos
passeios por lugares insondáveis
áfrica américa
o choro do filósofo encobre o Sol
com as suas mãos emagrecidas acaricia um ombro
O mais pequeno olha a um canto
o rasto de algum familiar
avós sobrinhos comadres
um burrinho branco junto ao maciço de dálias
Se amais as lindas canções
ide até ao princípio da noite
(Vale do Jerte, 2000)
O DIA DE PHILICARI
Georg Friedrich Haendel
em Meerbusch
no Hotel
com mendigos à porta
um de perna quebrada
outro zarolho
outro recordando os seus dias felizes
uma tarde junto ao rio
com uma pequena que o adorava
"Zozi!" dizia ela "Zoziiiii!"
De boca aberta pensa
Coça uma perna chagada
Olha o outro do lado é uma outra
De saias até aos pés olhando o homem
que agora chega de roxo e ouro, as meias verdes
um comerciante célebre que dias antes enviuvou
"Zoziiii!" chama uma voz fresca morta esfomeada
Ele sorri a boca enegrecida os olhos mais fundos
Junto ao rio os mesmos barcos, a mesma água.
Philicari prende o violino, a mão hábil o queixo recolhido
O arco a direito sobre as cordas um sussurro rouco
Haendel sai, a carruagem vai partir os mendigos
olham-no a pouco e pouco mais longe na rua depois
escurecendo mais e mais
deserta.
(Bruxelas, em 99)
Nazaré (vila e praia)
Não a outra, mas essa: a que do Sítio nos aponta o ocidente
E depois outras rotas para todos os quadrantes:
a praia de dentro
o jardim de fora e do fundo da nossa pequena
silhueta
- morte que se negou.
A solidão da praia do Norte
o assombro da luz
que alimenta a penumbra
Tudo o que por alegria calamos num passo estugado e
um pouco temeroso
Não importa, dizias tu, além é o mundo e ouve-nos
- pequeno veraneante de roupas coloridas que a alguém entregou
sua voz seu segredo
seu nítido momento.
E agora
não a outra mas tu
a que não entra nessa história sagrada em que Ester
colocou seu cântaro perto do muro caiado
e que em Azarias achou seu derradeiro refrigério
A mão a asa perfeitamente modelada
e depois seu abalar para sempre, seu
trespassado e imperfeito corpo até à claridade
- bóias barcos refluir de vagas as máquinas
fotográficas ao ritmo do que de longe a serra da Pederneira
conserva e permite.
Não a outra mas tu
a que outrora vi entre céus e uma sombra fugaz
Meu íntimo refúgio igual a mil a cem a um apenas.
As flores os fogareiros para o trabalho do peixe a jorna entregue
a quem na memória retém surpresa e saudade
ou simplesmente no cimo da falésia avistou
horizontes ruas incólumes a escuridão das dunas.
RELÍQUIA
Onde está o silêncio onde jaz o silêncio?
Não neste braço sujo cortado
Não neste tapete espesso neste bloco de apontamentos
onde se cruzam insultos rimas
Não no pequeno perímetro das veias
- afinal tudo tudo entre nuvens de carbono
semelhantes a um bafo de camponês sobre a neve
onde se esmagavam insectos e excrementos de lobo
O primo velho outrora mo ensinara num mês adolescente.
Onde em que ilha de desolação
sufocado incerto esse silêncio soberano
onde jaz cerzido por traços de faca de pedra
Não não o barulho de um passo que caminha para a beleza dum rosto
saindo de um vazadouro para a lama musgosa da margem
Brillhante como celofane
O silencio que respira
Sim o silêncio morno de quem procura o vazio
ou de quem busca uma côr imersa na carne recordada
da mão faminta de muitos negrumes alheios
O silêncio que se recolhe
que se desdobra
que nos relembra de momentos e perdas
O silêncio que permutamos
O silêncio para além da luz entre os olhos de uma fera morta.
(Monforte, inverno de 2006)
Página publicada em dezembro de 2008
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