Canto 86
LIXÃO ESCATOLÓGICO
“Povo
não pode ser sempre o coletivo de fome”
AFFONSO ROMANO DE SANT´ANNA
I
Os urubus e os miseráveis da periferia,
hábeis, disputam monturos nos lixões.
Desfrutam detritos, escolhos, escombros,
entulhos, podridões, bestializados.
Oh! pesadelos alados pairando
sobre os dejetos, resíduos abjetos,
fetos abandonados, carniças!
Carradas e camadas soterradas,
ignóbeis vermes decompondo
eternidades.
Nuvens ácidas, químicas, espessas
sobre paisagens desoladas, poluídas
— odores e horrores condensados
a combustar os elementos corrompidos.
Oh sobressaltos notívagos, assaltos,
temores, necessidades inconformadas,
insumos, consumos, exsumos sem remissão.
Ratos e ratos prestos roendo restos
no pasto podre, pestilento; hordas
(des)humanas corroendo e devorando
— um gerúndio insidioso e viscoso,
nefasto infúndio.
II
Suicidas, lacraias, discursos, pneus,
fezes liquefeitas, serpentes voadoras,
brinquedos, prazeres azinhavrados,
desovas de cadáveres, joias, ossos,
remédios vencidos, versos envenenados.
Jantares deglutidos, vomitados,
resquícios de bodas e de fodas,
livros esquecidos, ininteligíveis,
utensílios inutilizados e até
um poema de Bilac carcomido,
um verbete (corroído) de dicionário
sobre o Santo Sudário
ou sobre a bem-aventurança.
Bonecas decapitadas, lâminas oxidadas,
amantes desesperados, orelhas decepadas,
corpos mutilados, insepultos, estômagos
famélicos, expostos, cancerosos.
III
Buscam no desperdício o seu ofício
— na serventia, insânia, mendicância.
Busca-se não só o alimento, mas
também, se possível, o salvamento.
Porém, tudo que é eterno se degrada:
os sonhos, as ideias, os plásticos,
os metais enferrujados, os projetos,
voltam à condição de minerais.
Do alto os urubus-querubins
no festim macabro anunciam
o fim dos tempos e da história
— escória e abandono
ao desamparo de Deus.
Canto 87
DIALÉTICA DA CRIAÇÃO
“Só digo que sobre ter dito tanto,
ainda é muito o que calo”.
Padre ANTÔNIO VIEIRA
I
No princípio era o Verbo
na infinita vontade de fazer:
a Palavra tudo pode
(a existência pela palavra)
em sua extrema potencialidade
em sua sã virtualidade
— numa vã possibilidade...
E o vir-a-ser é também
um deixar-de-ser.
Para o Universo criado
não existe ontem nem depois:
o tempo é uma dimensão humana:
frágil, imprecisa, imprevisível;
a Eternidade
do inconcebível...
Quinhentos, mil, dois mil, um milhão
de anos, que são diante
dos tempos planetários?
Outras eras virão...
Outros Brasis, ou não.
Grande Loucura
é a aventura, a trajetória humana!
finita, mínima, diminuta
diante da máxima Verdade
inalcançável.
II
O Princípio como Fim
Deus expulsa o homem e a mulher
de Seu Paraíso
mas conserva-o intacto
até que o Homem, rancoroso
invade
— pois este é um desígnio
divino.
Criar e destruir
são fases de um círculo
infinito:
homem e terra
alternam-se indefinidamente.
Até Deus
— por que não dizê-lo?–—
em sendo Natureza
— como se crê —
é biodegradável
e por isso sobrevive.
Partículas divinas
e humanas
irmanando-se
até o fim dos tempos
— que está na essência de Deus.
|