EXÓRDIO
Canto 1
I. A Vitalidade
II. A Senectude
III. O Fim como Princípio
VISÃO DO PARAÍSO
“del abismo vió el profundo,
del profundo vió el paraíso,
del paraíso vió el mundo,
del mundo vió quanto quiso”.
GIL VICENTE
I. A Vitalidade
Um rio com águas tantas e tamanhas
das entranhas da terra ou do universo
nos confins do mundo — finis terrae —
manancial de vida e civilização
— um paraíso perdido, improfanado.
Fonte primeva de todos os rios
“esta fonte se parte em quatro partes
de que se fazẽ quatro ryos”
na vastidão dos remotos nascedouros
irmanando-se:
Eufrates, Nilo, Ganges e Amazonas
irradiando-se
na direção dos continentes
em torrentes tenebrosas
circundando, confluindo
em mares e oceanos.
Mundos reunidos, originários
com árvores perenifólias
bosques umbrosos e virgens
no dizer de Dante:
“divina floresta spessa e viva”
fabulosa, ignota, fantástica:
(Augusto Magne:)
“nunca era noyte, nẽ chuva”
“nẽ quaentura”, “muy bõo temperamento”
Montanha resplandecente
fulgurante como o sol da terra
— o ouro, metal que endoença
o corpo e ofusca e cega a visão;
ilhas encantadas, ofuscantes
— materialidade do invisível —
ilhas afortunadas, reluzentes
– corporalidade do indizível –
ausência de dor e fadiga
imortalidade e ócio eterno
ilhas ameníssimas a salvo
do dilúvio universal!
Velhos que vão rejuvenescendo,
e que também não adoecem,
seres humanos vivendo do hálito
das plantas e sem pecado original
no Ymago Mundi de Hygden
— um paraíso terrenal preservado.
Faunos, pigmeus, sátiros, gigantes.
Criaturas disformes, assombrosas.
Homens com rabos, sem cabeça,
de um olho só, cabeças de cão,
hermafroditas, em mapas e volumes
de bibliotecas fabulárias, medievais.
O Mapa de Andréa Bianco (1436)
delimitava o paraíso prodigioso.
Jardim das delícias, geografia fantástica
que os marinheiros deliravam e descreviam
em desvarios e visões de convictos.
Amazonas guerreiras defendendo territórios
de ouros e pratas e especiarias encantadas.
Santo Isidro classificava-os
em portentos, ostentos,
os monstros e os prodígios
feitos pela vontade divina...
“el mundo es poco”, atesta Colombo
em suas crônicas de encantamento
“campo mui fremoso, comprido
de muitas ervas e froles de bom odor”
diz-nos Augusto Magne, exaltado.
“Por calor nin por frio non perdie su beltat
Siempre estava verde en su entegretat”
Berceo revela, e complementa:
“ca nunca ovo macula la sua virginitat”.
Novo Mundo, Terra dos Papagaios
Terra de Santa Cruz, ilha do ocidente...
II. A Senectude
“Dando-se as mãos os pais da humana prole,
Vagarosos lá vão com passo errante
Afastando-se do Éden solitários”.
John MILTON (O Paraíso Perdido)
Deus expulsa o homem e a mulher
de Seu Paraíso
(mas conserva-o intacto).
Na visão dos Descobrimentos
no Novo Mundo
havia um povo inocente.
Vivendo sem livros, sem juízes
sem os meus e teus malignos
do individualismo pagão
sem muros, sem fossos, sem medos
comendo frutos sem plantio
– sylvestribus fructibus contentos –
(gente dócil, feliz, dúctil)
escaparam à fúria divina
da punição do pecado original
num paraíso fechado, inacessível
protegido: afortunados!!!
por serem bons e puros e castos.
Que esta terra não seja profanada
que este mundo seja preservado
dos demônios da cobiça humana
da ambição famigerada e vã
da usura e da devastação
da devassidão.
Do inexorável...
III. O Fim como Princípio
Acreditava-se
na senectude da Criação:
em sua degeneração...
ultrapassando a plenitude
que não perdura
e que, chegando à cimeira
da perfeição, de sua excelsitude
divina, decai e degenera...
pela extinção (previsível)
das espécies, sua degradação
constante...
A natureza é um espelho
do pensamento divino
— que se torna provecto,
improdutivo, falto
pelo emudecimento
de Deus.
Que não se cumpra o vaticínio
que se preserve o bem
e que as chagas, as doenças
não aviltem o Paraíso
que os malignos não corrompam os bons
que não os devorem
numa circularidade cósmica:
todas as coisas geradas
pela Providência se consomem
e se recompõem
e em reciclar-se perdem
muito de sua existência.
Que o pensamento não desacredite
e dissipe o nosso ímpio convencimento
— que o olho e o coração pressentem —
e que a razão não suplante o sentimento.
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