Canto 53 - A Língua
Canto 54 - Raças e Cores
Canto 55 - Raízes do Brasil
Canto 56 - Pernambucanidade
Canto 57 – O Fator de União Nacional
Canto 58 - Casa-Grande
Canto 59 - Pátria Mãe Gentil
Canto 60 - O Homem Cordial Revisitado
Canto 61 - Da/De Formação
Canto 62 - Data Venia
Canto 63 - Do Sangue e da Terra
Canto 64 - Brasilidades
Canto 65 - Antes de tudo um forte?!
Canto 66 - Mobilidade Social
Canto 67 - Minorias
Canto 68 - Por que me ufano
Canto 69 - O Boi
Canto 70 - Boi-Brasil
Canto 71 - Carnavais
Canto 72 - O Bode Santo
Canto 73 - O Corpo Santo
Canto 74 - Arte Barroca
Canto 75 - Bordados e Labirintos
Canto 76 - Com Menotti del Picchia
Canto 77 - Os Pilotis
Canto 78 - Havia
Canto 79 - Tupy or not Tupy
Canto 80 - Antropofagias
Canto 81 - Verdades Oficiais
Canto 82 - Prá não dizer que não falei
Canto 83 - País de/do Futuro
Canto 84 - Brasil no Microscópio
Canto 85 - Teleologismos (Súmula)
Canto 53
A LÍNGUA
“Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura”.
OLAVO BILAC
São muitas as línguas do Brasil
— línguas próprias e línguas transplantadas.
As próprias, plantadas nas florestas
como raízes profundas de povos
confinados, esquecidos de suas origens:
quase autóctones
quase endêmicas.
São muitas as línguas do Brasil
(mesmo não sendo oficiais)
todas climatizadas, tropicalizadas
transformadas pela luz e pelas cores
miscigenadas, com ressábios
de todos os quadrantes e sextantes
(do local e do oriental)
— línguas tatuadas na imensa geografia
por entradas e bandeiras, sesmarias,
pela evangelização e pela escravidão,
pelas várzeas e montanhas, rios
a jusante, pelos sertões e praias
dos chegantes.
Língua mestiça, híbrida
— até mesmo castiça
e nunca, mesmo que se queira
(nunca!) a derradeira flor do Lácio.
O Português como base de enxertias
como substrato em recomposição,
um suporte, um veículo
de comunicação e comunhão;
sujeita a todas as injunções
e influências vivas
transfronteiras.
Na sua diversidade,
nas suas falas e acentos,
nos seus sotaques e polissemias
regionais, é aglutinadora
e, por seu efeito contraditório,
unificadora e pangeográfica.
A língua é a pátria brasileira.
A geografia do Brasil é a língua
expandida e assentada
ampliando e demarcando
fronteiras.
Sotaques chiados, arrastados
sincopados,
falares e dizeres
que comem sons, sílabas, significados
que confundem
mas que se lê nas entrelinhas
se entende nas intenções
nas cadências e malemolências,
gesticulações, arcaísmos,
gírias renovadoras,
estrangeirismos enraizados,
neologismos criativos, sofisticados
nas segundas intenções
nas ausências e permanências
em transfigurações semânticas
e rupturas gramaticais
nas transgressões ortográficas
lexicais.
Uma língua com muitas bocas
muitos dentes
antropofágica
antropocêntrica
antropológica
língua com fome, com resíduos
corrosiva
reciclada
aberta e inconclusa
indicionarizável
com acentos demais
que é mais falada do que lida
que é mais ouvida do que escrita
que é ensimesmada e circunscrita.
A língua é a pátria que a gente
leva a todo lugar
como identidade
familiar, como um canto de pássaro
de arribação
fazendo reconhecimentos.
Não tem sexo nem tem cor
nem idade apesar de tudo isso
e muito mais
— que iguala os desiguais
ou, por antítese, desnivela
porque a língua tem classes
e níveis sociais.
Pátria interior, de diálogos silentes
ou de discursos eloquentes.
Também escrevo de ouvido
pelo eco das palavras interiores
reverberando significados e ritmos
inteligíveis.
Sentindo a força das palavras
na gradação dos sentimentos
pelas nuanças do pensamento
que me fala e me constrói.
Canto 54
RAÇAS E CORES
No Brasil, Senhor, não há raças
há cores, tonalidades
todos os matizes
numa hierarquia de cores, de classes
— preconceito, sim
(em casa, velado na rua)
segregação, nem tanto —
no processo de embranquecimento.
Raça, só dos animais inferiores.
Uma mestiçagem devoradora
— cruzamentos
até ao infinito.
Uma nova etnia
fundindo ressentimentos
— da escravatura
— dos desterros
— das imigrações
em que se aprende
a dormir em rede,
a despir-se,
em que o dendê e a pimenta
não são mais privilégio de índios e africanos.
A luta é entre o arcaico
e o moderno
entre o patriarcal
e o comunitário porque
negros, índios e mestiços
continuam pobres.
Canto 55
RAÍZES DO BRASIL
“Somos... uns desterrados em nossa terra”.
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Nossas raízes são aéreas, expostas
como chagas lamurientas,
como pragas deletérias,
matérias superpostas.
Raízes epífitas
de vegetais transplantados
ou talvez parasitas
implantados em pau-brasil
e seringueiras
ou em quase-eternas aroeiras.
Aventureiros buscando o ouro
fácil: não vieram trabalhar
— que o mourejar é de mouro...
querendo extrair do solo excessivo
benefício sem maior sacrifício.
Ocupando terras virgens
(queimando-as, poluindo-as)
numa ação predatória
imune de responsabilidades;
numa extração destruidora
(impune!) de minerais finitos.
Busca-se um emprego nulo
já que o chulo trabalho
é para o escravo
(ainda que assalariado):
“o ócio importa mais
que o negócio”.
Não deve haver patriotismo
em semelhante empresa,
embora haja ufanismo
combinado — sem surpresa —
com um certo pessimismo.
Em se plantando, tudo dá.
ou daria, num futurismo
(Brasil, país do futuro
dizia Stephan Sweig)
que contraria (ou adia)
o nosso assumido positivismo.
Canto 56
PERNAMBUCANIDADE
“Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando,
pois esta é a licença e liberdade que tem quem não pede favor
senão justiça.” Pe. ANTÔNIO VIEIRA
I
Um modo de ser, de inconformação
e rebeldia – a pernambucanidade.
Nascida da luta contra o flamengo
em que o vencido é depois reverenciado:
a Mauritssadt dos armadores das Índias Ocidentais
dos casarões debruçados sobre os canais aquáticos.
Maurício de Nassau redivivo e totemizado
entrando no ser altivo do pernambucano.
No outeiro de Olinda, aquartelados
os revoltosos e os catequisadores.
A alma sedenta, sediça, insaciável
na ânsia de justiça e liberdade.
Um estado-maior que se espraia
por sertões e mares fronteiriços.
Numa regionalidade mais ampla
e sobranceira, universal e brasileira.
II
Do provincianismo de Gilberto Freyre conseguimos
enxergar e interpretar a própria nacionalidade.
Diz-se que a unidade brasileira nasceu
e firmou-se nas batalhas dos Guararapes.
Ou na Guerra dos Mascates, dos alfaiates,
das lutas sociais de um povo antes de ser nação.
Gente guerreira — as três raças irmanadas —
plantaram sementes de revoluções libertárias.
Revolução Republicana de l817
Confederação do Equador de 1824.
Tantas outras, heroicas, idealistas, liberais
— as revoltas populares, levantes, protestos.
História e revolução estão gravadas nos azulejos
e nas paredes e nas pontes e igrejas do Recife.
Espírito de rebelião aceso, polemista, panfletário!
Frei Caneca, o abolicionista Nabuco, o insurgente Julião.
III
Sertão adentro, dos canaviais à caatinga
Pernambuco é estirão da mata ao agreste.
Cabra-da-peste xerófito e também atávico
no seu degredo de morte e vida severina.
De outras guerras, romarias e cangaços
nas trilhas cáusticas dos tantos retirantes.
Imprecações, blasfêmias, queixas, heresias
nas procissões silenciosas de povos errantes.
Nas fantasias salvadoristas dos cordéis
nas profecias apocalípticas, enredos medievais.
Um certo fatalismo de acentos telúricos
e um libelo pela ingratidão de Deus.
Consequente, o sermão do padre Antônio Vieira
é vidente, combativo, irreverente, comandante:
“Tão presumido venho de vossa misericórdia, Deus
meu, que ainda que nós somos os pecadores,
vós haveis de ser o arrependido”. Vieira
ensandecido, cobra a conversão e a remissão
divinas.
Canto 57
O FATOR DE UNIÃO NACIONAL
“E fizeram filhos nas senhoras e nas escravas”.
OSWALD DE ANDRADE
Gilberto Freyre garante
com farta e firme documentação
que a unidade brasileira se deu
antes pela religião
que pela língua.
Pode ser.
Ou não.
Se pelo número de igrejas:
a nação mais católica...
Pela catequese e reduções de índios
e escravos. Cristãos-novos, conversões.
Pelo exclusivismo religioso
pela Santa Inquisição.
Nem tanto pela devoção.
Uma relação promíscua com o santo
familiar, a quem se pedia tanto
e se punia e blasfemava
quando nada acontecia...
Santos afogados, emborcados, enterrados...
Escapulários e figas-de-guiné
— um certo ou incerto fetichismo
(animismo e até animalismo)
mesclado ao culto de Deus
e nossa paixão pelo Encarnado
num sincretismo de terreiro
e pajelança.
Se estamos de passagem
para onde é que vamos?
Melhor perguntar, de onde
viemos. Esse messianismo
sem Deus: injustiça na terra
como no Céu.
O que uniu o Brasil foi
o misticismo ou a mestiçagem?
Canto 58
CASA-GRANDE
“onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro”.
GILBERTO FREYRE
Lembranças atávicas, ancestres
de que viemos (desmemórias)
por gerações e degenerações
sofremos — inglória —
perdida história
que não vivemos.
A casa impávida erguida
como fortaleza sobranceira
como claustro, protegida
da devassa, da senzala
em que se extravasa
o senhor feudal
transfigurado e libertino.
Um gosto de mando
de um despótico prazer
de possuir e usufruir
— origem de todo nepotismo
e de qualquer coronelismo.
Os bisavós na parede,
bisonhos, emoldurados
em relicários, com santos
e escapulários.
Cidadela mais importante
que a capela – seu prolongamento.
Parentela, agregados, serventias
pelos engenhos-de-cana
pelos cafezais enobrecidos
pelo tabaco curtido
o senhor e sua sesmaria
da mãe-índia — gentia — cunhã,
de negra possuída e grávida,
de terra escrava e cultivada
na manhã de nossa origem.
Os mortos enterrados no pátio
no adro da capela
prantos mantos encantados
nos quartos das virgens
infensas aos pecados.
Agora, séculos passados, são
mansões avarandadas
ainda patriarcais
detrás de grades graves
amuralhadas, senhoriais.
Canto 59
PÁTRIA MÃE GENTIL
I
A nossa tão propalada
— decantada em prosa e verso –
cordialidade
de onde vem?
Quem primeiro observou
tão controverso entendimento
e registrou tão ínclito dom?
II
Pedro Álvares Cabral encantou-se
com a hospitalidade dos naturais
da terra nova;
Jean de Lévy considerou-os cordiais
(os tupinambás)
por viverem em paz
(não obstante o canibalismo...).
A cordialidade certamente
vem da terra dadivosa
(bastante)
suficiente para alimentar aquela gente
e torná-la feliz:
um povo errante
migrando sempre para “sentir-se melhor”
porque a terra era livre
da propriedade.
Canto 60
O HOMEM CORDIAL REVISITADO
“Não existe, entre o círculo familiar
e o Estado, uma gradação
mas antes uma descontinuidade
e até uma oposição”.
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Um mito, ou um hito.
Não sei de onde vem
ou quem disseminou
a aleivosia
melhor seria
uma crendice
e não uma constatação.
Sei não. Sei lá!
Valores apregoados
— a generosidade, a hospitalidade
um caráter benévolo —
de onde vêm?
— talvez da casa
e não da sociedade
e na cidade se diluem.
Cordialidade sem formalismo
nada ritual e sem convencionalismo
— ou seria visceral
sem a polidez do japonês
e a fleuma estéril britânica
oposta à vulcânica expressividade
mediterrânea.
Estar sempre “muito obrigado”.
Fazendo “reverência prolongada
ante um superior” até conquistar-lhe
a deferência
como haveríamos de supor
na intimidade.
Porque amamos as referências
particularizantes,
os privilégios
e os jeitinhos,
a espontaneidade.
Isso: cultivamos os diminutivos
como forma de carinho
e familiaridade
no nosso projeto de aproximação
com as pessoas
e com o objeto.
Uma certa promiscuidade
de relacionamento.
Um comportamento
complacente, levado
à conformidade. Tudo bem...
Preferimos o nome de batismo
ao sobrenome de família,
sobressaindo o indivíduo:
Fernando Henrique
e nunca o Cardoso ubíquo
e até mesmo o apelido:
Lula, Chico, Zé.
Amizade como condição
de convivência e mesmo
dos negócios.
Ter adversários
mas, inimigos, jamais.
Gente de pouca devoção
nada solene, avessa ao cerimonial
(quebrando hierarquias e protocolos)
pouco dada ao fanatismo
e sem maiores convicções.
Avessa ao culto da autoridade
e dos heróis nacionais,
infensa ao idolatrismo,
mas apegada ao bacharelismo
e ao “você-sabe-com-quem-está-falando”
nas relações sociais.
Ínclitos praticantes da miscigenação
transcendendo as barreiras raciais
sem, contudo, superá-las.
Canto 61
DA/DE FORMAÇÃO
“fundamento da boa ordem baseada na natural
e necessária desigualdade entre os homens”
ISTVÁM JANCSÓ e JOÃO PAULO G. PIMENTA
Onde o Brasil? Pergunta Drummond
no estranhamento mineiro do poeta
— mais que gauche, um desigual.
Somos iguais na desigualdade
— ludovicenses, pernambucanos, paulistas —
povos ligados à coroa
antes que à nação.
Onde o Brasil, se aqui estamos
antes de sermos:
nosso pertencimento
vem de povos circunscritos
mas sem lugar para os nativismos
e independentismos.
De onde viemos? O que somos?
Responde Ab´Sáber: paleoíndios
nômades ameríndios
— de alóctones a autóctones
arqueologias, genealogias milenárias
pelas eliminações étnicas trágicas,
por miscigenações infinitas
todos os estoques raciais do mundo:
mongolóides, caucásicos, negróides.
Dos tupi-guaranis aos europeus
transplantados, degradados
no confronto incontornável
e pela assimilação
inconsútil.
“Que me quer o Brasil que me persegue?”
— pergunta Gregório de Mattos Guerra
vendo reinóis e colonos promíscuos
procriando-se
interracializando-se
desde o Achamento
da terra nova:
entre o conquistador
e o gentio.
E recorde-se:
“os mamelucos são a pior casta
de gente de todo o Brasil”
(Relatório Cearense à Coroa, 1724).
Gente de “qualidade de sangue
desconhecida”
bastardos, não bastasse
“a grande liberdade
com que vivem”.
E “que não se tome e recebão
para Religiosos pessoa
que tenha raça de mestiço”
no Mosteiro de São Bento
(Bahia, 1602).
Terra de papagaios
dos brancos quase negros
dos negros quase brancos
mulatos insolentes
desejando ser fidalgos
e onde
“todo aquele que he branco de cor
entende estar fora da esfera vulgar”
arremata Loreto Couto (1757).
Trabalho é coisa de negros.
Para o espanto
de Thomas Lindley (1805)
ao ver o criado conversando com o seu senhor
de igual para igual
discutindo suas ordens
sendo “aceito pelo senhor”
e “essa atitude se estende aos mulatos
e até aos negros”...
“Comum povo livre e não sujeito”
conclui Fernão Lopes
numa formação de raras rupturas
e confrontos.
Essa arraia-miúda rediviva
esta “gente [remanescente]
da terra braziliense de naszão“
— as pátrias são as províncias
a Nação, a Monarquia —
recebe a Corte e depois a Independência
sem “qualquer merecimento”.
E chegamos ao paroxismo:
“É da maior necessidade ir acabando
tanta heterogeneidade”, e
“combinar sabiamente tantos elementos
discordes e contrários
e em amalgamar tantos metais diversos
para que saia um Todo homogêneo e compacto”
(José Bonifácio de Andrada e Silva)
mesmo que num contexto escravagista
já que somos iguais, mas diferenciados.
Canto 62
DATA VENIA
discursos empolados
numa eloquência vazia
palavras edulcoradas,
verborreia filigramática
uma solene oratória
de retórica burocrática
de uma superioridade anelar
bacharelesca e autárquica
de onde sobrevém o papelório
de quem aspira ao cartório
resolvendo tudo por decreto
(ou por medida provisória)
pela lei enviesada e torta
eivada de circunlóquios
fazendo tábua rasa de tudo
— de tudo que é precedente
para ir ao “finalmente”
de uma certa descontinuidade.
Canto 63
DO SANGUE E DA TERRA
“O brasileiro mostra espiritual e animicamente
a frondosidade da flora brasileira”.
CONDE DE KEYSERLING
O Conde de Keyserling via no brasileiro
um ser magnânimo,
frondoso e vicejante como a flora circundante
carecendo de rudeza
mesmo em sua rusticidade.
O Conde de Keyserling
percebeu e interpretou
a contradição e a polarização
— contrários em comunhão? —
de nosso positivismo
(anímico e antimetafísico)
com o nosso saudosismo
e um certo romantismo...
num morrer e renascer
ruminante e consequente.
Nunca seríamos mesquinhos
nem limitados.
Teríamos sempre um encanto,
um verniz...
Nossa geografia é ampla
e sem ameaça
— razão da estabilidade da raça
na conformidade das misturas.
Um ambiente afrodisíaco
propício ao acasalamento
livrou-nos de preconceitos
[além de certos preceitos
mais sociais que raciais...
(mesmo sem pasteurizar-nos
e sim, amalgamar-nos?)]
na aceitação da terra
e de seu povoamento.
O Conde de Keyserling via
na junção de negros, índios,
brancos numa europeização definitiva...
O Brasil seria cada vez mais branco
ainda que no arco-íris de sua mutação.
(O francês estranha um oriental
falando português...
mas o nissei e o sansei
não sei se sentem alguma diferença.
Quem melhor entendeu
a condição do brasileiro
foi a imigração ianque
ao carimbar o passaporte
do negro e do oriental brasileiro:
— todos são latinos.)
O Conde de Keyserling
estranhou o sentido de justiça
do povo brasileiro:
avançado, vanguardista
no Direito Internacional
mas – paradoxal!!!- mais
na percepção da forma do direito
do que no sentimento de justiça.
Canto
64
BRASILIDADES
I
O povo da terra é de mui variada
textura e feitura,
de todas as alturas e conformidades
— impossível dizer de que raça são
senão que compõem misturas
e composturas variegadas,
híbridas, cruzadas.
Bonitas, as mulheres
(e também os homens)
algo mestiças
mesmo as que parecem brancas
ou negras ou amarelas
porque algo as identifica
na diversidade.
II
No porto da Bahia, os sorrisos são largos
e os movimentos dançantes
como palmeiras flamejantes,
são hospitaleiros, alegres, comunicativos
menos tímidos que os de África
(parece que vieram de lá,
mas aqui é que miscigenaram)
e andam seminus.
A arquitetura antiga é de um barroco
tardio, com adornos de cajus em vez de uvas
talhados gracilmente em pedras e madeiras.
São tantas as igrejas e seus estilos
mas andam vazias
mais gente há nas escadarias, nos átrios
nas proximidades do que dentro delas
e praticam alguma forma
de sincretismo religioso
(que a gente da terra nem percebe)
sem maiores conflitos.
A ocupação batava dos séculos 16 e 17
resume-se a uma fortaleza de pedra
e a uns olhos acaramelados
a umas mechas douradas
de alguns descendentes
(mas eles não sabem disso).
Fácil é ver as raízes ultramarinas
portuguesas e africanas
na indumentária, na culinária
nos costumes indígenas
mas tudo entrelaçado
e devidamente aclimatado.
III
Em Pernambuco todos são holandeses
mesmo os negros e os mamelucos
se não na pele, no orgulho
e na postura intelectual.
No outeiro de Olinda os sinos rompem os séculos
de sua colonização
enquanto em Recife — a Veneza americana —
continuam os mascates, os mouros
e toda a gente de pele de cobre e azinhavre
como caranguejos no mangue.
Mais que o mar que é detido pelos arrecifes
impressiona o mar dos canaviais estendidos
devorando toda terra plana ou ondulada
até as bordas do agreste.
IV
Só a caatinga cinza e espinhenta
detém a cana e seu latifúndio
expandindo-se em miséria e insolação
na direção das Alagoas, do Sergipe
da Bahia e Paraíba
na direção do São Francisco
e depois delas
até às entranhas do Ceará
e mesmo no Piauí.
De comum, a seca e o bode,
a pele curtida pelo sol inclemente,
a fome e a crença nos elementos,
o mandacaru.
Por aqui andaram Antônio Conselheiro
o padre Cícero Romão e o famigerado Lampião
a Coluna Prestes
O sertanejo é antes de tudo um forte
(garante Euclides da Cunha)
comendo raízes e bebendo do sereno escasso.
Retirantes, esmoleres e pedintes, vaqueiros de gibão,
penitentes, romeiros, vendedores ambulantes,
poetas errantes, religiosos, repentistas.
V
O sebastianismo continua vivo
no pensamento figurado
oposto ao pensamento letrado
do litoral.
Canto 65
ANTES DE TUDO UM FORTE?!
Euclides da Cunha achava o mestiço
“um decaído”, “um mutilado”
que reúne o pior de duas raças...
“sem a energia física dos ascendentes selvagens,
sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores”!!!
Nunca a melhor qualidade dos dois!
“Feridos pela fatalidade das leis biológicas”,
condenados à degeneração
e à inferioridade...
Incapaz de solidarizar-se
com qualquer de suas origens.
Sem a capacidade abstrata
com “uma moralidade rudimentar”.
Para ele, o mestiço é um intruso
“dispensivo e dissolvente”
“sem caracteres próprios”
com tendência à regressão
“às raízes matrizes”
daí sua instabilidade...
O mulato despreza o negro
e tenta embranquecer-se...
O mameluco faz-se bandeirante
e vai dizimar os índios...
Para ele, “são invioláveis as leis
do desenvolvimento das espécies”
e a parte “superior” do mestiço
tende a restaurar-se...
E completa, inexorável, sua razão:
Quando “a raça forte não destrói pelas armas,
esmaga-a pela civilização”...
Salva-se da degeneração, o sertanejo
— que “é um retrógrado, não é um degenerado”
de uma raça cruzada que surge autônoma
e de algum modo original
adaptada ao meio
e capaz de alcançar a vida civilizada...
Canto 66
MOBILIDADE SOCIAL
os brancos das casas-grandes
e os negros das senzalas
os brancos dos sobrados
e os mulatos dos mocambos
os brancos dos palacetes
e os caboclos das palafitas
os brancos dos edifícios
e os mestiços das favelas
os ricos em suas mansões
e os pobres nos cortiços
numa maneira europeia
de viver e receber
noutra o estilo africano
ou indígena de convívio
enquanto a miscigenação
vai “amaciando” os antagonismos.
Canto 67
MINORIAS
Minorias? Negros são minorias
— com ou sem alforrias?
Mulheres são minorias?
Índios, talvez...
Homossexuais.
Cientistas.
Oculistas.
Umbandistas.
Minorias na corte
são as que oprimem
as maiorias – os pobres,
os deserdados da sorte.
“Uma minoria todo-poderosa
com uma maioria esfarrapada”
com os caminhos fechados
no (des)entendimento
das teses de Florestan Fernandes.
Canto 68
POR QUE ME UFANO
O conde Affonso Celso louvou
sem modéstia e sem medida
as grandezas do Brasil
sem considerar as mazelas.
A superioridade territorial
é mesmo proverbial:
Canadá, Estados Unidos,
Rússia e China
— uns ricos, outros pobres —
não o são por dimensão,
e menos pela enormidade,
muito menos pela densidade
da população.
Não há país mais belo que o Brasil
mesmo sendo “inculto e selvagem”
“faz vantagem nos campos elísios,
hortos pênseis e ilha de Atlanta”
disse o jesuíta Simão de Vasconcelos
comparando o sim com o não
ou então, apelando ao Rocha Pitta:
“em cuja superfície tudo são
montanhas e costas tudo são aromas”
“em cuja superfície tudo são frutas
em cujo centro tudo são tesouros”
— as águas as mais puras
salubérrimo o ar
onde sempre é verão.
“Nosso céu tem mais estrelas
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores”
(Gonçalves Dias)
Tais primores, incontáveis, indizíveis,
mundo de aprazíveis excelsitudes
garante o patriota Celso, tudo
sempre o maior do mundo!
A começar pelo Amazonas
(que só é batizado em território nacional)
e culminando no Corcovado
com “panorama surpreendente, único”
e não poderia ser diferente...
Minas de ouro e jazidas diamantinas
“um imenso escrínio de gemas”
“até a poeira dos caminhos é aurífera”
sem falar das riquezas naturais
e dos valores sobrenaturais
e mais e mais!
Nunca foi vencido, jamais foi humilhado!
Expulsou franceses, batavos e ingleses
sempre garrido, de peito inflado.
Em resumo, tudo nos favoreceu
e nada nos ameaça
nem vulcões, nem terremotos
temos jaça, temos raça
(e agora, até taça!)
sem preconceitos, privilegiados.
“Há, pois, em ser brasileiro,
o gozo de um benefício”
uma vantagem
“uma superioridade”
e “nenhum perigo inevitável
ameaça o desenvolvimento
do Brasil”.
Exceção ao malefício
dos maus governos
e fraqueza das instituições
republicanas.
Mas Deus “não nos abandonará”
garante o conde e nos
“reserva alevantados destinos”
— quando e onde? “Confiemos”.
Canto 69
O BOI
Mas a verdade é que o boi
nunca morre totalmente.”
BUENO DE RIVERA
o boi está na paisagem
e no nosso inconsciente
somos bois em sacrifício
bois em peregrinação
boi ultramarino, mais que mítico
importado, inseminado
mesmo no Bumba-meu-boi
dos autos de nossa tauromaquia
Boi Bento, boi-de-mamão
boi de presépio
há tantos bois quanto gente
e se cachorro também é gente
por que não o seria
o boi? pois ele corre
em nossa veias
ancestrais.
Boi ou vaca sagrada
— Ápis, Minotauro, Esfinge
universal e expiatória, zodiacal —
na retaliação profanadora,
na ritualização
de El Rey Dom Sebastião.
E sem derramamento de sangue
não há remissão: está no Hebreus
no Levítico — onde o novilho no altar
vertendo sangue, purifica
e santifica.
O boi na paisagem é
a imagem de Deus.
O boi precisa morrer
para ressurgir o Rei
com sua corte.
É o triunfo da vida sobre a morte:
a morte não existe
no pasto em que os bois se reproduzem
vivificando a morte.
“Deyxem por morto,
vos reconheço vivo”
ou morte prenhe de vida
no nosso sebastianismo
— paradoxo que tomo emprestado
de meu amigo Pedro Braga
que entende de alumbramentos
e ressurreições.
Canto 70
BOI-BRASIL
I
Boi de presépio, de rodízio
na terra adubada
e transformada em pasto
no ciclo da vida
de nossa vacunofagia
e tauromaquia:
boi-essência dos homens-bois
pantaneiros, pampeiros
marajoaras e mineiros
camponeses, nordestinos
bois-de-cangalha
e de maracangalha
desde as covas de Altamira
ao nosso sul-maravilha:
novilha desfilando
em passarela do samba.
II
Ruminando
vociferando
discursando no Senado
e redimindo nossos pecados
no boi-bumbá
antropofálico
nas telas gigantescas
e emblemáticas
de Humberto Espíndola:
bois herbívoros e dionisíacos
príapos púberes
colonizadores
de nossa vasta territorialidade
em nossa herdade
em nosso atavismo de boi
apascentado e calmo
(nosso caldo de cultura)
nosso nomadismo.
III
De faina e mais alegoria
de romaria e vaquejada
inseminando e dispersando
e conquistando chão e pão
no nosso culto propiciatório
do peão e do latifundiário
de todos os sextantes e quadrantes
em nosso êxodo civilizatório.
IV
Estes testículos-chifres-cupins
em formatos largos significantes
couros, marcas-de-fogo, berrantes
deformados
estas curvas-ângulos-vaginas
matriarcais, zodíacos, rituais
urinas vivificantes
prosopopeia
de nosso sangue ermo e bandeirante
nas tintas de Humberto Espíndola.
Nosso retrato de família
na parede, nossa alma flagrada
em cores decompostas
esquartejadas recompostas
(res integra, res nullius)
em murais de representação:
em formas plurais totêmicas
na conformação geral e total
do Boi-Brasil.
Canto 71
CARNAVAIS
“vendo mais do que se pode entender”.
ROBERTO DA MATTA
I
Apontamentos preliminares ao poema:
rito das encarnações invertidas
verdade buscada na mentira
dramatização/inconsciente coletivo
contra-rotina...
Cotidiano x extraordinário
ritual de passagem para o...
quando o pobre vira rico
o homem vira mulher
a mulher, lobisomem
um é o que se vê
o outro, o que se vive
ritos e mitos além do cotidiano
transformação do pobre em nobre
contraposição de semelhantes
na competição
“brincar” ,“fantasia”:
a lógica dos contrários,
das reversões
carnaval na praia, banho de fantasia
“mascarado” , “encantado”
jocoso, grotesco:
o general quebrando a regra
vira odalisca
de peruca e salto alto
e não esconde o bigode
encenação, vibração.
procissões que são blocos carnavalescos
estranha patologia
de exibicionismos
dos pavões gloriosos
alienação libertadora autoconsentida
catarse redentora compartilhada
nos limites da tolerância humana.
Hedonismo? Orgia? Ludismo? Sim
e não, no rito da contradição.
Se se quer: anticivilização
ou suspensão da ordem
na purgação dos sonhos reprimidos
dos desejos inibidos, dos fluidos
liberados, decantados do instinto
pagão. Por que não?!
II
Que o Carnaval é difuso e diferenciado
que muda no tempo, que se reorganiza
que é tanto diferente quanto igual
(é espontâneo e ritual)
que é tradição e renovação
(originalidade e repetição)
que é alegria e é tristeza
ordem e caos
numa transformação conservadora
— a gente sabe.
O carnaval é maniqueista
— vá lá: é dialético —
contraditório:
é competitivo mas também é anárquico
— fantasia e realidade — e cruel,
disfarces e contrastes.
É exagero, excesso, inversão
é grotesco, excêntrico
e extroversão
empolgação.
III
O carnaval muda pra seguir igual
nas páginas do jornal:
carnal, violência, mortes, infernal.
Não é outro o carnaval de salão,
dos grandes desfiles,
da Grande Ópera de Momo
— o maior espetáculo da terra,
como me ufano! —
para ser visto
flagrado.
No desfile de fantasias suntuosas
o folião mumificado
(eternas plumas e paetês!)
em seu curto reinado
na quase imobilidade de uma passarela.
Carnaval dos adereços
de peruas seminuas
das cores, do farfalhar
das saias rodadas das baianas
dos pierrôs e colombinas
importadas,
dos estereótipos
dos balangandãs da Carmem Miranda
tipo exaltação, tipo exportação
— nem por isso menos brasileiro.
Carnaval no tempo e na memória:
n´A Careta, n´O Cruzeiro
e, acima de tudo, em edição especial
da Manchete, que não mais circulam.
Não o carnaval
empresarial e
cronometrado
— ensaiado —
de coreógrafos
e artistas plásticos.
Carnaval-espetáculo
(televisivo, globalizado)
de figurantes e estrelas.
Venha o carnaval das empregadas domésticas,
dos pedreiros, dos malandros, da negritude,
de mulatice, da trégua social:
dos favelados e das socialites,
das aparências, do Brasil da euforia,
dos efeitos visuais, tecnologia.
IV
Num aglomerado compacto
ou massa movente circulando
— foliões em desfile:
conjuntos, grupos, blocos —
numa beleza plural
(trans-individual) mas uniforme.
O nosso avesso,
o nosso outro eu
transfigurado,
exposto, de suor
e compasso,
sofreguidão
e exaustão.
Carnaval de tamanco,
das sandálias, pés descalços.
De frevos frenéticos e maracatus,
axés e pastorinhas,
sambas-de-roda e marchinhas
de refrãos debochados, caricatos,
deturpados...
Do ridículo, do escárnio,
da auto-flagelação, da transgressão
e do desespero,
curtição e deboche
— carnaval dos sujos
da opereta caricata,
dos entrudos, zé-pereiras,
das negas-malucas,
dos coretos de subúrbios,
das bandinhas fanhosas
e dos alto-falantes
da rua
sem enredo e sem medo
— para ser vivido!
V
A voz de Emilinha Borba
sai da caixa do tempo
deslocada e um tanto estranha;
antes dela, o Lamartine Babo
soava ainda mais estridente
nos programas de rádio, nos acetatos.
Mais difícil ainda é afinar
com Sinhô e Chiquinha Gonzaga
com seus corsos e cordões
encantados
dos mascarados com lança-perfume,
confete e serpentina.
[No início de tudo
depois do entrudo proibido:
os préstitos, os festejos, os folguedos
das caleches ornamentadas
puxadas por parelhas animais
vistas dos balcões de sobrados
imperiais, populares desfilando
saracoteando, culminando
nas pompas funerais de Momo
com as marchas fúnebres finais.]
Dar um grande salto
ao palco da encenações de Carlinhos Brown
e do Olodum.
Todos reciclados, centrifugados
na parafernália de um trio elétrico
ambulante.
VI
Palco-avenida longitudinal
como manchas coloridas em movimento
— verdes-rosas, azuis e brancos até ao arco-íris —
sincronizadas, cronometradas,
uma tela pintada pela imaginação febril
do carnavalesco.
Cenografias móveis
transformadoras
transfiguradoras
metamorfoses;
coreografias feéricas
repetitivas, mas competitivas.
Viemos-do-nada
Vai-quem-quer
Afoga o Ganso
Filhos-de-Gandhi:
é-se um e todos
na maior animação.
Vira cadência, gingado
breque e sapateio
sensualidade.
São seios e trejeitos
são cadeiras insinuantes
são nádegas e rebolados
cinturas que se contorcem
pés que driblam e corrupiam
são cabeças trepidantes.
E sexo insinuado
suor conjugado
no narcisismo absoluto
(e dissoluto)
— o Belo além do Racional.
Cafona e genial.
VII
Universo configurado, dos conjuntos
— demarcado e denso:
um desfile frenético e patético
um deslocamento como serpente
plúmbea, deslizante, em evoluções
dos abre-alas, mestres-salas
porta-bandeiras, ritmistas e percussionistas
das baterias ensurdecedoras, dos puxadores
de sambas, carros alegóricos
e, lá no alto, impondo-se
sobre os comuns, os destaques;
lá em baixo, os integrantes
do pacto social nivelador.
Reis, príncipes, condes
autoproclamados
numa idealização enobrecedora
suspensiva de desigualdades:
uma trégua passageira
nos rituais da inversão
das personificações arbitrárias
assumidas, consentidas.
Carnaval é carnaval
das autolegitimações
do mundaréu ensandecido.
VIII
“Entre a turba grosseira e fútil
Um Pierrot doloroso passa.
Veste-o a túnica inconsútil
Feita de sonho e desgraça”.
MANOEL BANDEIRA
Na Quarta-Feira de Cinzas
caímos na real:
o desfilante-príncipe volta a ser camelô
a sambista ao tanque de roupas
a baiana às suas panelas
e o homem da comissão-de-frente ao caminhão.
Deixam a fábrica de sonhos
a utopia
para o chão da fábrica de sabão.
A patroa volta a ser patroa
e a empregada, comparsa do mesmo grupo
volta a ser empregada.
Os que foram invejados, admirados
endeusados por seu virtuosismo
por sua capacidade de organização
pela complexidade, por sua criatividade,
voltam a ser párias
a ser os incapazes, antissociais:
prostitutas, pederastas
bandidos, traficantes
desalojados de qualquer cidadania
e alforria.
O rico volta à sua riqueza
e o pobre à sua pobreza
depois da banda passar.
A solteirona aos seus sonhos redivivos
o machista às suas fixações recalcitrantes
alguns encontram o amor perdido
enquanto outras saem grávidas do embate.
E vem o bloco dos retardatários
que saem dos últimos bailes,
das prisões, das ilusões,
os que vão aos penhores
os que vão aos enterros
dos suicidas e vitimados.
A cidade vai voltando
à outra normalidade
ao clichê e à rotina
ainda mais cruel.
Tragédia e alegria
num só lance de sorte
de vida e de morte
mas ano que vem tem mais!
Canto 72
O BODE SANTO
Cabras e bodes
nas constelações nordestinas.
Somos cabras, somos bodes
nos íngremes penedos
do solstício de verão.
E somos trágicos
somos tragos
daí a nossa ascendência helênica
e sertaneja, renitente, penitente
consumindo a água do próprio
corpo, como cacto, como gravatá
e qualquer farinha ou mungunzá.
Bodes expiatórios, da redenção
(vida), do expurgo e da comunhão
— da pele que absorve a última
gota de orvalho ou de sangue
no sacrifício votivo, na expiação
na imolação salvacionista.
Cabras e bodes de Deus
ovelha negra ou mestiça
que exorcizais os pecados do mundo
tende piedade de nós
e que o velho ceda lugar
ao novo:
assim seja.
A cabra morrendo e parindo
no milagre da ressurreição
— o nordestino é
antes de tudo um forte
pela sua morte (de cabra)
que fecunda a terra
com seu sangue de barro
sagrado, santificado
seja o vosso nome.
Como semente, como grão
fertilizante, como ovo da reprodução
da morte que gera a vida
nas entranhas do sertão
absorvendo o alimento
de parcela extraída da terra
de que é parte indissolúvel.
Aquela morte que se multiplica
e frutifica: a morte do nordestino
é antropofágica, geofágica
alimenta-se de si mesma,
alvissareira e adventícia.
Não só no bode mas também
no touro encantado
da ilha de São Luís do Maranhão
numa evocação arquetípica
da fecundação telúrica, arcaica
e sempiterna do milagre da vida,
amém.
Canto 73
CORPO SANTO
obrigação oferenda
manjares
ritos purificadores
avatar dos orixás
a alma humana
acorrentada à sepultura
escura do corpo
aliança / pacto
entre o homem e a divindade
Canto 74
ARTE BARROCA
Anjos, arcanjos, querubins
sujeitos à devoção e aos cupins.
Transplantados, imitados
nos confins
do mundo civilizado.
Estatuária
de cópia e recriação
impositiva mas, ainda assim
construtiva — ou seria adaptativa —
das matérias-primas
nativas, estranhas.
Nas missões e reduções
indígenas, nas montanhas
das Minas, nas plantações
escravas, numa catequese
de branco exilado, sermões
e ascese, em procissões.
Nos pampas jesuíticos
e seu ideário ou utopia
numa autoria coletiva
e mesmo anônima
numa adaptação ou improviso
renovador pela mão
do artista de exceção,
mas também por desvio
e acomodação.
Pinturas veneradas, corroídas,
santos-de-pau-oco, utensílios
vestígios coloniais nas feições
derruídas de imagens esculpidas
no cedro e na pedra-sabão.
Um barroco expandido
às vezes tosco (numa produção
de amálgama e sujeição)
de rigidez que martiriza.
Arte como parte
da missão evangelizadora
e exploradora de bens
e de almas subjugadas.
Canto 75
BORDADOS E LABIRINTOS
Debruçada sobre a almofada cilíndrica
dedilhando bilros de madeira lustrada
vejo minha mãe, corcovada
cruzando os fios e espetando alfinetes
— talvez espinhos de mandacaru —
perfurando no papelão o riscado
de motivos florais tão sutis.
Vejo outras mães, tias, sobrinhas
na dança dos bilros redondos
tramando rendas e bordados
cruzando fios de algodão
em combinações labirínticas
— linhas grossas, espessas
embaralhadas, enviesadas
ganhando formas e cores.
Modelagens de sonhos coletivos,
artefatos engenhosos, manuais
com agulhas e dedais
— são pontos de cruz e crivo,
ponto cheio e matiz, ponto estrela,
ponto d´água, ponto-a-jour,
ponto no ar, moldando figuras
esticadas em bastidores tenazes.
São arabescos bordados,
teia e enredo, tramas e tessituras
de fazeres e manufaturas:
são rosáceas, engenho e arte
na espessura do linho
na alvura da cambraia
pela rudeza do morim
e a pureza do organdi.
Monogramas aplicados em travesseiros,
cestinhas (delicadas) forradas de cetim
com apliques, tecidos recortados
com os fios retirados, trançados
formando geometrias e simetrias
repetindo e multiplicando-se
em peças emendadas, arremates.
Vejo minha mãe-bordadeira
à luz do dia, à máquina de costura
preparando o enxoval de bebê,
a cortina e os guardanapos enfeitados
a toalha de mesa em richelieu.
Solteironas, viúvas, mulheres
abandonadas, avós e netas
na cerimônia da iniciação
— no Ceará, no Rio Grande do Norte
e na ilha de Santa Catarina –—
de mãos ágeis que mais sabem
na moldagem do tecido vazado,
nas tramas de luz e aragem
da renda de filé, na renda de crochê.
É quando as linhas se cruzam
e se enlaçam em nós e pontos
tecendo as redes com varandas
em Mato Grosso ou no Maranhão
como tapetes voadores caprichosos,
como sugestivos jardins florais
nas cortinas e nos finos panos de mesa
decorando as sacristias das Minas Gerais.
Canto 76
COM MENOTTI DEL PICCHIA
“Quello que fu nom è più”.
PAPINI
A Semana de Arte Moderna
foi a pira fumarenta e centrífuga
dos valores passadistas
— contra os “patriarcas do obsoleto”.
Havia-os, então.
Haverão!
Com as “proporções de queima”
no altar das vocações
libertárias, incendiárias
uma fogueira iconoclasta
ardia e julgava
com alguma pirotecnia.
Quem diria? Além de pregar
— com justiça e alguma chalaça —
contra os vocábulos chochos e secos
— um montão de cadáveres insepultos
idolatrados no relicário da literatice
— “lerdice de nossa incultura” —
contra os râncidos moldes da estatuária
literária;
além de abjurar o inçado anacrônico
a caturrice
a estultícia
as ruguentas vestais do passadiço
os misoneistas faquirizados
— inertes e inúteis! —
os modernistas imolaram
Peri e Aleijadinho...
Contra o romantismo piegas!
Contra o realismo de açougueiro das letras!
Contra o velho, o obsoleto, o anacrônico
o conservantismo
a subserviência e a mediocridade:
conhecimentos surrados, fossilizados
o ramerrão gasto e atrasado.
Contra o parnasianismo marmóreo
e pomposo dos poemas imortais!
Contra a gaiola-de-ouro do soneto
(o “sonetoccocus brasiliensis” satirizado
por Cassiano Ricardo — um fardo!)
arapuca-de-taquara dos versos medidos
no acicate do Oswald de Andrade...
— uma estatuária gélida e oca
cheirando a cópia da tradução, a plágio...
A ordem do dia era a renovação.
Buscar novas formas para as formas novas,
outra técnica para a sua
representação.
Vanguardas!
Todas as vanguardas estão mortas
(não apenas os vanguardistas)
mas ainda ardem
as suas brasas
como asas de fênix
per omnia secula seculorum
no incensário
das exaltações.
Canto 77
OS PILOTIS
Os pilotis estavam em toda parte
a partir de Le Corbusier
e Niemeyer:
nos edifícios públicos,
nos prédios de apartamentos,
nos clubes e parques
criando espaços vazados
arejando as nossas cabeças,
ampliando a nossa visão
— éramos tão modernos
tão avançados, imensos...—
imersos no mundo (hodiernos!!!)
e não cabíamos em nosso tempo.
Os pilotis sustentavam o Brasil
e projetavam a nossa criatividade:
nos poemas dos concretistas,
na diagramação do Jornal do Brasil,
nas esculturas geometrizantes
de Amílcar de Castro e Lygia Clark,
nos jardins de Burle Marx
e, estilizados, avarandados,
nas construções de Brasília
e até mesmo na bossa-nova
de João Gilberto e Tom Jobim.
Eu via pilotis por onde andava
até onde a vista alcançava:
nos filmes de Nelson Pereira dos Santos
e do genial Glauber Rocha
que a gente adorava, mas não entendia:
— em Deus e o Diabo na Terra do Sol —
havia tantos mandacarus-pilotis
suportando um céu de inclemência...
Em Terra em Transe os pilotis
não eram apenas cenário
mas o discurso arbitrário
de arquiteturas impossíveis
no desvario da linguagem
do cinema-invenção
numa estética de rompimento
e aproximação planetária.
Nunca houve tanta utopia
e tanto questionamento!
Nunca fomos tão originais
— e como éramos universais!
Estávamos tão alienados
entre pilotis teoréticos
em manifestos proféticos
de uma (abortada) revolução.
Canto 78
HAVIA
Havia sempre água fervendo
na chaleira
para as rodadas de chimarrão;
havia sempre cafezinho quente
no bule
no fogão à lenha nas serras de Minas;
havia o vinho carmim do açaí
na tigela
do Pará ao Maranhão.
Galinha de cabidela,
pinga na roça
e tererê à vontade
durante as cheias dos rios.
Havia macaxeira cozida
e polenta assada
havia torresmo e pinhão.
Depois da piracema
havia peixe de montão:
pirarucu, pintado
com pirão.
E tinha também a mariola
nos trens da Central do Brasil
vendidas a grito e a vintém.
Roletes-de-cana, garapa
e paçoca
sem contar que o amendoim torradinho
nas matinês do cinema
— dizia-se —
era afrodisíaco.
Tinha até feijoada
e angú e arroz carreteiro
e pamonha
em folhas de milho
tacacá-no-tucupi
e vatapá.
Hoje tem pipoca de micro-ondas
hamburguer de freezer
comida a quilo
no delivery do fast-foood
para o horror do Ariano Suassuna
reclamando do coffee-break.
Canto 79
TUPY OR NOT TUPY
“não consentindo por modo algum (...)
Usem a Língua própria das suas Nações,
Outra chamada Geral; mas unicamente a Portuguesa”
(...) “para desterrar dos Povos rústicos
a barbaridade dos seus antigos costumes”.
(DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS, instrução pombalina, séc. 17)
I
Haveremos de (voltar a) ser poliglotas
para nossa inserção no mundo
— a nossa definitiva mundialização.
Éramos multilingues no Grão-Pará e Maranhão
e por todos os brasis
na relação entre língua e fé
ou religião
— entre conhecimento e catequese
na tese da doutrinação.
II
A nossa Língua Geral
nos primórdios da colonização:
uma gramatização do tupi
na conversão do gentio
até que aprendessem o portuguez
e sua súdita condição.
Todas as línguas havia pelo sertão
a conquistar
com a confissão cristã
numa linguagem de conversão.
Há(via) as línguas subterrâneas
de judeus e de árabes
e de comerciantes clandestinos
e os dialetos africanos
de senzalas e quilombos.
III
Línguas de relação
e até mesmo de Inquisição
(do latim da liturgia
e do francês do Iluminismo)
e cativeiro e redução jesuítica
da evangelização.
Mas no Maranhão
línguas havia de remissão
nativas ou de dominação:
o francês, o holandês e o português
entre os tupinambás.
Em que língua parlamentavam
Charles de Vaux e o cacique Pira-jivá
Na França Equatorial?
IV
(O Marquês de Pombal acabou
com a Língua Geral
ao expulsar os jesuítas do Brasil
e de Portugal.
Ao persistir a homogeneização
de uma língua tal – ele temia? –
a independência da colônia
viria de forma natural..
Exercício especulativo banal!
A História não é território de lógica
e de hipóteses pretéritas... Mas vá lá:
a unidade linguística portuguesa
preservou a unidade nacional?!)
V
Havemos de ser poliglotas
— depois de dominarmos a língua nacional —
pra cultivar todas as línguas
de nosso multirracial povoamento
e imigração, de todos os quadrantes
e para nossa efetiva globalização.
Haveremos de valorizar
as tantas línguas indígenas
e as várias falas regionais
de nossas identidades
numa aldeia global.
E que a nossa miscigenação
definitiva seja linguística e cultural
— por que não?! —
e não apenas racial.
Haveremos de ser poliglotas e multilíngues
mesmo conservando a nossa língua oficial.
Canto 80
ANTROPOFAGIAS
São muitas as antropofagias do Brasil,
não apenas as da pura encarnação
ou, dos modernistas, a deglutição
de saberes e sabores nacionalistas.
Mas o verdadeiro diálogo com os portugueses,
a verdadeira comunhão de raças,
a definitiva fundação da nacionalidade
começou quando os caetés devoraram
o bispo Sardinha como alga marinha.
Como tupinambás abocanhamos Hans Staden
e toda a cultura ocidental
e a oriental de sobremesa:
ideologias, símbolos, fantasias.
O futuro do passado
— cru ou assado, tanto faz —
na voracidade da digestão
pelas vísceras
da criatividade.
Hélio Oiticica monta parangolés
para exorcizar araras e tucanos;
Caetano Veloso e Décio Pignatari
esfacelam a língua para recriá-la;
Glauber Rocha, primitivista,
quer-nos famintos mastigando mitos.
Essa mania nacional de misturar tudo no prato
de combinar iguarias incompatíveis
de miscigenar, fundir e confundir essências
e vivências irreconciliáveis
na amálgama dos minerais inconsúteis.
Canibalizamos tudo ao nosso alcance
— gêneros literários, frutas, etnias, ideias –
e ruminamos inocentes nossos crimes
e virtudes e nos redimimos
pelo excesso de pecado.
O Brasil devora seus habitantes
a televisão dilacera as consciências
as igrejas trituram almas indefesas
as relações sociais ou sexuais
metabolizam qualquer idiossincrasia
e anulam toda individualidade:
viramos suco, geleia geral, galera.
Amerdalhamos.
Canto 81
VERDADES OFICIAIS
Todos somos iguais perante a lei
e os direitos constitucionais são para todos
os parentes, os amigos e correligionários.
Todos somos inocentes, até prova em contrário
alguns são considerados inocentes
mesmo depois de comprovados
os seus crimes contra o erário público.
Repetimos, para que não reste dúvida:
usufruímos de todos os direitos constitucionais
— tortura, nunca mais!!!
e estamos livres de preconceitos
— quem duvida?!?!
e somos cordiais.
Nossos políticos são mais honestos,
nossos banqueiros mais patriotas
e os juristas mais judiciosos.
Nosso céu tem mais estrelas
nossos coqueiros têm mais cocos
nossas galinhas põem mais ovos.
Canto 82
PRÁ NÃO DIZER QUE NÃO FALEI
Por onde passa boi ,passa boiada
diz o ditado de origem popular,
— passa trem, passa tudo, passatempo
e se não bastar, passarinho
como ensaiava Mário Quintana.
Vou passar em revista, em revisão
o que escrevi, com mouse na mão
no “localizar”, buscando palavras,
lavrando os termos da composição.
Como não sou poeta de cordel
versejador de improviso e desafio
sem o papel de Patativa do Assaré
nem busco rimas no dicionário...
Pois é... rimo é no meio, atravessado
em qualquer lugar, e se quiser
e convier. Vou listar o preterido
— mas nunca o esquecido — se se quer.
Apenas para constar, não é?
Não falei de cafuné, pois não.
Nem de rapé, axé e bicho-de-pé
porque estavam, pois sim, subentendidos.
Esqueci da Marta Rocha e suas polegadas
a mais, e dos versos preferidos
do Bilac, nem citei as vaquejadas
nem o Cadillac de JK no museu.
Deus meu! Esqueci até a devoção
a Nossa Senhora de Aparecida. Sacrilégio!
O Auto da Compadecida e o Cícero Romão
de nosso culto, romaria e sortilégio.
Deixei de lado até mesmo o futebol
e sua/nossas/deles glórias eternas
o arrebol do Araguaia – e levo vaia
por olvidar as vedetes e suas pernas.
Samba do crioulo, branco azedo,
do nissei, do sansei e do não-sei,
esqueci a lira do Álvares de Azevedo!!
Medo de citar o presidente Figueiredo...
Passaredo, Passa Quatro, Pajuçara.
Não citei Araraquara e nem a capivara...
Onde ponho a Xuxa, o Pelé e o Gegê
(quem se lembra?!) e os ídolos da tevê?
Quem não comunica se trumbica
dizia o filósofo Chacrinha – um ventríloquo
com o relógio na pança. Como fica?
Ubíquo? E o “Criança Esperança”?
Em verdade, os digo, falei de todos
eles, de tudo, nas entrelinhas
das verdades comezinhas, modos
de ser, de falar e de representar.
Somos múltiplos, prolixos, discursivos
misturados, uma salada — Xtudo.
Os preferidos de Deus, predestinados
e tudo o mais... e fico mudo.
Canto 83
PAÍS DE/DO FUTURO
“o hábito nacional de deixar tudo para o dia seguinte”.
MÁRIO DE ANDRADE.
Eterna nação do futuro!
Sem noção da própria história
talvez por falta de memória.
É que estamos ligados à terra
e a terra é sempre o cotidiano
em renovação
com tudo que ela encerra:
(uma questão de meridiano)
luz, (in)salubridade, brotação
— nascer e renascer a cada ano
mas, por opção
preferimos o pôr-do-sol
aos arrebóis.
Seres diurnos
mas de hábitos noturnos
sob os lençóis da madrugada
amancebada.
Stephan Zweig a falar de futuro!
E com toda razão...
não cultuamos heróis:
vivemos de premonição
enquanto os fatos históricos
viram meras efemérides
— que eufemismo!!!
são datas oficiais
— nunca pessoais, entranhadas.
Nada sabemos da Independência
e de sua consequência
e a tal da Abolição da Escravatura
ficou mesmo na assinatura.
Em quem votamos
nas últimas eleições
(sem melhores opções)?
Indiferentes a qualquer governo
— em que nunca confiamos
nem creditamos esperanças —
pois não acreditamos em políticos.
Entre nós, o caudilhismo
fracassou
enquanto prosperou nas vizinhanças.
Sobreviveu ao coronelismo
do voto de cabresto,
pois votamos de arresto
compulsória e obrigatoriamente.
“Este futuro é sermos tudo”
vaticinou Fernando Pessoa.
O futuro é termos tudo
que o passado nos l(n)egou.
Canto 84
BRASIL NO MICROSCÓPIO
Superando metodologias bitolantes,
rechaçando o instituído e acadêmico
e pondo em risco a própria credulidade
no limite do que é reconhecido.
Há um Brasil fossilizado, estigmatizado
e repetido sem qualquer reflexão,
um país ruminado e mesmificado
em discursos pra plateia.
Brasil de slogans publicitários
para um consumo pasteurizado
que invade outdors, frequenta faculdades
e alimenta campanhas eleitorais.
Há um Brasil fátuo, caricaturado
de autoajuda e de divã de psicanalista.
Tem também o Brasil do especialista
que analisa um cadáver
e que só vê as partes
— a economia, a história, o subsolo.
São fúteis, quase inúteis.
Tem também o Brasil de prancheta
de projetos identitários conformantes
— dos políticos, dos religiosos, dos marqueteiros
que funcionam enquanto duram
mas não perduram ou sobrevivem.
Na diversidade de nosso imaginário
antropofagiamos tudo o que é supostamente eterno
pela dialética permanente de tanto céu e tanto inferno.
Carnavalizamos tudo o que é pretensamente sério
e revivemos e regressamos à selva enigmática
e emblemática que tudo encobre
e que tudo devora como aquela serpente.
Canto 85
TELEOLOGISMOS
(SÚMULA)
I
Quem se atreve a prever o futuro?
É como dar um tiro no escuro!
Oráculo de Delfos
que sinais emite?
Futurologias mediúnicas, ou científicas.
Cenários projetados, previsões estatísticas,
monitoramentos, opiniões de especialistas.
Que Brasil vai emergir
desses planos e de seus reveses
de tantas políticas públicas
quanto de seus contratempos?
Que acidentes definem o curso
das ações dos governantes,
de suas mentes errantes?
São coerentes ou são circunstantes?
Antes tem a ver com depois?
Afinal, a História parece
não ensinar coisa alguma.
Viveremos de salvacionismos e descontinuismos?
De que soluções surgirão novos problemas?
Seria possível traçar algumas utopias
e valer-se de teoremas, prognósticos
e prever alguns desdobramentos?
Como não temos respostas
valhamo-nos de questionamentos.
II
Que advirá destes ciclos sucessivos
de uma economia predatória
de desmatamentos intensivos
e de plantações extensivas
em infindos latifúndios?
Como, em seu tempo, dizia
frei Vicente do Salvador (em 1627):
“usam da terra, não como senhores,
mas como usufructuários,
só para a desfrutarem
e a deixarem destruída”.
Sombrios cacauais, infinitos canaviais,
terras paludosas, montanhas bociosas
nas Gerais, pantanais e manguezais.
Haveremos de plantar nova cultura
de preservar e reciclar e proteger
a natura e sua criatura
e evitar a desertificação.
Que a ciência e a consciência
se irmanem pois trabalham em rota
de colisão.
Acabando o analfabetismo terminaria o coronelismo?
É o voto universal e obrigatório
um direito compulsório?
Talvez o clientelismo, paradoxalmente, sobreviva
para limitar o centralismo
para minar o autoritarismo. Algo polêmico
tratando-se de um mal endêmico
que tem suas raízes em alguma relevância
pois “o nosso momento é ainda noturno”
como nos ensinou Graça Aranha.
O voto do analfabeto é igual ao do acadêmico?
O de um é muitos, o do outro pouco
e qual é o seu desdobramento?
O acadêmico enviesado por sua ideologia,
o analfabeto e sua mais-valia eleitoral:
mais valem mil analfabetos na urna
que dois intelectuais na redação. Sim ou não?
Pior é quando analfabetos e lideranças carismáticas
se irmanam e proclamam consignas apocalípticas,
profiláticas, panaceias salvadoristas
— salve-se quem puder!— messianismos redentoristas,
populismos doutrinários sifilíticos.
As nossas debilidades seriam as nossas fortalezas?
Enquanto povos fortes e sanguíneos se destroem
nós, tão flexíveis, nos entendemos
sem maior discernimento.
Há mais partidos políticos no Brasil
do que ideologias em todo o mundo:
vermelhos, azuis e muitos laranjas.
Talvez sim. Isso é bom, isso é ruim.
Seria o multipartidarismo
a forma final da idiossincrasia nacional?
Seria um bem ou seria mesmo um mal?
Uma forma enviesada de pacto político
de governabilidade, contra o caudilhismo?
[Toda tese, mesmo a mais disparatada
pode e deve ser testada... pode revelar tudo
ou pode dar em nada. Pouco importa.
Perguntar não custa coisa alguma
mas pode levar a alguma coisa...]
III
Voltaríamos ao parlamentarismo
para desalojar os feudos regionais do poder central?
O profissionalismo, finalmente, imperaria
no serviço público, sem partidarismos e regionalismos
arbitrários. Utopia? Sonhar é preciso.
Separatismo: garantia de união
só na cláusula pétrea da Constituição?
Parece que não. Haveremos de unir-nos
num novo pacto republicano
garantindo uma representação mais nacional.
Em vez de separatismo
criaríamos mais estados e territórios
reciclando os regionalismos?
Teríamos dois Rio Grande do Sul
três Minas Gerais
quatro Amazonas... etc.,
por divisões fisiográficas e econômicas
além das fronteiras culturais e políticas.
É o que li por aí... Qualquer proposta
é bem-vinda se a alma não é pequena.
Dividam o meu Maranhão em dois estados!
Um ao sul, com pedaços do Tocantins
e do Pará... mas não dividam os territórios
entre as mesmas famílias mandatárias!
Pombal (já sabemos) impediu o ensino
das línguas indígenas na catequese.
O Estado Novo proibiu o ensino de línguas
dos imigrantes na alfabetização.
Em política, sempre há razões
(que a própria razão desconhece)
e circunstâncias
mas também as consequências.
A língua nacional nos une e nos separa
— com tradições milenares e povos
multitudinários — promovem línguas estrangeiras
em massa... Que haveremos de fazer?
Nem o português ensinamos pra valer...
Terrorismo: horroriza-nos semelhante barbarismo.
Terrorismo seria o clímax do idealismo exacerbado
contra o qual nós brasileiros estaríamos vacinados
pelo nosso eterno relativismo e conformismo.
Mas, em que vai dar o nosso pacifismo
em meio a uma guerra civil não declarada?
Organizações criminosas, corrupção
e violência generalizada, fora ou mancomunada
com os poderes da Nação. Venceremos
pela negociação e/ou pela repressão?
Com as concessões às minorias,
com o pleno desenvolvimento?
Queiramos ou não, é a sociedade
que se autogoverna (pela força da coletividade
organizada) e que se entranha
e impõe soluções. Acreditemos.
Estou apenas especulando.
Como poeta, apenas interpreto
quando não omito opinião.
O país — estamos convencidos —
é mais forte que seus governantes
e, na maturidade, viverá de sua
própria dinâmica e não apenas
(e apesar) de qualquer governo.
É nisso em que nós brasileiros
realmente acreditamos. |