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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




Parte I 

DE ORNATU MUNDI

 

DE ORNATU MUNDI 

Canto 2  -   Vasta e vária geografia

Canto 3  -   O Nome do Brasil

Canto 4  -   Grande Sertão, Veredas

Canto 5  -   Kerribrasilian Sea

Canto 6  -   Cidades Barrocas

Canto 7  -   Hileia Amazônica

Canto 8  -   O Índio

Canto 9  -   Os Índios

Canto 10 -  Homens-Totens

Canto 11 -  O Poeta Viandante

Canto 12 -  Ode à Soja

Canto 13 -  As fronteiras
Canto 14 –  Mochileiro no Tempo

 

 

Canto 2

 

 

VASTA E VÁRIA GEOGRAFIA

 

Senhor, escutai, o Brasil é um país

de vasta e vária geografia

física e humana

e qualquer afirmação

— pelo sim e pelo não —

deve começar pelo se não.

 

Senão, é erro e destempero

alucinação. Ilha e continente

Insula fortunatae - em que medra

leite da pedra

(em se plantando tudo dá)

terras dadivosas a entregar

Quanto delas os olhos cobiçaram

no dizer camoniano

e, no entanto, o homem

morre de fome.

 

Como pode haver miséria

em horto tão vicejante?

Se existe riqueza mesmo sem ser criada

e o gentio colhe o que não planta?!

 

Espanta, Senhor, em espaço sagrado

e consagrado, tão imenso

e até desabitado,

não se ter onde morar.

 

São terras sem ter lugar

já definiu Fernando Pessoa

de sua distância, a vislumbrar

tapetes vegetais, relvas, jardins das delícias,

selvas.

 

Camões: “fermosa ilha, alegre e deleitosa

um locus amoenus, de eterna primavera

talvez o Paradisus terrestris,

mas, pela dialética, também

horrenda, triste e defeituosa

porque assim é a Natureza.

 

Ou não. Porque a Natureza

nada sabe dos oxímoros,

menos de suas contradições

num equilíbrio crítico

e indefinitivo.

 

 

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Canto 3

 

 

O NOME DO BRASIL

 

Brasil,

Meu Brasil brasileiro...

                 ARY BARROSO

 

I

Brasil

Breazail

Breasil

Hy-Brazail

ou se preferem, Brazil...

 

Que importa um nome?

de onde o nome vem?

 

Quem batiza um país

pelos recursos que ele tem?

 

Pau-brasil, especiaria...

 

                    II

Vermelhos os nossos índios

no seu reconhecimento

um Brasil vermelho em sua

consistência de tingimento

natural

mas, afinal,

e a palavra brasil

de onde vem?

 

Vem da fala local

ou veio de Portugal?

 

Vem de braza

da madeira cor de brasa?

 

 

III

Breazil é mesmo vermelhidão...

sim ou não

pois sim, mas em celta...

 

 

IV

Desde 1339... – garantem!–

o nome Brasil aparece em mapas

planisférios, cartas geográficas...

 

Uma Ilha Brasil a oeste dos Açores...

Mediceu, Solleri, Pinelli e Branco:

 

cartógrafos mapearam

e grafaram as terras

desterrrrrrradas, aquelas

narrrrrrrrradas pelos viajantes

e cronistas...

 

Lendárias, verdadeiras.

Fantasias de artistas...

Fábulas, poesias.

 

Brasil — uma lenda céltica!

umas “terras de delícias”

vistas entre nuvens...

 

um topônimo irlandês?

 

Hy-Brazail – Ilha do Atlântico...

 

Terra de vermelhidão...

 

Antes, bem antes:

gregos e fenícios

(“descendentes do vermelho”)

buscavam os corantes

em terras distantes...

 

 

V

Que importa um nome

e a sua origem?

Dá renome ou dá vertigem?

 

Vestígios, testemunhos...

 

Manuel Bandeira queria Pasárgada...

 

Dorival Caymmi: Maracangalha...

 

Lima Barreto, julgado canalha,

preferia Bruzundanga...

 

Terra de Vera Cruz

e da Santa Cruz

que em vida sustentamos.

 

Brasil Brasis.

 

 

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Canto 4

 

GRANDE SERTÃO, VEREDAS

 

Uma inalcançável geografia

estende-se além de toda percepção:

país-continente, numa projeção

insondável

sem limites visíveis, apenas perceptíveis

por convenções e descrições

a um tempo vagas e imprecisas.

 

Nos extremos, a selva, o mar, as pradarias.

 

Mapa de relevos acanhados

planícies interpostas

a intervalos, por arestas

e frestas, por várzeas

e vales e rios

avolumando-se

articulando-se como vértebras

ou veias tributárias.

 

Altiplanos e chapadões enfileirados

escarpas, escombros, anteparos de serras

como muramentos abruptos

ou são encostas fracionadas, contrapostas

entre os mares e os campos gerais.

 

São degraus, camadas, terraços,

tabuleiros suspensos

desde as costas argênteas e as extensas areias

até aos elevados da Serra do Mar

detendo os ventos e os movimentos

humanos.

 

Cerros aspérrimos, escarificados

onde nascem as águas emendadas

que descem em todas as direções

para todos os quadrantes

pelo leito dos mares extintos

da antiguidade de Goiás:

seu vulcão calado,

suas fissuras cortantes,

suas águas aflorantes, vazantes

por ignotos e remotos

percursos.

 

São verões abrasantes, decomposições

elementos variantes

dilatações e contrações

da rocha degradada e fria

das estações contrastantes;

são chuvas torrenciais

aguaceiros diluvianos

mananciais

por vertentes, desfiladeiros;

são as cheias inclementes

alternando-se com

a secura dos ares no estio

com os vaus secos

dos rios efêmeros

das secas penitentes.

 

Paredões talhados, erodidos

como recifes pontiagudos

(flagelos de antigos degelos)

até aos espinhaços planaltinos

— cortes meridionais paralelos —

por onde vaza o rio São Francisco

unindo e aproximando

os povos e os lugares.

 

Por patamares declinantes

por flancos e barrancos

pendores resvalantes, derruídos

— níveis, andares, patamares —

até a garganta fraturada

do salto de Paulo Afonso

no sertão adusto

e dali aos estuários queixosos

e amplos, ermos e rasos

dos depósitos sedimentários.

 

Ao mar e sua imensidão.

 

Do outro mar, das alturas

e planuras

altiplanas

terras do sem-fim.

 

 

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Canto 5

 

 

“KERRIBRASILIAN SEA”

 

           (James JOYCE, no Finnegans Wake)

 

 

O Brasil é antes de tudo mar.

 

Mar-oceano ou terrestre, ondino

mares-chapadões, mares-selváticos

mares ermos, bravios, marés.

 

Pessoa: “Cala a voz, e é só o mar”.

Sertão-mar, arrebentações, maravilha.

 

Areias ondulantes, praias, vastidões,

rios-mares, mangues, dunas, pântanos,

espumas rendadas, areias ondulantes.

 

Espelhos líquidos, marítimos, orlas,

vagas, ilhas, pampas, alagados,

mares artificiais, pantanais.

 

O Brasil está voltado para o mar

sabe a maresias desterradas,

a mares antediluvianos.

 

Todos os caminhos levam ao mar

e pelo mar foi descoberto

desde tempos imemoriais:

mares tão reais quanto imaginários.

 

Mar de Ulisses, de Ojeda, de Cabral.

Mar aberto e mar interior,

dos sargaços, dos anfíbios transmarinos

dos desbravadores,

dos escravagistas,

dos comerciantes,

dos piratas e pescadores,

mar dos imigrantes.

 

Tanto mar sem horizontes!

 

(Um horizonte mutante, líquido

de miragens e miríades

orbicular, intransponível).

 

La mar que es el morir.
(Jorge Manrique)

 

 

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Canto 6

 

CIDADES BARROCAS

 

    “De tudo que deixei perco a memória”.

             CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

 

I

 

Naquela madrugada fria e umbrosa

chego a Ouro Preto, de ônibus

pelas corcovas dos montes

vencendo estreitos caminhos:

 

jovem, na neblina, farejo

odores curtidos, madeiras

carcomidas, pedras suadas

sob os passos apressados.

 

Das janelas antigas e severas

mortos observam os transeuntes

como fogos-fátuos assustados

em chama eterna, inquietos.

 

Cruzo “régias pontes sobre

grossos arcos” na companhia

de Cláudio Manoel da Costa

— nubívago árcade inconfidente.

 

Gonzaga, Cláudio, Alvarenga

tocando albas ovelhas e frautas

num conspiração de sarau

que acabou em desterro e esquartejo.

 

Em que “foi preso simples alferes

que só tinha um bacamarte

— diz-nos Cecília Meireles

no Romanceiro de Minas.

 

II

 

Cimalhas e gelosias de sobrados

enobrecidos, envergonhados, encardidos

nas ladeiras lúbricas, ladeados

ostentando luxos esquecidos.

 

Visão fugaz de tempos idos

de ilustres gentis-homens, foragidos

escravos prófugos, clérigos possessos

Marílias e Dirceus em versos.

 

Na Igreja, São Francisco pintado

no teto, numa cabana de índios.

As velhas minas feridas, violadas

violentadas, vazias, esgotadas.

 

Em Congonhas, a genialidade

mulata do Aleijadinho (no dizer

de Afonso Arinos de Melo Franco)

na pedra-sabão de sua agonia.

 

Em Mariana, lado a lado

janelas e portas de igrejas

na praça, dialogam, seculares

e revelam graves segredos.

 

Igrejas brancas, debruadas

em azuis imorredouros

co´as paredes debruçadas

sobre as luzes de seus ouros.

 

 

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Canto 7

 

 

HILÉIA AMAZÔNICA

  

       “Para vê-la deve renunciar-se

        ao propósito de descortiná-la”.

                 EUCLIDES DA CUNHA

 

 

I

Céus exacerbados e águas abusivas

numa enormidade desumana.

 

Horizontes indefinidos, repetitivos,

numa perspectiva infinita,

mermada,

de mares interiores, vegetais,

no discurso monótono das águas,

no estrépito uniforme das aves,

nas bátegas de chuvas copiosas.

 

Mares sobre mares diluvianos,

terras sobre mares aterrados,

de mares e terras em movimento

formando e derruindo ilhas, margens,

degredando as vertentes, correntes,

corroendo barrancos e aplainando,

construindo e reconstruindo

na sedimentação pantanosa

e transfigurando

numa esculturação sediciosa.

 

Transportando desde os Andes

ao Atlântico e à África

o continente diluído

na direção das Guianas,

por fluxos e refluxos e influxos

dos caudais extintos.

 

II

Sedimentos, detritos, correntezas,

contornos imprecisos, indecisos,

de ilhas cambiantes, degradantes,

desmoronamentos

refazendo a sua rota líquida,

volúvel, por meandros e igapós

inundados, represados,

transbordamentos.

 

Nem a pororoca estanca

e menos reconquista

a força contida, vencida do rio

na batalha final, impossível

mas previsível

com o mar-oceano.

 

Depositando-se extraterritorialmente

em praias estrangeiras, além mar,

na costa leste americana,

em outro hemisfério,

na “imigração telúrica

— tese euclidiana:

um território em marcha,

mudando-se pelos tempos adiante”.

 

III

O homem errante, nômade

como o rio provisório e ermo,

como o pássaro arribante.

 

Na fervura equatorial de seus humores

a umidade oxida e degrada

inexoravelmente

e excita as flores e os animais

na luxúria promíscua

de seus afrodisíacos

odores.

 

 

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Canto 8 

 

 

ÍNDIO

 

Imensidões vegetais, meandros de rios abundantes,

peixes, pássaros, árvores monumentais e vastidões

insondáveis, animais errantes e oclusas  paisagens.

 

Margens, vergéis, vargens, mundaréus e miragens.

 

O índio — pés miúdos — a andar sobre raízes,

camadas espessas de folhagens decompostas,

o ar saturado de águas e aromas estivais.

 

Em suas entranhas correm seivas vegetais.

 

Sangue turvo de resíduos minerais decompostos

— algas, aguapés, cipós tentaculares, ervas, sais

recompostos em tessituras fibrosas, musculares.

 

Pelos olhos dele passam capivaras errantes,

arrebóis, araras espalhafatosas, macacos

saltitantes, sóis e luas itinerantes.

 

 

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Canto  9 

 

 

OS ÍNDIOS

 

I

Também vieram de longe

e plantaram raízes

imemoriais

no jardim de sua eleição,

desde a diáspora primeva

da Criação.

 

Não sabemos se temos

a mesma origem

ou se nascemos já divididos

disputando o mesmo espaço.

 

Descimentos e preamentos,

bandeirantes

dizimaram e escravizaram

índios sem religião

como animais

errantes.

 

 

II

Os sobreviventes estão confinados

em reservas

como num zoológico humano.

 

Duas culturas não podem

ocupar o mesmo lugar:

ou o índio é integrado

à sociedade

e perde a identidade tribal

ou refugia-se na comunidade.

 

Garimpeiros, pecuaristas,

seringueiros e extrativistas

(caraíbas)

avançam com motosserras.

 

O índio não é ambicioso

nem ocioso.

 

A terra é a existência do índio

— terra de todos, comunitária,

terra que é partícula

em movimento e assimilação.

 

Terra e índio: um vive da outra.

Mãe e filho, indivisíveis.

 

Terra sagrada

de húmus vivo e fértil

de seus antepassados

com que o índio abona

o inhame, o cará e a taioba.

 

Em que cultiva, caça e pesca

e colhe, apenas quando

e quanto necessita.

 

 

III

Para o índio não há amanhã

em qualquer sentido

pois o tempo não existe

em sua percepção:

o movimento do corpo

num ímpeto contínuo

(da vontade em ação)

é que move a rede

(e não os pés e a mão)

como move a vida.

 

Dias alternam-se sem

alterações e altercações

— de pesca, de fruta acesa

que logo vai compartilhar

no complemento do beiju,

do pirarucu e do tucunaré.

 

O fogo está sempre aceso

na aldeia e almas intermitentes

de dormir e despertar,

de morrer e renascer:

um tempo dentro de outro

tempo infinito e cego.

 

Fogo feito para irmanar-se

depois de buscar a lenha

que não armazena jamais

para não quebrar a rotina.

 

Um grande poder de concentração

— e de dedicação extrema —

com todo o tempo do mundo

mas sem a noção de tempo.

 

IV

Tem presença de espírito

e raciocínio rápido

— atestam os irmãos Villas-Boas —

como a onça e o peixe

(que o imitam)

e muito senso de humor

para rir gostoso e largo.

 

Se tem rio e lagoa de banhar

salta na água como peixe

o tempo todo, a toda hora

e sai brilhando e secando

com o calor do corpo e da

aragem que o visita, festiva.

 

A pele bronzeada do sol

e do espaço aberto, nu

inteiro, sem pelos, o índio

é o corpo todo exposto

(pois tudo que é belo é bom)

como uma escultura pintada

com as tintas dali mesmo

— do urucum, do jenipapo —

em comunhão. Sem pudor.

 

Pudor é norma, não é normal.

 

V

O índio é totem — coisa viva,

labareda e chuva, solua luasol

na cerimônia do Kuarup

em que os toros pintados

e adornados — os escuros

são homens, os claros mulheres —

ganhando existência

na lenda da Criação.

 

Transformando-se em vidas

como o sal das cinzas

do aguapé ou do inajá

na alimentação: na transição

do mineral ao animal e ao

vegetal ou untando o corpo

com o óleo de pequi. As ervas,

as matas todas e as frutas e

as aves no ovo/ sêmen/te.

 

 

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Canto  10

 

HOMENS-TOTENS

 

Poder falar e privar com os animais,

sendo um deles: cutias e pacas,

araras e papagaios, cobras mansas

e macacos domesticados,

perdizes, quatis, guarás, tucanos

no convívio íntimo e essencial

adotando suas vozes e plumagens,

suas peles, artimanhas,

estratégias de vida e alegria.

 

Homens e animais irmanados

ao nível de folha, de cipó, de chão,

de espaço e agonia,

de instinto e linguagem,

de alma única,

primitiva

 

sã.

 

Totens vivos.

 

A natureza comum

de que participam,

a matéria

que unifica

e liberta.

 

 

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Canto 11

O POETA VIANDANTE

 

      “Este verde País”.

         CLÁUDIO MANOEL DA COSTA

 

I

 

Vago por campos e montes,

por caminhos desmedrados,

andejo por trilhas errantes,

percursos imaginados,

ermos, vastos, por versos

itinerantes.

 

Generosas terras e ondulosas serras.

Prados verdejantes, castos, úberes

rios caudalosos, pardos, céleres,

bravios, púberes, arredios,

outros pedregosos, frios, lerdos.

 

Rios secos, temporários, tristes.

Rasos, crassos, temerários.

 

São vastidões insondáveis

que meus olhos antecipam,

sertões, pampas, pantanais

indevassáveis, solidões.

 

Viajor de rotas infindas,

andarilho sem destino,

curvas, retas (trilho, trem),

sol a pino, pranto e espanto.

 

Dor.

 

 

II

 

Estações abandonadas, portos,

pastos, pontes, vastidões

desoladas.

 

Eu, mochila à costa, sem rumo

pedindo carona.

 

Boleia de caminhão, rede de pouso,

beira de estrada, indo pra onde

for.

 

Vou por onde me levar

o pensamento,

com os cabelos ao vento,

distraído,

com olhos de ver

e ouvidos de ouvir.

 

Desvendar um Brasil

em qualquer lugar

onde ele se der

e se mostrar.

 

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Canto 12

 ODE À SOJA

Eu canto

e meu canto se espraia

do Rio Grande do Sul

ao Mato Grosso e ao Maranhão

pelas campinas ondulantes,

como mares verdejantes,

como jardins de longas,

intermináveis

extensões,

por curvas de níveis, horizontes

suaves de cultivo extensivo,

por geometrias de todos os verdes,

verdes-mares de plantios,

verdes-olivas, verdes-claros,

desverdantes de colheitas

mecanizadas.

 

Verdes-planos superficiais,

de chuvas intermitentes,

irrigações,

águas verdes, alcalinas,

águas de nuvens de chumbo,

estagnadas

sobre terras cultivadas

como imãs, como zênites

sob raios coruscantes,

satélites rastreantes de plantio.

 

Canto a soja

que serpenteia e se alastra

dos pampas ao cerradão

pelas estradas ao infinito

numa paisagem monocórdia,

monótona, repetitiva,

mas vicejante

em seus planos enquadrados,

na pulsação

de seus grãos engravidados,

de seu manejo científico,

de sua transgenia

polêmica.

 

Canto esses povos errantes

devastadores de matas

e savanas bravias:

anti-heróis,

empresários,

tecnólogos

ligados às bolsas de futuro,

acumulando divisas,

atravessando fronteiras

na mais assumida

mundialização.

 

A soja

respira o ar do planeta,

chuvas ácidas globalizadas,

viaja de trem, de navio

e fala todas as línguas

sem sotaque.

 

Ela coloniza,

exporta valores agregados

e importa bens de consumo,

freta aviões, alavanca sonhos

inverossímeis.

 

Ouro-soja

cercado de regalias

expulsando o homem da terra,

por dunas vegetais

sitiadas

na geografia

do Meta-Brasil.

 

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Canto 13


AS FRONTEIRAS 

 

I

Fronteiras do fim do mundo

demarcando o ignoto

e o insondável:

inconcebível limite

finis terrae.

 

Separando o mundo civilizado

das terras inomináveis

de bárbaros e monstros,

das bestas e dos ciclopes

de línguas indecifráveis

quando não de gentes sem fala

e sem entendimento,

de nômades desterrados,

deformados de toda complexão

e de toda razão,

sem história e sem porvir,

daquelas gentes abandonadas

por Deus desde o êxodo dos êxodos.

 

Dividindo crentes e descrentes

sem paradeiros e sem destino,

confinados pelas linhas divisórias

da fome, do frio, das crenças

que evocam divindades anímicas

no abrigo das proteções naturais

e sazonais.

 

Outras são as fronteiras

do mundo civilizado,

do mundo demarcado

e sitiado,

dos limites arbitrados,

policiados,

estendendo-se por territórios

nominados

com títulos de possessão

e domínio.

 

Terras feudalizadas

por senhores enobrecidos

ou por governos de ocasião

— iguais em todo sentido –

aguerridos no seu enclausuramento

no apartamento do mundo

e em sua exclusão

e possessão.

 

II

Que demarca dois povos,

duas nações, duas pessoas?

 

Que linha divisória

os diferencia

e contrapõe?

 

E as nações sem territórios

e os povos sem demarcações?

 

Qual a pertença telúrica

do cigano e do imigrante,

do nordestino retirante

e do índio nômade

ou andante e arredio?

 

Qual a pátria dos prófugos,

dos sem-pátria, exilados,

desterrados no ostracismo,

dos povos de rua,

dos sem-terra,

dos povos errantes,

das tribos ambulantes,

das comunidades alternativas,

sem território

e dormitório fixo?

 

Debaixo da ponte, a que nação

corresponde?

Sobre a palafita insalubre,

a que cidadania pertence?

 

Balseiros no mar,

clandestinos nos barcos cargueiros,

aventureiros e transeuntes.

 

Nações expatriadas,

povos transladados,

gentes espoliadas,

em guetos,

alienadas de qualquer pertencência

legal,

em fronteiras abstratas,

culturais

e convencionais.

 

Que divide um país de outro?

Uma bandeira? Uma língua,

uma constituição?

uma intenção demarcadora?

um preceito ou um preconceito?

uma cerca, um muro circunstante?

 

Ideologias? Etnias? Religiões

ou interesses tribais? Que mais?

Sentimentos telúricos, ancestrais?

Valores transnacionais

em que pátria residem?

 

Gentes que nascem, vivem

e morrem sem qualquer registro

de nascimento e morte,

a que país pertencem?

 

Que fronteira é essa que distancia

um bairro milionário e saudável

de outro operário e miserável?

 

Que separa estas crianças

louras, lindas, vitaminadas

daquelas outras

negras e esquálidas?

Estes corpos esbeltos

malhados e bronzeados

daqueles deformados

pelo trabalho escravo?

 

Debaixo do chão, plantados

como cadáveres indigentes,

é-se gente

e com que nacionalidade?

 

III

Fronteiras abstratas, rituais,

fronteiras indefiníveis,

arbitrárias,

indevassáveis,

mais imaginárias que reais,

infinitas.

Umas vezes dividem,

em outras aproximam.

 

Povos fraturados,

cortados ao meio

— os bascos, os ianomâmis

os curdos, os gaúchos

os pantaneiros – e também seus animais,

suas aves,

sistemas ecológicos

(contínuos, contíguos)

seccionados, amputados,

serrados.

 

Que aproxima os guerrilheiros

dos narcotraficantes

— seriam vasos comunicantes

ou associações circunstantes?

 

Que dizer dos

sacoleiros contrabandistas,

traficantes,

de que lado estariam?

 

A fronteira divide e discrimina,

protege e separa,

avilta e humilha

povos indivisíveis

— ou hibridiza como os brasiguayos —

como os caminhoneiros

que engravidam as estações

por onde desovam

pelas povoações isoladas

por eles desconfinadas,

por eles inseminadas

de vírus e notícias

transportadas.

 

São rios e são montanhas e são selvas

intransponíveis, são tepuys

e altiplanos insuperáveis

em que as linhas demarcatórias

não se veem e não se reconhecem.

 

São terras intransitáveis

que nem os missionários

e os garimpeiros

e os militares das fronteiras

percorrem.

 

Além das alcabalas e postos fiscais

que revistam mochileiros

e deixam passar os moambeiros.

Assim também as fronteiras amuralhadas

com cercas eletrificadas,

guardadas por cães militares

mas por onde o troca-troca,

o entra-e-sai

é constante,

vem na barriga da gente,

no ânus do viandante,

no estômago do taxista

e no piso falso

do transporte do motorista.

 

E tem também as fronteiras marinhas

que mais aproximam do que separam,

mais de ir  que de voltar,

cujo fluxo varia

se de noite ou se de dia

com suas praias de chegada,

com seus portos e aduanas.

 

Só as andorinhas não obedecem

normas nem rotas prescritas,

só as baleias não requerem

vistos nem vacinas

e as estrelas não percebem

por onde iluminam.

 

IV

Em verdade, vos digo,

nossas fronteiras primevas

— começo do capitalismo

português — foram as

capitanias hereditárias:

multiplicaram-se por centúrias

sobre ossos e mourões plantados

no alvorecer da nacionalidade.

Antes disso, nossa linha

divisória era mais precária

— por direito real ou papal —

mas ninguém respeitava:

era o Tratado de Tordesilhas

que dividia nada de coisa

nenhuma em terras ainda

por descobrir e explorar.

 

Antes, nem isso

nos dividia, ou se inteligia,

seria o Paraíso Perdido

separando além mar

das terras do Endiabrado,

dividindo o mundo-maçã

em duas metades apetecíveis

pois não há poder

que para sempre dure

— seja humano ou até divino –

que não pereça ou apodreça

ainda que eterno pareça.

 

 

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Canto 14

 

 

MOCHILEIRO NO TEMPO

         

    “resta-me, só, a ironia/ da poesia.”

              CASSIANO RICARDO

 

I

Enxergo este país inteiro

no espaço-tempo da reminiscência,

saindo do meu tinteiro.

 

Imagens em camadas

em sua decomposição,

do Amapá ao Chuí

por onde andei, mochileiro.

 

Não sei se vi,

não sei li ou ouvi,

sei apenas que vivi

um tempo em transformação.

 

(Acho que foi no livro de geografia

do Aroldo de Azevedo

que eu descobri o Brasil.)

 

 

II

 

Tomei um Ita no norte

e nunca mais parei

— andei de barco e navio,

na boleia de caminhão.

 

Andei olhando pra frente

que logo virava atrás:

atrás é pois um tempo

e não mais um lugar...

 

Vi que as coisas mudavam

mas quem mudava era eu:

mudava de cidade, de país,

de ideias e tudo o mais.

 

E jamais eu entendia

o Brasil que então eu via:

não sei se ia ou ficava.

 

 

III

 

Andei cismado indagando

coisas tais e absurdas:

buritis na caatinga

eu nunca via, jamais;

araucárias no Pantanal,

bananeiras nos rochedos,

cajus em plantas rasteiras

e inhames parasitas.

 

Vi hordas humanas vagando,

saindo de trens suburbanos,

movendo desejos e enganos,

dormitando nas calçadas.

 

Era um país em movimento

(eu, mochileiro, nas estradas)

mas sem sair do lugar.





 

 

 
 
 
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