Canto 2
VASTA E VÁRIA GEOGRAFIA
Senhor, escutai, o Brasil é um país
de vasta e vária geografia
física e humana
e qualquer afirmação
— pelo sim e pelo não —
deve começar pelo se não.
Senão, é erro e destempero
alucinação. Ilha e continente
– Insula fortunatae - em que medra
leite da pedra
(em se plantando tudo dá)
terras dadivosas a entregar
“Quanto delas os olhos cobiçaram”
no dizer camoniano
e, no entanto, o homem
morre de fome.
Como pode haver miséria
em horto tão vicejante?
Se existe riqueza mesmo sem ser criada
e o gentio colhe o que não planta?!
Espanta, Senhor, em espaço sagrado
e consagrado, tão imenso
e até desabitado,
não se ter onde morar.
“São terras sem ter lugar”
já definiu Fernando Pessoa
de sua distância, a vislumbrar
tapetes vegetais, relvas, jardins das delícias,
selvas.
Camões: “fermosa ilha, alegre e deleitosa”
um locus amoenus, de eterna primavera
talvez o Paradisus terrestris,
mas, pela dialética, também
horrenda, triste e defeituosa
porque assim é a Natureza.
Ou não. Porque a Natureza
nada sabe dos oxímoros,
menos de suas contradições
num equilíbrio crítico
e indefinitivo.
Canto 3
O NOME DO BRASIL
Brasil,
Meu Brasil brasileiro...
ARY BARROSO
I
Brasil
Breazail
Breasil
Hy-Brazail
ou se preferem, Brazil...
Que importa um nome?
de onde o nome vem?
Quem batiza um país
pelos recursos que ele tem?
Pau-brasil, especiaria...
II
Vermelhos os nossos índios
no seu reconhecimento
um Brasil vermelho em sua
consistência de tingimento
natural
mas, afinal,
e a palavra brasil
de onde vem?
Vem da fala local
ou veio de Portugal?
Vem de braza
da madeira cor de brasa?
III
Breazil é mesmo vermelhidão...
sim ou não
pois sim, mas em celta...
IV
Desde 1339... – garantem!–
o nome Brasil aparece em mapas
planisférios, cartas geográficas...
Uma Ilha Brasil a oeste dos Açores...
Mediceu, Solleri, Pinelli e Branco:
cartógrafos mapearam
e grafaram as terras
desterrrrrrradas, aquelas
narrrrrrrrradas pelos viajantes
e cronistas...
Lendárias, verdadeiras.
Fantasias de artistas...
Fábulas, poesias.
Brasil — uma lenda céltica!
umas “terras de delícias”
vistas entre nuvens...
um topônimo irlandês?
Hy-Brazail – Ilha do Atlântico...
Terra de vermelhidão...
Antes, bem antes:
gregos e fenícios
(“descendentes do vermelho”)
buscavam os corantes
em terras distantes...
V
Que importa um nome
e a sua origem?
Dá renome ou dá vertigem?
Vestígios, testemunhos...
Manuel Bandeira queria Pasárgada...
Dorival Caymmi: Maracangalha...
Lima Barreto, julgado canalha,
preferia Bruzundanga...
Terra de Vera Cruz
e da Santa Cruz
que em vida sustentamos.
Brasil Brasis.
Canto 4
GRANDE SERTÃO, VEREDAS
Uma inalcançável geografia
estende-se além de toda percepção:
país-continente, numa projeção
insondável
sem limites visíveis, apenas perceptíveis
por convenções e descrições
a um tempo vagas e imprecisas.
Nos extremos, a selva, o mar, as pradarias.
Mapa de relevos acanhados
planícies interpostas
a intervalos, por arestas
e frestas, por várzeas
e vales e rios
avolumando-se
articulando-se como vértebras
ou veias tributárias.
Altiplanos e chapadões enfileirados
escarpas, escombros, anteparos de serras
como muramentos abruptos
ou são encostas fracionadas, contrapostas
entre os mares e os campos gerais.
São degraus, camadas, terraços,
tabuleiros suspensos
desde as costas argênteas e as extensas areias
até aos elevados da Serra do Mar
detendo os ventos e os movimentos
humanos.
Cerros aspérrimos, escarificados
onde nascem as águas emendadas
que descem em todas as direções
para todos os quadrantes
pelo leito dos mares extintos
da antiguidade de Goiás:
seu vulcão calado,
suas fissuras cortantes,
suas águas aflorantes, vazantes
por ignotos e remotos
percursos.
São verões abrasantes, decomposições
elementos variantes
dilatações e contrações
da rocha degradada e fria
das estações contrastantes;
são chuvas torrenciais
aguaceiros diluvianos
mananciais
por vertentes, desfiladeiros;
são as cheias inclementes
alternando-se com
a secura dos ares no estio
com os vaus secos
dos rios efêmeros
das secas penitentes.
Paredões talhados, erodidos
como recifes pontiagudos
(flagelos de antigos degelos)
até aos espinhaços planaltinos
— cortes meridionais paralelos —
por onde vaza o rio São Francisco
unindo e aproximando
os povos e os lugares.
Por patamares declinantes
por flancos e barrancos
pendores resvalantes, derruídos
— níveis, andares, patamares —
até a garganta fraturada
do salto de Paulo Afonso
no sertão adusto
e dali aos estuários queixosos
e amplos, ermos e rasos
dos depósitos sedimentários.
Ao mar e sua imensidão.
Do outro mar, das alturas
e planuras
altiplanas
terras do sem-fim.
Canto 5
“KERRIBRASILIAN SEA”
(James JOYCE, no Finnegans Wake)
O Brasil é antes de tudo mar.
Mar-oceano ou terrestre, ondino
mares-chapadões, mares-selváticos
mares ermos, bravios, marés.
Pessoa: “Cala a voz, e é só o mar”.
Sertão-mar, arrebentações, maravilha.
Areias ondulantes, praias, vastidões,
rios-mares, mangues, dunas, pântanos,
espumas rendadas, areias ondulantes.
Espelhos líquidos, marítimos, orlas,
vagas, ilhas, pampas, alagados,
mares artificiais, pantanais.
O Brasil está voltado para o mar
sabe a maresias desterradas,
a mares antediluvianos.
Todos os caminhos levam ao mar
e pelo mar foi descoberto
desde tempos imemoriais:
mares tão reais quanto imaginários.
Mar de Ulisses, de Ojeda, de Cabral.
Mar aberto e mar interior,
dos sargaços, dos anfíbios transmarinos
dos desbravadores,
dos escravagistas,
dos comerciantes,
dos piratas e pescadores,
mar dos imigrantes.
Tanto mar sem horizontes!
(Um horizonte mutante, líquido
de miragens e miríades
orbicular, intransponível).
La mar que es el morir.
(Jorge Manrique)
Canto 6
CIDADES BARROCAS
“De tudo que deixei perco a memória”.
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
I
Naquela madrugada fria e umbrosa
chego a Ouro Preto, de ônibus
pelas corcovas dos montes
vencendo estreitos caminhos:
jovem, na neblina, farejo
odores curtidos, madeiras
carcomidas, pedras suadas
sob os passos apressados.
Das janelas antigas e severas
mortos observam os transeuntes
como fogos-fátuos assustados
em chama eterna, inquietos.
Cruzo “régias pontes sobre
grossos arcos” na companhia
de Cláudio Manoel da Costa
— nubívago árcade inconfidente.
Gonzaga, Cláudio, Alvarenga
tocando albas ovelhas e frautas
num conspiração de sarau
que acabou em desterro e esquartejo.
Em que “foi preso simples alferes
que só tinha um bacamarte”
— diz-nos Cecília Meireles
no Romanceiro de Minas.
II
Cimalhas e gelosias de sobrados
enobrecidos, envergonhados, encardidos
nas ladeiras lúbricas, ladeados
ostentando luxos esquecidos.
Visão fugaz de tempos idos
de ilustres gentis-homens, foragidos
escravos prófugos, clérigos possessos
Marílias e Dirceus em versos.
Na Igreja, São Francisco pintado
no teto, numa cabana de índios.
As velhas minas feridas, violadas
violentadas, vazias, esgotadas.
Em Congonhas, a genialidade
mulata do Aleijadinho (no dizer
de Afonso Arinos de Melo Franco)
na pedra-sabão de sua agonia.
Em Mariana, lado a lado
janelas e portas de igrejas
na praça, dialogam, seculares
e revelam graves segredos.
Igrejas brancas, debruadas
em azuis imorredouros
co´as paredes debruçadas
sobre as luzes de seus ouros.
Canto 7
HILÉIA AMAZÔNICA
“Para vê-la deve renunciar-se
ao propósito de descortiná-la”.
EUCLIDES DA CUNHA
I
Céus exacerbados e águas abusivas
numa enormidade desumana.
Horizontes indefinidos, repetitivos,
numa perspectiva infinita,
mermada,
de mares interiores, vegetais,
no discurso monótono das águas,
no estrépito uniforme das aves,
nas bátegas de chuvas copiosas.
Mares sobre mares diluvianos,
terras sobre mares aterrados,
de mares e terras em movimento
formando e derruindo ilhas, margens,
degredando as vertentes, correntes,
corroendo barrancos e aplainando,
construindo e reconstruindo
na sedimentação pantanosa
e transfigurando
numa esculturação sediciosa.
Transportando desde os Andes
ao Atlântico e à África
o continente diluído
na direção das Guianas,
por fluxos e refluxos e influxos
dos caudais extintos.
II
Sedimentos, detritos, correntezas,
contornos imprecisos, indecisos,
de ilhas cambiantes, degradantes,
desmoronamentos
refazendo a sua rota líquida,
volúvel, por meandros e igapós
inundados, represados,
transbordamentos.
Nem a pororoca estanca
e menos reconquista
a força contida, vencida do rio
na batalha final, impossível
mas previsível
com o mar-oceano.
Depositando-se extraterritorialmente
em praias estrangeiras, além mar,
na costa leste americana,
em outro hemisfério,
na “imigração telúrica”
— tese euclidiana:
“um território em marcha,
mudando-se pelos tempos adiante”.
III
O homem errante, nômade
como o rio provisório e ermo,
como o pássaro arribante.
Na fervura equatorial de seus humores
a umidade oxida e degrada
inexoravelmente
e excita as flores e os animais
na luxúria promíscua
de seus afrodisíacos
odores.
Canto 8
ÍNDIO
Imensidões vegetais, meandros de rios abundantes,
peixes, pássaros, árvores monumentais e vastidões
insondáveis, animais errantes e oclusas paisagens.
Margens, vergéis, vargens, mundaréus e miragens.
O índio — pés miúdos — a andar sobre raízes,
camadas espessas de folhagens decompostas,
o ar saturado de águas e aromas estivais.
Em suas entranhas correm seivas vegetais.
Sangue turvo de resíduos minerais decompostos
— algas, aguapés, cipós tentaculares, ervas, sais
recompostos em tessituras fibrosas, musculares.
Pelos olhos dele passam capivaras errantes,
arrebóis, araras espalhafatosas, macacos
saltitantes, sóis e luas itinerantes.
Canto 9
OS ÍNDIOS
I
Também vieram de longe
e plantaram raízes
imemoriais
no jardim de sua eleição,
desde a diáspora primeva
da Criação.
Não sabemos se temos
a mesma origem
ou se nascemos já divididos
disputando o mesmo espaço.
Descimentos e preamentos,
bandeirantes
dizimaram e escravizaram
índios sem religião
como animais
errantes.
II
Os sobreviventes estão confinados
em reservas
como num zoológico humano.
Duas culturas não podem
ocupar o mesmo lugar:
ou o índio é integrado
à sociedade
e perde a identidade tribal
ou refugia-se na comunidade.
Garimpeiros, pecuaristas,
seringueiros e extrativistas
(caraíbas)
avançam com motosserras.
O índio não é ambicioso
nem ocioso.
A terra é a existência do índio
— terra de todos, comunitária,
terra que é partícula
em movimento e assimilação.
Terra e índio: um vive da outra.
Mãe e filho, indivisíveis.
Terra sagrada
de húmus vivo e fértil
de seus antepassados
com que o índio abona
o inhame, o cará e a taioba.
Em que cultiva, caça e pesca
e colhe, apenas quando
e quanto necessita.
III
Para o índio não há amanhã
em qualquer sentido
pois o tempo não existe
em sua percepção:
o movimento do corpo
num ímpeto contínuo
(da vontade em ação)
é que move a rede
(e não os pés e a mão)
como move a vida.
Dias alternam-se sem
alterações e altercações
— de pesca, de fruta acesa
que logo vai compartilhar
no complemento do beiju,
do pirarucu e do tucunaré.
O fogo está sempre aceso
na aldeia e almas intermitentes
de dormir e despertar,
de morrer e renascer:
um tempo dentro de outro
tempo infinito e cego.
Fogo feito para irmanar-se
depois de buscar a lenha
que não armazena jamais
para não quebrar a rotina.
Um grande poder de concentração
— e de dedicação extrema —
com todo o tempo do mundo
mas sem a noção de tempo.
IV
“Tem presença de espírito
e raciocínio rápido”
— atestam os irmãos Villas-Boas —
como a onça e o peixe
(que o imitam)
e muito senso de humor
para rir gostoso e largo.
Se tem rio e lagoa de banhar
salta na água como peixe
o tempo todo, a toda hora
e sai brilhando e secando
com o calor do corpo e da
aragem que o visita, festiva.
A pele bronzeada do sol
e do espaço aberto, nu
inteiro, sem pelos, o índio
é o corpo todo exposto
(pois tudo que é belo é bom)
como uma escultura pintada
com as tintas dali mesmo
— do urucum, do jenipapo —
em comunhão. Sem pudor.
Pudor é norma, não é normal.
V
O índio é totem — coisa viva,
labareda e chuva, solua luasol
na cerimônia do Kuarup
em que os toros pintados
e adornados — os escuros
são homens, os claros mulheres —
ganhando existência
na lenda da Criação.
Transformando-se em vidas
como o sal das cinzas
do aguapé ou do inajá
na alimentação: na transição
do mineral ao animal e ao
vegetal ou untando o corpo
com o óleo de pequi. As ervas,
as matas todas e as frutas e
as aves no ovo/ sêmen/te.
Canto 10
HOMENS-TOTENS
Poder falar e privar com os animais,
sendo um deles: cutias e pacas,
araras e papagaios, cobras mansas
e macacos domesticados,
perdizes, quatis, guarás, tucanos
no convívio íntimo e essencial
adotando suas vozes e plumagens,
suas peles, artimanhas,
estratégias de vida e alegria.
Homens e animais irmanados
ao nível de folha, de cipó, de chão,
de espaço e agonia,
de instinto e linguagem,
de alma única,
primitiva
sã.
Totens vivos.
A natureza comum
de que participam,
a matéria
que unifica
e liberta.
Canto 11
O POETA VIANDANTE
“Este verde País”.
CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
I
Vago por campos e montes,
por caminhos desmedrados,
andejo por trilhas errantes,
percursos imaginados,
ermos, vastos, por versos
itinerantes.
Generosas terras e ondulosas serras.
Prados verdejantes, castos, úberes
rios caudalosos, pardos, céleres,
bravios, púberes, arredios,
outros pedregosos, frios, lerdos.
Rios secos, temporários, tristes.
Rasos, crassos, temerários.
São vastidões insondáveis
que meus olhos antecipam,
sertões, pampas, pantanais
indevassáveis, solidões.
Viajor de rotas infindas,
andarilho sem destino,
curvas, retas (trilho, trem),
sol a pino, pranto e espanto.
Dor.
II
Estações abandonadas, portos,
pastos, pontes, vastidões
desoladas.
Eu, mochila à costa, sem rumo
pedindo carona.
Boleia de caminhão, rede de pouso,
beira de estrada, indo pra onde
for.
Vou por onde me levar
o pensamento,
com os cabelos ao vento,
distraído,
com olhos de ver
e ouvidos de ouvir.
Desvendar um Brasil
em qualquer lugar
onde ele se der
e se mostrar.
Canto 12
ODE À SOJA
Eu canto
e meu canto se espraia
do Rio Grande do Sul
ao Mato Grosso e ao Maranhão
pelas campinas ondulantes,
como mares verdejantes,
como jardins de longas,
intermináveis
extensões,
por curvas de níveis, horizontes
suaves de cultivo extensivo,
por geometrias de todos os verdes,
verdes-mares de plantios,
verdes-olivas, verdes-claros,
desverdantes de colheitas
mecanizadas.
Verdes-planos superficiais,
de chuvas intermitentes,
irrigações,
águas verdes, alcalinas,
águas de nuvens de chumbo,
estagnadas
sobre terras cultivadas
como imãs, como zênites
sob raios coruscantes,
satélites rastreantes de plantio.
Canto a soja
que serpenteia e se alastra
dos pampas ao cerradão
pelas estradas ao infinito
numa paisagem monocórdia,
monótona, repetitiva,
mas vicejante
em seus planos enquadrados,
na pulsação
de seus grãos engravidados,
de seu manejo científico,
de sua transgenia
polêmica.
Canto esses povos errantes
devastadores de matas
e savanas bravias:
anti-heróis,
empresários,
tecnólogos
ligados às bolsas de futuro,
acumulando divisas,
atravessando fronteiras
na mais assumida
mundialização.
A soja
respira o ar do planeta,
chuvas ácidas globalizadas,
viaja de trem, de navio
e fala todas as línguas
sem sotaque.
Ela coloniza,
exporta valores agregados
e importa bens de consumo,
freta aviões, alavanca sonhos
inverossímeis.
Ouro-soja
cercado de regalias
expulsando o homem da terra,
por dunas vegetais
sitiadas
na geografia
do Meta-Brasil.
Canto 13
AS FRONTEIRAS
I
Fronteiras do fim do mundo
demarcando o ignoto
e o insondável:
inconcebível limite
— finis terrae.
Separando o mundo civilizado
das terras inomináveis
de bárbaros e monstros,
das bestas e dos ciclopes
de línguas indecifráveis
quando não de gentes sem fala
e sem entendimento,
de nômades desterrados,
deformados de toda complexão
e de toda razão,
sem história e sem porvir,
daquelas gentes abandonadas
por Deus desde o êxodo dos êxodos.
Dividindo crentes e descrentes
sem paradeiros e sem destino,
confinados pelas linhas divisórias
da fome, do frio, das crenças
que evocam divindades anímicas
no abrigo das proteções naturais
e sazonais.
Outras são as fronteiras
do mundo civilizado,
do mundo demarcado
e sitiado,
dos limites arbitrados,
policiados,
estendendo-se por territórios
nominados
com títulos de possessão
e domínio.
Terras feudalizadas
por senhores enobrecidos
ou por governos de ocasião
— iguais em todo sentido –
aguerridos no seu enclausuramento
no apartamento do mundo
e em sua exclusão
e possessão.
II
Que demarca dois povos,
duas nações, duas pessoas?
Que linha divisória
os diferencia
e contrapõe?
E as nações sem territórios
e os povos sem demarcações?
Qual a pertença telúrica
do cigano e do imigrante,
do nordestino retirante
e do índio nômade
ou andante e arredio?
Qual a pátria dos prófugos,
dos sem-pátria, exilados,
desterrados no ostracismo,
dos povos de rua,
dos sem-terra,
dos povos errantes,
das tribos ambulantes,
das comunidades alternativas,
sem território
e dormitório fixo?
Debaixo da ponte, a que nação
corresponde?
Sobre a palafita insalubre,
a que cidadania pertence?
Balseiros no mar,
clandestinos nos barcos cargueiros,
aventureiros e transeuntes.
Nações expatriadas,
povos transladados,
gentes espoliadas,
em guetos,
alienadas de qualquer pertencência
legal,
em fronteiras abstratas,
culturais
e convencionais.
Que divide um país de outro?
Uma bandeira? Uma língua,
uma constituição?
uma intenção demarcadora?
um preceito ou um preconceito?
uma cerca, um muro circunstante?
Ideologias? Etnias? Religiões
ou interesses tribais? Que mais?
Sentimentos telúricos, ancestrais?
Valores transnacionais
em que pátria residem?
Gentes que nascem, vivem
e morrem sem qualquer registro
de nascimento e morte,
a que país pertencem?
Que fronteira é essa que distancia
um bairro milionário e saudável
de outro operário e miserável?
Que separa estas crianças
louras, lindas, vitaminadas
daquelas outras
negras e esquálidas?
Estes corpos esbeltos
malhados e bronzeados
daqueles deformados
pelo trabalho escravo?
Debaixo do chão, plantados
como cadáveres indigentes,
é-se gente
e com que nacionalidade?
III
Fronteiras abstratas, rituais,
fronteiras indefiníveis,
arbitrárias,
indevassáveis,
mais imaginárias que reais,
infinitas.
Umas vezes dividem,
em outras aproximam.
Povos fraturados,
cortados ao meio
— os bascos, os ianomâmis
os curdos, os gaúchos
os pantaneiros – e também seus animais,
suas aves,
sistemas ecológicos
(contínuos, contíguos)
seccionados, amputados,
serrados.
Que aproxima os guerrilheiros
dos narcotraficantes
— seriam vasos comunicantes
ou associações circunstantes?
Que dizer dos
sacoleiros contrabandistas,
traficantes,
de que lado estariam?
A fronteira divide e discrimina,
protege e separa,
avilta e humilha
povos indivisíveis
— ou hibridiza como os brasiguayos —
como os caminhoneiros
que engravidam as estações
por onde desovam
pelas povoações isoladas
por eles desconfinadas,
por eles inseminadas
de vírus e notícias
transportadas.
São rios e são montanhas e são selvas
intransponíveis, são tepuys
e altiplanos insuperáveis
em que as linhas demarcatórias
não se veem e não se reconhecem.
São terras intransitáveis
que nem os missionários
e os garimpeiros
e os militares das fronteiras
percorrem.
Além das alcabalas e postos fiscais
que revistam mochileiros
e deixam passar os moambeiros.
Assim também as fronteiras amuralhadas
com cercas eletrificadas,
guardadas por cães militares
mas por onde o troca-troca,
o entra-e-sai
é constante,
vem na barriga da gente,
no ânus do viandante,
no estômago do taxista
e no piso falso
do transporte do motorista.
E tem também as fronteiras marinhas
que mais aproximam do que separam,
mais de ir que de voltar,
cujo fluxo varia
se de noite ou se de dia
com suas praias de chegada,
com seus portos e aduanas.
Só as andorinhas não obedecem
normas nem rotas prescritas,
só as baleias não requerem
vistos nem vacinas
e as estrelas não percebem
por onde iluminam.
IV
Em verdade, vos digo,
nossas fronteiras primevas
— começo do capitalismo
português — foram as
capitanias hereditárias:
multiplicaram-se por centúrias
sobre ossos e mourões plantados
no alvorecer da nacionalidade.
Antes disso, nossa linha
divisória era mais precária
— por direito real ou papal —
mas ninguém respeitava:
era o Tratado de Tordesilhas
que dividia nada de coisa
nenhuma em terras ainda
por descobrir e explorar.
Antes, nem isso
nos dividia, ou se inteligia,
seria o Paraíso Perdido
separando além mar
das terras do Endiabrado,
dividindo o mundo-maçã
em duas metades apetecíveis
pois não há poder
que para sempre dure
— seja humano ou até divino –
que não pereça ou apodreça
ainda que eterno pareça.
Canto 14
MOCHILEIRO NO TEMPO
“resta-me, só, a ironia/ da poesia.”
CASSIANO RICARDO
I
Enxergo este país inteiro
no espaço-tempo da reminiscência,
saindo do meu tinteiro.
Imagens em camadas
em sua decomposição,
do Amapá ao Chuí
por onde andei, mochileiro.
Não sei se vi,
não sei li ou ouvi,
sei apenas que vivi
um tempo em transformação.
(Acho que foi no livro de geografia
do Aroldo de Azevedo
que eu descobri o Brasil.)
II
Tomei um Ita no norte
e nunca mais parei
— andei de barco e navio,
na boleia de caminhão.
Andei olhando pra frente
que logo virava atrás:
atrás é pois um tempo
e não mais um lugar...
Vi que as coisas mudavam
mas quem mudava era eu:
mudava de cidade, de país,
de ideias e tudo o mais.
E jamais eu entendia
o Brasil que então eu via:
não sei se ia ou ficava.
III
Andei cismado indagando
coisas tais e absurdas:
buritis na caatinga
eu nunca via, jamais;
araucárias no Pantanal,
bananeiras nos rochedos,
cajus em plantas rasteiras
e inhames parasitas.
Vi hordas humanas vagando,
saindo de trens suburbanos,
movendo desejos e enganos,
dormitando nas calçadas.
Era um país em movimento
(eu, mochileiro, nas estradas)
mas sem sair do lugar.
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