POESIA MUNDIAL EM PORTUGUÊS
PAUL CELAN
Paul Celan (Cernăuţi, 23 de novembro de 1920 — Paris, 20 de abril de 1970), pseudônimo de Paul Pessakh Antschel (em alemão) ou Paul Pessakh Ancel (em romeno[nota 1]) foi um poeta, tradutor e ensaísta romeno radicado na França.
Paul Pessakh Antschel nasceu em Cernăuţi (à época chamada Czernowitz), que fora a capital da província da Bucovina. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, a região pertencera ao Império Austro-Húngaro, e, por isso, o alemão, ao lado do romeno, era a principal língua de comunicação da aristocracia cultural de origem judaica, à qual o poeta pertencia e que constituía quase a metade da população da cidade. Entre 1918 a 1939, Czernowitz foi predominantemente uma cidade judia de língua alemã, com uma produção literária expressiva, que se encerrou no fim da Segunda Guerra. Todavia, mesmo algum tempo depois de 1945, ainda predominava ainda a língua alemã. [1] Delan traduziu mais de quarenta poetas, de diferentes línguas, inclusive o português de Fernando Pessoa.
Sobrevivente do Holocausto, Celan é considerado um dos mais importantes poetas modernos de língua alemã.
Nos últimos anos de sua vida, apresentava tendências autodestrutivas, delírio persecutório e episódios de amnésia.
Suicidou-se por afogamento, no rio Sena, em abril de 1970, aos 49 anos.
Fonte da biografia e foto: wikipedia.
Extraído de
POESIA SEMPRE – Revista Semestral de Poesia – Ano 2 Número 4 – Rio de Janeiro - Agosto 1994 - Fundação Biblioteca Nacional. ISSN 0104-0626 Ex. bibl. Antonio Miranda
Todesfuge
Schwarze Milch der Frühe wir trinken sie abends
wir trinken sie mittags und morgens wir trinken sie nachts
wir trinken und trinken
wir schaufeln ein Grab in den Lüften da liegt man nicht eng
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes
Haar Margarete
er schreibt es und tritt vor das Haus und es blitzen die Sterne
er pfeift seine Rüden herbei
er pfeift seine Juden hervor läßt schaufeln ein Grab in der Erde
er befiehlt uns spielt auf nun zun Tanz.
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich morgens und mittags wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
Ein Mann wohnt im Haus der spielt mit den Schlangen der schreibt
der schreibt wenn es dunkelt nach Deutschland dein goldenes
Haar Margarete
Dein aschenes Haar Sulamith wir schaufeln ein Grab in den Lüften
da liegt man nicht eng
Er ruft stecht tiefer ins Erdreich ihr einen ihr andern singet und spielt er greift nach dem Eisen im Gurt er schwingts seine Augen sind blau stecht tiefer die Spaten ihr einen ihr andern spielt weiter zum
Tanz auf
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags und morgens wir trinken dich abends
wir trinken und trinken
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith er spielt mit den Schlangen
Er ruft spielt süßer den Tod der Tod ist ein Meister aus Deutschland
er ruft streicht dunkler die Geigen dann steigt ihr als Rauch in die Luft dann habt ihr ein Grab in den Wolken da liegt man nicht eng
Schwarze Milch der Frühe wir trinken dich nachts
wir trinken dich mittags der Tod ist ein Meister aus Deutschland
wir trinken dich abends und morgens wir trinken und trinken
der Tod ist ein Meister aus Deutschland sein Aug ist blau
er trifft dich mit bleierner Kugel er trifft dich genau
ein Mann wohnt im Haus dein goldenes Haar Margarete
er hetzt seine Rüden auf uns er schenkt uns ein Grab in der Luft
er spielt mit den Schlangen und träumet der Tod ist ein Meister
aus Deutschland
dein goldenes Haar Margarete
dein aschenes Haar Sulamith
A fuga da morte
Leite negro da manhã nós o bebemos à tarde
nós o bebemos ao meio-dia e pela manhã nós o bebemos à noite
nós bebemos e bebemos
nós removemos um túmulo nos ares aí não se deita no estreito
Na casa mora um homem que toca a serpente que escreve
que escreve quando escurece para a Alemanha teu cabelo
dourado Margarete
ele o escreve e aparece diante da casa e raiam as estrelas ele
aproxima seu fila num silvo
ele expulsa seus judeus num silvo deixa remover um túmulo na terra
elé nos obriga a tocar a dança
Leite negro da manhã nós te bebemos à noite
nós te bebemos pela manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tarde
nós bebemos e bebemos
Na casa mora um homem que toca a serpente que escreve
que escreve quando escurece para a Alemanha teu cabelo
dourado Margarete
Teu cabelo cinzento Sulamita nós removemos um túmulo nos ares
aí não se deita no estreito
Ele chama degola fundo na terra um e outro de vós ao canto e toque ele segura a sucata no cinto ele a ciranda seus olhos são azulados degola fundo as pás um e outro de vós segue tocando a dança
Leite negro da manhã nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia e pela manhã nós te bebemos à tarde
nós bebemos e bebemos
na casa mora um homem teu cabelo dourado Margarete
teu cabelo cinzento Sulamita ele toca a serpente
Ele chama toca a morte com doçura a morte é um mestre
da Alemanha
ele chama alisa mais escuro e os violinos vos elevam como
fumaça no ar
e tendes um túmulo nas nuvens aí não se deita no estreito
Leite negro da manhã nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um mestre da Alemanha
nós te bebemos à tarde e pela manhã nós bebemos e bebemos
a morte é um mestre da Alemanha seu olho é azulado
ele te acerta com esfera de chumbo ele nunca te acerta errado
na casa mora um homem teu cabelo dourado Margarete
ele açula sobre nós os seus filas ele nos oferece um túmulo no ar
ele toca a serpente e sonha a morte é um mestre da Alemanha
teu cabelo dourado Margarete
teu cabelo cinzento Sulamita
Tradução Mareia C. de Sá Cavalcante
KOTHE, Flávio R. A poesia hermética de Paul Celan. Apresentação e tradução de Flávio R. Kothe. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2016. 515 p. 16x22 cm. ISBN 978-85-230-1178-9 N. 09 539 Ex. bibl. Antonio Miranda
O tradutor Flávio R. Kothe, professor titular da Universidade de Brasília — UnB, é um dos intelectuais mais respeitados e admirados do Brasil. Autor de mais 30 livros, destacando-se a trilogia extraordinária e atual sobre o cânone literário brasileiro — O cânone colonial, O cânone imperial, O cânone republicado I e II, publicados pela editora da UnB.
Escolhemos 4 (quatro) poemas desta obra que está à venda nas livrarias. ANTONIO MIRANDA
GERMAN - PORTUGUÊS
BRANDMAL
Wir schliefen nicht mehr, denn wir lagen im Uhrwerk der Schwermut und bogen die Zeiger wie Ruten,
und sie schnellten zurück und peitschten die Zeit bis aufs Blut,
und du redetest wachsenden Dämmer,
und zwölfmal sagte ich du zur Nacht deiner Worte,
und sie tat sich auf und blieb offen,
und ich legt ihr ein Aug in den Schoß und flocht dir das andre ins Haar und schlang zwischen beide die Zündschnur, die offene Ader -und ein junger Blitz schwamm heran.
UND DAS SCHÖNE
Und das schöne, das du rauftest, und das Haar,
das du raufst:
welcher Kamm
kämmt es wieder glatt, das schöne Haar?
Welcher Kamm
in wessen Hand?
Und die Steine, die du häuftest,
die du häufst:
wohin werfen sie die Schatten,
und wie weit?
Und der Wind, der drüber hinstreicht,
und der Wind:
rafft er dieser Schatten einen,
mißt er ihn dir zu?
CELLO-EINSATZ
von hinter dem Schmerz:
die Gewalten, nach Gegen-
himmeln gestaffelt,
wälzen Undeutbares vor
Einflugschneise und Einfahrt,
der
erklommene Abend
steht voller Lungengeäst,
zwei
Brandwolken Atem
graben im Buch,
das der Schläfenlarm aufschlug,
etwas wird wahr,
zwölfmal erglüht
das von Pfeilen getroffene Drüben,
die Schwarz-
blütige trinkt
des Schwarzblütigen Samen,
alles ist weniger,
als es ist,
alles ist mehr.
DAS FREMDE
hat uns im Netz,
die Vergänglichkeit greift
ratlos durch uns hindurch,
zähl meinen Puls, auch ihn,
in dich hinein,
dann kommen wir auf,
gegen dich, gegen mich,
etwas kleidet uns ein,
in Taghaut, in Nachthaut,
fürs Spiel mit dem obersten, fall-
süchtigen Ernst.
PORTUGUÊS
Tradução de FLÁVIO R. KOTHE
E A BELEZA
E a beleza que arrepelaste, e o cabelo
que tu arrepelas:
qual é o pente
que de novo o alisa, o belo cabelo?
Qual pente,
na mão de quem?
E as pedras que empilhaste,
que tu empilhas:
para onde projetam elas as sombras,
e a que distância?
E o vento, que vai alisando por cima,
e o vento:
apanha essa sombra para alguém,
tira nela as medidas para ti?
ESTIGMA
Nós não dormíamos mais, ficamos presos nas engrenagens
da melancolia
e curvamos os mostradores feito varas,
e eles se distenderam de volta e chicotearam o tempo até
tirar sangue,
e tu falavas diques crescentes,
e doze vezes eu disse tu à noite das tuas palavras,
e ela se abriu e ficou aberta,
e eu lhe deitei no colo um olho e te trancei o outro no cabelo,
e estendi entre os dois a mecha, a veia aberta —
e a nado um jovem raio se achegou.
SOLO DE CELLO
vindo detrás da dor:
os poderes, em contra-
céus escalonados,
põem a rolar o indecifrável diante
de rotas de pouso e acesso,
a
noite escalada
está repleta de ramagem pulmonar,
duas
nuvens do fogo da respiração
escavam no livro
que o rumor das têmporas batendo abriu
algo se torna verdadeiro,
doze vezes resplandece
o Além atingido por setas,
a de sangue
negro bebe
o sémen do sangue negro,
tudo é menos do que
é,
tudo é mais.
O ESTRANHO
nos tem na rede,
o efêmero agarra
a esmo por dentro de nós,
conta o meu pulso, também ele,
para dentro de ti,
nós então nos erguemos,
contra ti, contra mim,
algo nos veste e investe,
na pele do dia, na pele da noite,
para o jogo com a mais elevada, mais
epilética seriedade.
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL. No. 10 – jul./dez. 2023. Editor: Flavio R. Kothe. Brasília, DF : Editora Cajuína, Opção editora, 2023. 165 p. ISSN 2674-9495 No. 10 227
Exemplar da biblioteca de Antonio Miranda
Tradução de Flávio R. Kothe
FUGA DA MORTE
Negro leite primevo nós o bebemos à noitinha
nós o bebemos ao meio-dia e pela manhã nós o bebemos à noite
nós o bebemos e bebemos
nos cavamos uma cova nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa brinca com as cobras esse escreve
esse escreve quando vai obscurecendo pela Alemanha tu cabelo
dourado Margarete
ele escreve isso e vai para a frente da casa e os astros reluzem
ele conclama seus mastins
ele assovia chamando seus judeus para fora manda cavar
uma cova na terra
ele nos comandava toquem agora para dançar
Negro leite primevo nós te bebemos à noite
nós te bebemos pela manha e ao meio-dia nós te bebemos à
noitinha
nós bebemos e bebemos
Um homem mora na casa esse brinca com as cobras esse escreve
esse escreve quando vai obscurecendo pela Alemanha teu cabelo
dourado Margarete
Teu cabelo cinza Sulamith nós cavamos uma cova nos ares lá não
se jaz apertado
Grita fincai mais fundo no reino da terra vós uns vós outros cantai
e tocai
ele seca o ferro da cinta brinca com ele seus olhos azuis
fincai mais fundo as pás vós outros tocai adiante para dançar
Negro leite primevo nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia e pela manhã nós te bebemos à noitinha
nós bebemos e bebemos
um homem mora na casa teu cabelo dourado Margarete teu cabelo
cinza Sulamith ele brinca com as cobras
Ele grita tocai mais suave a morte é um mestre da Alemanha
grita tocai mais grave os violinos então ireis vos elevar feito fumaça
no ar
então vós ireis ter uma cova nas nuvens lá não se jaz apertado
Negro leite primevo nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia a Morte é um mestre da Alemanha
nós te bebemos à noitinha e pela manhã nós bebemos e bebemos
a Morte é um mestre na Alemanha seu olho é azul
se acerta uma bala de chumbo te acerta certeiramente
um homem mora na casa teu cabelo dourado Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós ele nos dá de presente uma cova
no ar
ele brinca com as cobras e sonha a Morte é um mestre da Alemanha
teu cabelo dourado Margarete
teu cabelo-cinza Sulamith
Breve comentário de Flávio R. Kothe sobre a tradução do poema de
Paul Celan:
Este poema tematiza a guerra. Fala do que se preferiria esque-
cer. Atendeu, por outro lado, a necessidade psicológica de punição
daqueles que se sentiam culpados pelo eu seus antepassados teriam
feito. O termo fuga não tem ainda tanto o sentido de fugir da morte
quanto o de uma composição poética que usa o modelo musical como
princípio arquitetônico asso como outro poema, Sretto, usa o momento de convergência de diversas vozes em uma síntese final.
Isso não elimina o sentido de que aquele que consegue compor é
alguém que conseguiu fugir à morte e, de algum modo, pode se sentir “estreito”, angustiado por não ter perecido junto com entes amados. Isso seria compreensível e doentio.
“Negro leite é um oxímoro, pois o leite sempre é branco. A cor negra atribuída ao leite é a sobreposição do sentido simbólico ao literal, como antítese. O leite materno torna-se nego com o luto da rememoração da perda dos pais e outros pessoas próxima em campos de concentração nazista. Essa é a linha mais corrente de interpretação. O oxímoro é a redução da contradição a uma expressão mínima.
O poema tem sido validado como um monumento histórico a
rememorar o que os herdeiros das vítimas gostaria que jamais fosse esquecido. Nessa linha, ele só seria válido para os que estiveram envolvidos nos eventos, se é que a maioria ainda vai querer ser lembrada sempre disso. Então o texto morreria com eles. Ele não poderia significar nada fora deles, a não ser como citação ocasional de eventos distantes. Poderia ser objeto de curiosidade psicanalítica ou instrumento de preconceito antigermânico. Não valeria como poesia. A condição poética estaria lhe sendo negada e elementos estético estariam presentes apenas para revigorar a mensagem política.
Há um problema central na tradução do alemão para o português. “Dier Tod” é masculino, enquanto “A Morte” é substantivo feminino. Isso seria determinante do modo como a morte é mostrada como figura alegórica. Procura-se driblar o problema representando a morte como uma figura se sexo, com uma foice na mão e uma túnica preta que poderia ser usada por homens e mulheres.
O “homem” que mora na casas, brinca com cobras e escreve poderia ser entendido como corporificação da morte, sendo ele “Der Tod”. Na tradução pelo feminino, essa associação se perde. Tentar preservá-la traduzindo o termo por “O Morrer” prejudicaria o funcionamento do poema, ficaria anônimo em Português. Nada impede que o homem que brinca com as cobras seja o próprio autor do texto, sendo as cobras a sua escrita: brincar com o revólver e disparar um tiro certeiro é o que poeta também faz.
O cabelo dourado e o cabelo cinza também são lidos como representações do povo alemão e judeu. Isso tenderia a levar a ler a obra como cultivando o preconceito racial contra as loiras, contra as mulheres de origem alemã, corrente no Brasi, como se fossem perigosas e bobas. A cova no ar, como a fumaça que saía dos crematórios dos campos de concentração, reforçaria essa suposição.
Talvez a obra fosse isso, tendo ficado famosa por causa da necessidade alemã de punição e de construir um fosso sem relação ao passado nazista. O poema seria então um problema das relações entre judeus e alemães, esquecendo, por exemplo, os prejuízos dos palestino com a criação de Israel. Quem não tem nada a ver com isso teria de se perguntar qual o sentido que o poema lhe faz além de uma curiosidade por um problema europeu e africano.
STRETTO DE PAUL CELAN
STRETTO
*
LEVADO ao
campo
com a marca fatal.
Relva, soletrada. As pedras, brancas,
com as sombras dos caules:
Não leia mais — olha!
Não olhes mais — olha!
Não olhes mais — vai!
Vai, tua hora
não tem irmãs, estás —
estás em casa. Uma roda, lentamente,
rola por si, seus raios
avançam,
avançam em campo negro, a noite
pergunta por ti.
*
Nada
pergunta por ti
o lugar, onde jaziam, tem
um nome — não tem
tem nenhum. Eles
não viam através.
Não viam, não,
sobre palavras
palravam. Nenhum deles
acordou,
sobre eles veio
*
Veio, veio. Nada
Pergunta —
Eu, eu
eu jazia aqui entre vós, segundo
vossa inspiração, ainda
sou eu, mas vós
estais a dormir
Ainda sou eu —
Anos.
Anos, anos, para cima e
para baixo apalpa um dedo, apalpa
ao redor:
pontos de sutura, tangíveis, aqui
se fende fundamente, acolá
se fechou novamente — quem
recobriu tudo isso
Isso tudo
—
quem recobriu
Veio, veio.
Veio uma palavra, veio.
veio atravessando a noite,
ela queria luzir, queria reluzir.
Cinza.
Cinza, cinza.
Noite.
Noite-e-Noite. — Vai ao
olho, úmido a seduzir.
Vai
ao olho,
úmido a seduzir.
Tufões.
Tufões, desde sempre,
turbilhões de partículas e o resto,
tu,
disso bem sabes, nós
lemos tudo isso no Livro, era apenas
opinião.
Era, era apenas
opinião. Como
nós nos
tocamos com —
com essas
mãos?
Também estava escrito que.
Onde? Nós,
quanto a isso fizemos silêncio,
um silêncio amamentado com veneno, cum
[silêncio imenso,
um silêncio
verde, uma
sépala, nela
pendia um pensamento vegetal —
verde, sim,
pendia, sim,
sob um sardônico
céu,
Um, sim,
vegetal.
Sim. Tufões, Tur-
bilhões de partículas, restava ainda um
tempo, restava
experimentá-lo na pedra — que
foi bastante cordial, que nem
sequer inter-
rompeu. Quão exce-
lente:
Granulosa,
granulosa e fibrenta. Fasciculada,
compacta;
recheada e radiante; renal,
laminada e
embalada: porosa, rami-
ficada —:
ela não interrompeu,
falou,
falou prontamente a olhos secos, antes de
[cerrá-los,
Falou, falou.
Era, era.
Nós
não afrouxamos, estávamos
no meio, casa
feita apenas de poros, e
daí sobreveio.
Veio para cima de nós, veio por
meio de, remendou
invisível, remendou
na última membrana,
e
o mundo, complexo cristal,
se cristalizou, cristalizou.
*
Cristalizou, cristalizou-se
E depois —
Noites, decompostas. Círculos,
verdes ou azuis, quadrados
vermelhos: o
mundo engaja o seu íntimo
no jogo com as novas
horas. — Círculos,
vermelhos ou negros, claros
quadrados, nenhuma
sombra de um voo,
nenhuma
mesa de mensuração, nenhuma
alma-fumaça que suba e faça o fogo.
*
Suba e
faça o jogo—
No voo da coruja, na
petrificada lepra,
nessas
nossas mãos exiladas, na
diáspora mais recente,
sobre o
apara-balas
do paredão soterrado:
visíveis, nova-
mente, os
sulcos, os
coros daquele tempo, os
salmos. Ho, ho-
sana.
Ainda há,
portanto, templos. Talvez uma
estrela
ainda tenha algum brilho.
Nada,
nada está perdido.
Ho-
sana.
No voo da coruja, aqui,
as conversas, cinzas como esse dia,
dos traços das águas subterrâneas.
*
(— cinzas como esse dia,
dos
traços das águas
subterrâneas —
Levado
ao campo
com a
marca fatal:
Relva.
Relva,
soletrada.)
Breve comentário
Flávio R. Kothe:
“Stretto” (Engführung) é uma espécie de continuação e contra-
partida da “Fuga da Morte”. Além de “estreito” significar um braço do mar que liga dois mares ou duas partes do mesmo mar, o título do
poema significa também o instante em que, na fuga musical, se estreitam os intervalos do aparecimento dos temas nas diversas vozes. A forma musical se torna poética.
Este poema é constituído por nove partes, divididas por asteriscos se pelo espaçamento gráfico, repetindo cada uma (exceto a primeira), no início o fim da anterior. O poema é, no plano temático, uma espécie de visita rememorativa a um campo de extermínio de judeus. A roda, que aí aparece, é a roda-do-destino e um rudimento do moinho da morte (como esses campos-de-extermínio costumavam ser chamados). Essa roda atravessa o campo, semeia mortos e eclipsa as estrelas.
O Poeta está ao lado dos destruídos, dos derrotados e aniquilados. Ele se identifica com os seus mortos, que parecem dormir. O “Livro”, a que se refere, tanto poderia ser a Divina Comédia quanto o das teorias de Empédocles e Demócrito (sobre os átomos); aí ocorre algo equivalente a uma explosão atômica, arrasando a base da civilização e da cultura. Se, conforme célebre polêmica dos anos 60 na Alemanha Federal, Adorno afirmou que depois de Auschwitz não se poderia mais escrever poemas, Celan responde aqui com um poema “sobre” Auschwitz. Depois dessa explosão, cuja expansão se torna veneno, ocorre uma regressão do humano ao vegetal (planta, sépala) e daí ao mineral (pedra). Mostra-se então a profunda identidade entre esses gêneros. O homem se torna pedra, lápide. Daí restam apenas figuras abstratas — círculos, quadrados — e cores fundamentais — verde, azul, vermelho, negro —; o poema alcança uma depuração antir-retórica e se aproxima bastante de experiências concretistas que se realizavam na época da composição do poema (1955 -1959).
A absoluta não loquacidade dos mortos afeta aos sobreviventes: há um expurgo de todas as palavras não absolutamente necessárias. O hermetismo é sua identificação com os mortos. Ao final do poema reaparecem os fantasmas dos judeus se encaminhando para a morte. Cantam hinos (como de fato, ocorreu): quando não havia mais templos, ele mesmos acabavam sendo os seus templos. Há uma trágica ironia nisso. No voo da coruja (a coruja de Minerva, que, segundo Hegel, no prefácio à Filosofia do Direito, só se poria a voar quando o dia dos acontecimentos estivesse findo), não há apenas sabedoria e elevação do espírito, mas dor, ascetismo e, talvez, algum esperança (simbolizada na água subterrânea). Surge daí um novo tipo de asceta, que não precisa retirar-se do mundo e ir para um deserto, pois para ele o mundo já se transformou em deserto (ou, pior ainda, num campo de mortos, enquanto o deserto não pressupões a existência de vida nele). A agressividade de Celan, o soco que se sentia nele, não está só no seu conteúdo, mas no fato de ter escrito isso em alemão, a língua dos carrascos de sua mãe, conectando dois mares ou duas parte de um mesmo mar.
Página publicada em dezembro de 2017; ampliada em janeiro de 2018
|