POETAS DO AMAZONAS
Coordenação: Donaldo Mello e Inês Sarmet
Inês Sarmet
s/fotos do encarte do CD A criação do mundo |
THIAGO DE MELLO
1926-2022
Amadeu Thiago de Mello nasceu na cidade de Barreirinha, no Amazonas, em 30 de março de 1926. Depois de fazer sua escolarização inicial em Manaus, foi para o Rio de Janeiro, onde veio a ingressar na Faculdade de Medicina, tendo desistido do curso no 4° ano. Viveu longos anos de exílio no Chile, onde permaneceu até a queda de Allende. É membro da Academia Amazonense de Letras e mora, há anos, em sua cidade natal, em casa projetada pelo arquiteto Lucio Costa. Vasta é a obra de Thiago de Mello, que acaba de receber bonita homenagem, realizada em 19 de abril de 2006, na Câmara dos Deputados, em Brasília, em comemoração aos seus 80 anos. Muitos de seus livros foram traduzidos no Chile, em Cuba, na Argentina, em Portugal, nos Estados Unidos, na França, na Alemanha e na Inglaterra, entre outros países. Thiago de Mello é tradutor de Pablo Neruda, T.S. Eliot e Ernesto Cardenal, entre outros e sua obra também está apresentada em discos, alguns com locução do autor, como Poesias de Thiago de Mello (1963), Mormaço na Floresta ( 1986), Os Estatutos do Homem e Poemas Inéditos ( 1992) e A criação do mundo (2006).
Entre os livros de poesia publicados poderiam ser destacados: Silêncio e Palavra (1951), Narciso Cego (1952), Vento Geral (reunião dos livros anteriores e mais três inéditos: Tenebrosa Acqua, O Andarilho e a Manhã e Ponderações que faz o defunto aos que lhe fazem o velório - 1960), Faz Escuro mas Eu Canto ( com 1ª edição em 1965 e muitas reedições),A Canção do Amor Armado ( 1ª edição em 1966), Os Estatutos do Homem (com desenhos de Aldemir Martins, 1ª edição em 1977), Horóscopo para os que Estão Vivos ( 1ª edição em 1966), Mormaço na Floresta ( 1ª edição em 1981), De uma vez por todas (1ª edição 1996 Prêmio Jabuti 1997) e Os Estatutos do Homem, em edição de luxo trazida a público pela Valer em 1999. Publicou também, vários livros em prosa , como Borges na Luz de Borges ( 1993) e Amazonas, Pátria da Água ( edição de luxo, bilíngüe - português e inglês -, com fotografias de Luiz Cláudio Marigo, em 1991).
"Misturando prosa e poesia, crônica e até anúncio imobiliário, o amazonense de Barreirinha, o cidadão do mundo, o personagem de nossa época, o poeta de A Canção do Amor Armado penetra na memória, obtendo a síntese do urbano e do telúrico, do lírico e do social. Comprometido com a sua terra e com a sua gente, de uma vez por todas Thiago de Mello assume a expressão de um poeta verdadeiramente universal." CARLOS HEITOR CONY.
“Precisamos do menino que você guarda em você e que ajuda a ser mais homem o homem que você é. Agüente o barco, querido amigo! Muitas madrugadas, cheias de orvalho macio, esperam por você. Andarilho da liberdade, você tem ainda muitos trilhos a percorrer; seus braços longos, muitas crianças a abraçar; suas mãos, muitos poemas a escrever." PAULO FREIRE
“Thiago de Mello é um poeta na contramão da modernidade e isso bastaria para distanciá-lo de seus pares, mas há ainda um fator circunstancial a considerar: desde que retornou do exílio, em 1978, voltou a viver na distante Barreirinha, pequena vila de 5 mil habitantes encravada no Baixo Amazonas, em pleno coração da floresta. Quando volta do sul do País, depois de voar até Manaus e de lá num pequeno avião até Parintins, o poeta ainda é obrigado a enfrentar uma longa viagem de barco, de mais de cinco horas, até chegar em casa.” JOSÉ CASTELLO
“A candente autenticidade de seus versos decorre, além do mais, da firme coerência que existe entre a obra e o modo de ser do poeta. Não se fechando em gabinetes, ele se põe por inteiro nessa luta em busca da justiça e da dignidade, e tem pago duro preço por isso, inclusive detenções arbitrárias e o amargor do exílio." ÊNIO SILVEIRA
“Imenso, em sua ternura vestida de branco, o poeta passeia por entre a bruma da memória. E não tropeça, e não vacila, porque esse é o caminho que ele trilha, com seu andar cambaio de caboclo suburucu, desde sempre”. ZEMARIA PINTO
ARCO E LIRA AMAZÔNICOS
Comovi-me apreciando Thiago de Mello fazer leitura de seus poemas no Salão Nobre da Câmara Federal, em noite memorável. Ali, ineditamente, conseguiu o poeta amazônico-universal reunir a bancada do Estado do Amazonas, como assinalado aos presentes. E assim, transformar senhores deputados e senadores em intérpretes de um jogral, como simples colegiais – “de castigo” – declamando Os Estatutos do Homem.
Numa hora em que nosso país vive grande sofrimento e os políticos, em especial, estão desacreditados, ouviu-se soar profundo, na voz sumida de um senador em plena senectude: “Artigo VII - Por decreto irrevogável fica estabelecido/ o reinado permanente da justiça e da claridão,/ e a esperança será uma bandeira generosa/ para sempre desfraldada na alma do povo.”
Como um solene violino Stradivarius, então ecoou alegre - aos oitenta anos -, o canto da lira thiaguiana, lançando (seta certeira) aos corações enternecidos um bálsamo revigorante: a poesia do “menino de Barreirinha”, uma vez , sempre. DONALDO MELLO, em 20 de maio 2006
Veja também: Poema “O Ofício de escrever” na seção de Poesia infanto-juvenil
ANICO HERSKOVITZ, 1988
Montevidéu, Uruguai) Xilogravurfa 20x29 cm. Acervo CAL.
ARTIGO 5º ESTATURO DO HOMEM,
do poema de THIAGO DE MELO.
Extraído de: ACERVO DE ARTE – UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Análise Werngartner Ferreira et al. Brasília, DF: Editora da UnB, 2014. 157 p. 24x24 cm. Capa dura. ISBN 978-85-230- 1142-0 de Ciência da Informação, no prédio da Biblioteca Central.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
POEMS IN ENGLISH
TEXTO EM ITALIANO
LOS ESTATUTOS DEL HOMBRE
Artículo 1
Queda decretado
que ahora vale la vida,
que ahora vale la verdad,
y que de manos dadas
trabajaremos todos
por la vida verdadera.
Artículo 2
Queda decretado
que todos los días de la semana,
inclusive los martes
más grises, tienen derecho
a convertirse en mañanas
de domingo.
Artículo 3
Queda decretado que,
a partir de este instante,
habrá girasoles en todas las ventanas,
que los girasoles tendrán derecho
a abrirse dentro de la sombra;
y que las ventanas deben permanecer
el día entero abiertas para el verde
donde crece la esperanza.
Artículo 4
Queda decretado que el hombre
no precisará nunca más
dudar del hombre.
Que el hombre confiará en el hombre
como la palmera confía en el viento,
como el viento confía en el aire,
como el aire confía en el campo azul
del cielo.
El hombre confiará en el hombre
como un niño confía en otro niño.
Artículo 5
Queda decretado que los hombres
están libres del yugo de la mentira.
Nunca más será preciso usar
la coraza del silencio
ni la armadura de las palabras.
El hombre se sentará a la mesa
con la mirada limpia,
porque la verdad pasará a ser servida
antes del postre.
Artículo 6
Queda establecida,
durante diez siglos,
la práctica soñada por el profeta Isaías,
y el lobo y el cordero pastarán juntos
y la comida de ambos
tendrá el mismo gusto a aurora.
Artículo 7
Por decreto irrevocable
queda establecido el reinado permanente
de la justicia y de la claridad.
Y la alegría será una bandera generosa
para siempre enarbolada
en el alma del pueblo.
Artículo 8
Queda decretado
que el mayor dolor
siempre fue y será siempre
no poder dar amor
a quien se ama,
sabiendo que es el agua
quien da a la planta
el milagro de la flor.
Artículo 9
Queda permitido
que el pan de cada día
tenga en el hombre
la señal de su sudor.
Pero que sobre todo
tenga siempre
el caliente sabor
de la ternura.
Artículo 10
Queda permitido
a cualquier persona,
a cualquier hora de la vida,
el uso del traje blanco.
Artículo 11
Queda decretado,
por definición,
que el hombre
es un animal que ama,
y que por eso es bello,
mucho más bello
que la estrella de la mañana.
Artículo 12
Decrétase que nada
estará obligado ni prohibido.
Todo será permitido,
inclusive jugar con los rinocerontes
y caminar por las tardes
con uma inmensa begonia em la solapa.
Sólo uma coisa queda prohibida:
amar sin amor.
Artículo 13
Queda decretado que el dinero
no podrá nunca más comprar el sol
de lãs mañanas venideras.
Expulsado del gran bául del miedo,
el dinero se transformará
en una espada fraternal
para defender el derecho de cantar
y la fiesta del día que llegó.
.
Artículo final
Queda prohibido
el uso de la palabra libertad,
la cual será suprimida de los diccionarios
y del pantano engañoso de las bocas.
A partir de este instante
la libertad será algo vivo y transparente,
como um fuego o un río,
o como la semilla del trigo
y su morada será siempre
el corazón del hombre.
(Tradução de Pablo Neruda, conforme constante em
Os Estatutos do Homem, Vergara & Riba Editoras, 2001)
MELLO, Anisio. Lira amazônica - Antologia. Vol. i São Paulo: Edição Correio do Norte, 1970. 286 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
RELVA DOURADA
Havia um pouco de céu
derramado pelo chão:
podia ser um arco-íris
crescendo cor no capim.
Parecia um grande pássaro,
um torso de animal nobre,
lembrava um vaso sagrado.
Era o milagre em silêncio:
um milagre longo e esguio
na claridão da manhã.
De repente era um pendão
atravessado no vento.
Feito de mito e de azul,
repousava em seu mistério
imóvel: porém chegava
como se fosse um clarim.
Tão simples como uma flor,
e límpido como o orvalho
— não era deusa nem pássaro
nem arco-íris nem mito;
mas simplesmente uma moça
serenamente estendida
dourada dentro do sol.
AS DÁDIVAS GUARDADAS
(Para Theresa)
De tudo quanto me trouxeste à vida
— aonde chegaste como chega um pássaro
grande e cantando a um campo triste
— eu guardo
o teu riso chegando e me esgarçando
a tristeza e esgarçando, de tão doce,
as brisas que passeavam pela noite
subitamente transformada em dia.
Guardo portanto a aurora. Guardo a infância
redescoberta em mim por tuas mãos
sepulta que ela estava sob sombras.
Guardo o primeiro cântaro de amor
que me fizeste florescer ao peito;
a dança do carinho que pousaste
pela primeira vez nas águas ermas
do açude fundo e velho dos meus olhos.
Guardo o meu nome escrito na ternura
de tua voz e guardo a tua voz
no recado eterno que me deste.
Guardo a poesia de passear contigo,
o teu braço no meu, pelas manhãs,
e guardo o roçagar das tuas roupas,
desfraldadas aos ventos que inventei.
De tudo o que me deste, guardo — se guardo —
como quem guarda o sangue com que nasce —
a alegria a bailar nas madrugadas
cheias de um sol que esplende em tua boca;
o silêncio ofegante da entressombra
envolvendo, amorosa, os nossos corpos
tão companheiros em perene abraço,
como outrora jamais eu pressentira,
feito de corpo e coração.
Eu guardo
as bandeiras que ergueste, balisando
o meu caminho torto, e as esperanças
— as esperança todas: a da casa
simples e grande e cheia de crianças,
guardada e resguardada pelo amor.
De tudo quanto me trouxeste à vida,
guardo-te o amor: como quem guarda um mar,
um mar alado, um mar feito de pássaros
voando, voando. Assim te guarde o amor:
como quem guarda um mar dentro do peito.
(Rev. “Manchete”, Rio de Janeiro, 28-1-560
EN ESPAÑOL
Unión LIBRE
www.unionlibre.rakumin.org/
No. 470 - 26 de abril de 2020
Curandero y fotografías Enrique Hernández-D’Jesús Thiago de Mello nació en 1926, en Barreirinha, Brasil, en el centro del corazón de la Selva Amazónica. Thiago de Mello es un patrimonio del Amazonas, de la poesía latinoamericana y del mundo, un poeta que ha transitado con su aptitud, con su palabra, su ética, su vida, su tierra y su gente. Tiene importantes libros publicados desde 1951. En el conjunto de su obra, se destacan: Está; Oscuro pero canto; La canción del amor armando; Bochorno en la floresta; Viento general y En un campo de margaritas; Noticias de la visita que hice en el verano de 1953 al río Amazonas y sus barrancos; Arte y ciencia de elevar cometas; Amazonía, La niña de los ojos del mundo; y El pueblo sabe lo que dice. Su poema Los Estatutos del Hombre fue editado en más de treinta países. Ha traducido al portugués a César Vallejo, Pablo Neruda, Ernesto Cardenal y Eliseo Diego, entre otros. Thiago de Mello piensa que el arte debe siempre servir a la vida; que además de su estética, debe tener también una finalidad ética.
Curandero y fotografías
Enrique Hernández-D’Jesús
LOS ESTATUTOS DEL HOMBRE
Thiago de Mello
Traducción de Mario Benedetti:
Artículo 1.
Queda decretado que ahora vale la vida,
Que ahora vale la verdad,
Y que de manos dadas
Trabajaremos todos por la vida verdadera.
Artículo 2.
Queda decretado que todos los días de la semana,
Inclusive los martes más grises,
Tienen derecho a convertirse em mañanas de domingo.
Artículo 3.
Queda decretado que, a partir de este instante,
Habrá girasoles em todas las ventanas,
que los girasoles tendrán derecho
a abrirse dentro de la sombra;
y que las ventanas deben permanecer el día entero
abiertas para el verde donde crece la esperanza.
Artículo 4.
Queda decretado que el hombre
No precisará nunca más
dudar del hombre.
Que el hombre confiará en el hombre
como la palmera confia em el viento,
como el viento confia en el aire,
como el aire confia en el campo azul el cielo.
Parágrafo único:
El hombre confiará en el hombre
como un niño confia en outro niño.
Artículo 5.
Queda decretado que los hombres
están libres del yugo de la mentira.
Nunca más será preciso usar
La coraza del silencio
ni la armadura de las palabras.
El hombre se sentará a la mesa
con la mirada limpia,
porque la verdad pasará a ser servida
antes del postre.
Artículo 6.
Queda establecida, durante diez siglos,
La práctica soñada por el profeta Isaías,
y el lobo y el cordero pastarán juntos
y la comida de ambos tendrá el mismo gusto a aurora.
Artículo 7.
Por decreto irrevocable
queda establecido
el reinado permanente
de la justicia y de la claridad.
Y la alegría será una bandera generosa
Para siempre enarbolada
en el alma del pueblo.
Artículo 8.
Queda decretado que el mayor dolor
siempre fue y será siempre
no poder dar amor a quien se ama,
sabendo que es elagua
quien da a la planta el milagro de la flor.
Artículo 9.
Queda permitido que el pan de cada día
tenga en el hombre la señal de su sudor.
Pero que sobre todo tenga siempre
el caliente sabor de la ternura.
Artículo 10.
Queda permitido a cualquier persona,
a cualquier hora de la vida,
el uso del traje blanco.
Artículo 11.
Queda decretado, por definición,
que el hombre es un animal que ama,
y que por eso es bello,
mucho más bello que la estrella de la mañana.
Artículo 12.
Decrétese que nada estará obligado ni prohibido.
Todo será permitido.
TEXTOS EM PORTUGUÊS
OS ESTATUTOS DO HOMEM
Poema que escrevi em 1964,
em protesto contra o terror da ditadura militar.
É dedicado a Car/os Heitor Cony
Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida
e que, de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI.
Fica estabelecida, durante os milênios da vida,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridão,
e a esperança será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar amor a quem se ama
sabendo que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal do seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo do que a estrela da manhã.
Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo, um rio,
como a semente do trigo
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
(Poema transcrito como impresso no libreto do Cd A criação do mundo,
LEÃO
(21 de Julho a 20 de Agosto)
Leão é fogo, sonhos cerrados,
a rosa de amor feita de brasa.
A vida te será amável,
companheiro que avanças
sob o sortilégio do Sol.
A menos que sejas um Leão
cujos dias se cumprem
em certos pedaços de chão como o do Nordeste
da minha pátria, sob o sol da injustiça.
Mas é desgraça demasiada
para tão pouco horóscopo.
De resto, trata o meu zodíaco da vida,
que não é precisamente o que tu levas,
companheiro camponês.
Contudo, algo te digo: não te submetas,
dentes de esmeralda já se cravam
na entranha do latifúndio.
Quanto a ti, Leão poderoso,
sei que não calculas os momentos que vives,
não calculas nem medes,
confias nos teus átomos,
te encantam as turquesas,
ostentas a gordura,
esbanjas as suavidades.
Tuas razões terás, e são das fortes,
porque se nutrem da alheia desventura.
Mas não posso ocultar-te
que vejo fluidos escuros
baixando sobre tua cabeça.
Enquanto caminhas confiante,
levado por tua extrema ganância,
Saturno está só te olhando
com seu olho implacável.
Te recomendo, para começar,
empinar um papagaio agora mesmo,
pelo menos uma tarde por mês,
e publicamente.
Queres que eu te diga tudo?
Haverá um instante de inverno
em que sete astros se unirão
à esquerda da tua indiferença.
Sete astros, sete ventos,
sete nebulosas verdes,
sete segredos reunidos
contra tua força de homem,
que sempre foste sozinho,
que apenas contas contigo.
Vais ver enfim como te odeia
a multidão que te adula.
Vê se descobres um irmão,
vê se ainda podes ser irmão,
talvez possas, ainda é tempo.
Depende do teu coração,
se é que ainda o levas.
E tu, doce mulher de Leão,
não abandones assim tanto a cozinha:
inventa um guisado,
com aipo, ternura e orégano,
em fogo bem brando,
para o teu homem.
( transcrito de Horóscopo para os que estão vivos,
Martins Fontes)
|
Ilus. Inês Sarmet, com imagens constantes no livro Lucio Costa - registro de uma vivência. |
MELLO, Thiago de. Silêncio e Palavra. 4 edição revista pelo autor. Manaus, AM: Valer Editora, Cultura capa dura, sobrecapa. Edições Governo do Estado do Amazonas, 2001. 134 p. ilus. fotos com a imagem do autor em p&b. “ Thiago de Mello “ Ex. bibl. Antonio Miranda
MELLO, Thiago de. Mormaço na Floresta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; São Paulo: Massao Ohno Editores, 1981 120 p. (Coleção Poesia Sempre, volume 2) 14x20,5 cm. “Orelha do livro por Ênio Silveira”. “ Thiago de Mello “ Ex. bibl. Antonio Miranda
FOGO DE FRÁGUA
§. Sei que sou porque já fui
quando for no que serei.
O futuro se urde em mini
agora (quando? passou)
no centro fugaz da frágua
do presente, cujo fogo
se acende nas brasas
— que nunca se apagam —
e nas cinzas invisíveis
— que nunca se esfriam —
de tudo que já passou.
Sei que sou porque já fui
quando for no que serei.
Verão no Porantim, -1980.
MELLO, Thiago de. Num campo de margaridas. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986. 123 p. (Col. Poesia Sempre, 11) 14x21 cm. . “ Thiago de Mello “ Ex. bibl. Antonio Miranda
ME ASSOMBRO DE SER FELIZ
Perante o que não alcanço
discernir de mim, pergunto
por ti em meu ser, na esperança
de me saber.
Me responde
um cântico alado e livre
que vinca de verde o vento.
Pergunto quem sou:
um pássaro
me traz no bico o teu nome.
Docemente se desfaz
a precisão de indagar.
Inteira e livre a meu lado,
dormes, acordada em mim.
Já me basta com te olhar.
Me assombro de ser feliz.
MELLO, Thiago de. Narciso Cego segundo do Romance do Primogênito. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1952. 59 p. 15x22,5 cm “ Thiago de Mello “ Ex. bibl. Antonio Miranda
ARGILA
ARTEZÃOS negligentes esqueceram
em nós leves resquícios de imatéria:
mas essa frágil parte que se esquiva
da terrena prisão e tenta o voo
num arremedo de pássaro cego,
e que sem asas corta um outro espaço
tingido pelas cores dos enigmas,
logo retorna ao ver o seu impulso
anular-se ante a face do mistério.
Nestes regressos, triste se agasalha
entre os desvãos da argila e nos convence
de que estamos grotescamente fixos
no chão: berço, morada, e nosso além.
MELLO, Thiago de. Vento Geral. Poesia 1951-1959. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1960. 193 p. 14xx21,5 cm. “Desta 1ª. edição de Vento Geral foram tirados, fora de comércio, vinte exemplares em papel Westerpost, assinados pelo autor.”
VIAGEM
Navego em nave de sonho
sobre os caminhos do mar.
Altas estrelas me guiam:
em que terras vou findar?
Noção de fim é precária
e impede rota segura,
todavia, colabora
na lida do velejar.
Fulge o sol: mar é cristal.
Entretanto, nunca espelha,
além da imagem do barco,
o que consome o barqueiro.
Segue o remo e raro fere,
entre os fúteis vagalhões,
a vaga preciosa vinda
das maiores profundezas.
E enquanto navego, lego
um pouco de minha carne
para nutrir esse mar
(porventura o enriquecendo).
Não que desvelo ou ternura
eu tenha por esse mar,
mas em tributo forçado
do que em mistério me oferta
(acaso me consumindo).
Luzes de faróis não logram
informar se longe, além,
é apenas e sempre mar
ou se praia encontrarei.
Navego em nave de sonho
sobre os caminhos do mar.
MELLO, Thiago de. Poesia comprometida com a minha e a tua vida: pequena história natural do homem no fim que vem vindo do século vinte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. 87 p. (Coleção Vera Cruz. Literatura Brasileir, volume 197) 16x23 cm.
TIRANDO OS CINCO DA MÃO
Posso me olhar sem medo de me ver.
Já decidi não ajudar no engano.
Dói dizer. Mas é preciso.
Convivi com centenas, sobretudo
convivi comigo mesmo.
Pois de todos os que somos o que somos
ou que nos dizemos ser
—e desse dizer áspero e solitário
muitos constroem o seu morno ofício —,
pois de todos os que vamos no mesmo barco
ou pelas mesmas águas,
hoje, dia 22 de junho de 1973,
tirando os cinco dedos em que os conto
—(melhor será que não conte),
não boto a minha mão no fogo
(nem na água) .
por nenhum.
Nem eles por mim.
MELLO, Thiago de. Vento Geral. Poesia 1951-1981. Doze livros de poemas de Thiago de Mello. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1984. 470 p. 14x21 cm. Capa de Eugênio Hirsch sobre uma fotografía de Antonine Monory. “ Thiago de Mello “ Ex. Na bibl. Antonio Miranda
O CHÃO DO MUNDO
Rumo nenhum persigo. É quando sigo
as vias do mais trôpego sonhar
ou de fundos e rijos pensamentos,
chego sempre a mim mesmo; o clamor áspero
que me atraiçoa o límpido silêncio,
após ressoar em vão pelas paredes
da gasta e surda concha do infinito,
retorna, feito mágoa, à minha boca.
Não sei dar-me o que busco, se o não tenho.
A erva do tempo cresce, suavemente,
não tarda e o chão do mundo me devora.
Por isso quando em mim se faz mais noite,
minha face despida de seus medos
em sua própria treva se contempla,
onde lhe esplende a rude finitude.
Em meu ser, resignado, permaneço,
pois se tento fugir-me, eis que me vem
à boca o travo frio do negrume
que existe além de mim, e que me espera.
FOGO DE FRÁGUA
Sei que sou porque já fui
quando for no que serei.
O futuro se urde em mim
agora (quando? passou)
no centro fugaz da frágua
do presente, cujo fogo
se acende nas brasas
— que nunca se apagam —
e nas cinzas invisíveis
— que nunca se estriam —
de tudo que já passou.
Sei que sou porque já fui
quando for no que serei.
Verão no Porantim, 1980.
MELLO, Thiago de. Cadernos do refúgio. s.l.: UNHCR / ACNUR Agência da ONU para Refugiados, 2007. 4 folhas de cartão tipo kraft, com poemas de Thiago de Mello (“O menino que se intromete no diálogo com os donos do mundo”, “Lei n. 9474, de 22 de julho de 1997” e trechos de um depoimento do poeta sobre o exílio e a repressão. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília.
Canção de Barreirinha
ANIBAL BEÇA
(Para meu irmão Thiago de Mello,
no ano do seu 70° aniversário ,
e para Thiaguinho, enfermo no Rio de Janeiro)
Um largo afago me abraça
nas águas de Barreirinha
vem comigo o rio Negro
saudando as águas do Ramos.
Vim para encontrar o amigo
jogar a conversa dentro
do meu coração saudoso
que jogar conversa fora
poeta não joga não
Em pé na ponta do porto
o poeta já me espera
ornado da luz em aura
de carinho e de candura
Mas no semblante reflete
algo estranho em urdidura
Abraça e nada me diz
os seus olhos falam mais
que sua boca vivaz
Pressinto:
riso disfarçando pranto
canto molhado dos olhos
poros fervilhando eventos
ventos rendilhando auroras
horas desossando o tempo
teto cobrindo metáforas
pássaros riscando sílabas
voam cartesianamente
entre o gris de duas nuvens
Tudo se exaure impotente
(maduro chão de verdades)
perante as asas concretas
não há como se enfeitar
para a ciranda dos fatos
Somente o grão da ternura
germina a viva canção
na boca do coração:
caligrafia mais simples
na rima fácil do chão
E o poeta se disfarça
sabendo-se fingidor
Só não finge plenamente
por que é dor de vera dor
essa dor que agora sente
forjada na dor do amor
Uma lágrima vacila
glaucos olhos fatigados
marejando águas domadas
Não quer rio de torrente
molhando a várzea do rosto
nem chuva de sal na pele
Que seja apenas a gota
(simples gota de regar)
lavando o lugar das rugas
canteiro de cicatrizes
que sabe de águas remotas
guardadas no barro frio
desse alguidar da memória
O aprendizado lhe diz
(no rastro a viva vivência)
pela boca de outro amigo
que as amargas não se leva
nem na conta nem no alforje
senão para o riso largo
que de rir também se chora
Mas há mazelas tinhosas
como as panteras de Borges
Cravam as unhas da angústia
no pátio do peito frágil
e fazem seu carnaval
de cinzas adormecidas
E aí só resta ao poeta
dançar a valsa dos ventos
trinar a flauta de vértebras
(emprestada a Maiakóvsky)
aquele tango argentino
que o seu compadre Manuel
entristecido tocou
Porque a certeza da festa
o remédio salvador
se faz da própria matéria
que serve a todo poeta
na alegria ou na dor:
tomar o pião na unha
domar o sino rebelde
(que zune na contramão
para os ouvidos do mundo)
colocá-lo em linha reta
nesse alegre sortilégio
que só da poesia cresce
nas ramas da claridão
E que assim seja E será
Como poeta prevejo
augúrio azul de lianas
a brisa das cataléias
com seu frescor de lavanda
lavando a dor intestina
do teu caçula tão belo
poeta no decassílabo
nome gaio goitacaz
Thiago de Ana Thiago de Mello.
Como pai já antecedo
a vidência de profeta
coração já calejado
nas sinas de mala sorte
de certa bala perdida
cravada abaixo dos olhos
do meu querido Ricardo
(o Pimpa filho do meio)
Essa dor que compartilho
se iguala na dor antiga
vidente de mim me vejo
em ti querido Thiago
Na profecia dos sons
o Andirá todo levanta
soam tambores gambás
de ganidos mensageiros
são os cães de buenas-dichas
os cães de plumas e bênçãos
ligeiros cães telemágicos
levando o recado de ervas
força dos tambatajás
puçanga de pajelança
que a selva não deixa os filhos
(galhos da verde floresta)
sem o seu velho mormaço
Mormente os suburucus
mamotes sovados de ova
do peixe acari-bodó
Barreirinha, 11 de fevereiro de 1996
MELLO, Thiago de. FAZ ESCURO MAS EU CANTO porque a manhã vai chegar. Rio de Janeiro: Editôra Civilização Brasileira, 1965. 83 p. (Coleção Vera Cruz (Literatura Brasileira) volume 96). 14x21 cm. Apresentação de Pablo Neruda. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Vascondelos.
O PÃO DE CADA DIA
Que o pão encontre na boca
o abraço de uma canção
inventada no trabalho.
Não é fome fatigada
fatigada de um suor que corre em vão.
Que o pão do dia não chegue
sabendo a resto de luta
e a troféu de humilhação.
Que o pão seja como flor
festivamente colhida
por quem deu ajuda ao chão.
Mais do que flor, seja o fruto
nascendo límpido e simples,
sempre ao alcance da mão.
Da minha e da tua mão.
JANELA DO AMOR IMPERFEITO
Alta esquina no céu, tua janela
surge da sombra e a sombra faz dourada.
Já não me sinto só defronte dela,
me chega doce o fel da madrugada.
Atrás dela te estendes alva e em sonho
me levas desamado sem saber
que mais amor te invento e que te ponho
sobre o corpo um lençol de amanhecer.
Doce é saber que dormes leve e pura
depois da dura e fatigante lida
que a vida já te deu. Mas é doçura
que sabe a sal no mais azul do peito
onde o amor sofre a pena malferida
de ser tão grande e ser tão imperfeito.
MELLO, Thiago de. De uma vez por todas. Verso e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. 276 p. 15,5x23 cm. ilus.Três ilustrações colorida de Aldemir Martins. Capa: Simone Villas Boas com desenho de Manduka. ISBN 85-200-0414-8 . Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Vascondelos.
Tudo o que me leva o livro
cabe na palma da mão
de uma criança: o lugar
de onde erguem os pássaros
da inocência, em cujo canto
vai a liberdade da vida.
Da eternidade
Da eternidade venho. Dela faço
parte, desde o começo da vida
dos que me fizeram ser
até chegar ao que sou.
Transporto com a minha vida
a eternidade no tempo.
Menino deslumbrado com as águas,
os ventos, as palmeiras, as estrelas,
prolonguei sem saber a eternidade
que neste instante navega
no meu sangue fatigado.
Santiago, 93.
MELLO, Thiago de. A Lenda da Rosa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1955. 121 p. 14x18,5 cm . Ex. Biblioteca Nacional de Brasília, doação da família de Francisco Vascondelos.
infância e descoberta
Era uma vez um mancebo
que vivia neste mundo,
no meio da multidão
dos homens desabraçados,
mas que nascera e crescera
no cume de alto penhasco.
De lá desceu forte e feito,
mas um resto resguardando
de infância dentro do peito
— o resto que sempre sobra,
mas são poucos os que guardam,
e por isso é que se perdem.
(Na essência da infância dorme
algo da essência da Rosa.)
Deu-se, então, que esse mancebo
descobriu que, além de abismo,
o corpo também é ponte:
— caminho que leva ao bosque.
1ª. BIENAL DO B – A POESIA NA RUA. 26 a 28 de Setembro de 2012. Brasília: Açougue Cultural T-Bone, 2011. 154 p. ilus. col. 17x25 cm.
Poema perto do fim
A morte é indolor
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.
Antonio Miranda recebendo um autógrafo de Thiago de Mello.
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