| POESIA MUNDIAL EM PORTUGUÊS 
 
 FRIEDRICH NIETZSCHE     Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken,  Reino da Prússia, 15 de outubro de 1844 — Weimar, Império Alemão, 25 de agosto  de 1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor  prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. (...) Nietzsche começou sua carreira como  filólogo clássico— um estudioso da crítica textual grega e romana— antes de se  voltar para a filosofia. Em 1869, aos vinte e quatro anos, foi nomeado para a cadeira  de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, a pessoa mais jovem a ter  alcançado esta posição. Em 1889, com quarenta e quatro anos de idade, sofreu um  colapso e uma perda completa de suas faculdades mentais. A composição foi  posteriormente atribuída a paresia geral atípica devido a sífilis terciária,  mas este diagnóstico vem entrado em questão. Nietzsche viveu seus últimos anos  sob os cuidados de sua mãe até a morte dela em 1897, depois ele caiu sob os  cuidados de sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, até falecer, em 1900. Foto e fragmento de  biografia: wikipedia.   SELEÇÃO  DE POEMAS extraídos  de    NIETZSCHE,  Friedrich.  Fragmentos do espólio:  primavera de 1884 a outono de 1885.       Seleção,  tradução e prefácio de Flávio R. Kothe.    Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.   680 p.  ISBN 978-85-230-1226-7   Ex. bibl.  Antonio Miranda
 
                              28 (10)          Mero  fragmento se torna agora tudoA  águia de minha esperança tem à vista
 Uma  nova terra grega, uma Grécia pura
 Sacra  para os ouvidos e para os sentidos.
          Saindo  da letargia dos tons tedescosMozart  Rossini e Chopin
 Saio  em busca das terras helênicas
 Voltando  o navio para ti, Orfeu teuto.
          Oh,  não vaciles em dirigir o barco do desejoPara  as terras do Sul, para as ilhas idílicas,}
 Brincadeira  das ninfas gregas,
 Nenhum  navio teve já meta mais linda.
          Mero  fragmento tudo ora se torna em mimO  que alguma vez minha águia já viu—:
 Mesmo  que muita esperança já seja cinza.
 —Feito  uma flecha me atingiu a tua melodia
 Curando  os ouvidos, curando os sentidos,
 Daquilo  que do alto me levava a reboque
          A  melodia que do alto me atingia          Para  lá, para as regiões helênicasO  mais belo navio das musas volver
          28(15)          —  os prisioneiros da riquezaseus  pensamentos ressoam pesadas correntes
          28(16)          a  santa preguiça eles se inventarame  a volúpia de segundas e dias de trabalho
          28(21)          O  paladino da verdade ? Tu  o viste ?    Parado,  rígido, frio, liso,
 Transformado  em coluna e estátua,
 Cariátide  a sustentar templos — confessa:
 Isso  te agrada ?
 Não,  tu procuras máscaras, mudança
 e  pelagens de arco-íris
 Coragem  de gato-do-mato, a saltar pela janela
 para  a selvageria de todo o acaso!
 Não,  tu precisas de mata virgem
 para  degustar  o teu mel,
 saudável  e belo feito um pecado,
 feito  um felino de pelo pintado.
          28(27)                    6. O poeta – tortura do criativo               Ah, vigias das vias!Vosso agora eu souO  que estais querendo, resgate ?
 Muito  deveis exigir — assim diz o meu orgulho —
 e  pouco falar: assim aconselha o meu outro orgulho
 eu  gosto de aconselhar: mas isso facilmente se cansa
      
  para onde  a minha fuga ?            Quieto  estou deitado,          espichado          feito  um semimorto a quem se aquecem os pés          —  os besouros se amedrontam com o meu silêncio          —fico  na espera          Bendigo  tudo          rama  e grama, alegria, graça e chuva             28(41)            O  corpo mais lindo — somente um véu          Em  que se esconde — ainda mais belo céu —            28(54)                      Enigma    Resolvam o enigma que na palavra encobre:  “A mulher inventa enquanto o homem descobre ——   28(55)                    O solitário fala   Ocupar-se  com idéias ? Bom!— assim são minhas. Mas  preocupar-se —isso eu quero desaprender! Quem  se preocupa — já está tomado, possuído, Eu  nunca nem jamais vou querer me submeter.   28(67)   Acolá  a forca, e a corda cá, Cá  o carrasco e a raça do carrasco, Narizes  vermelhos, venenosos olhares E  do sacerdote a barba honorável: Já  vos conheço de cem andanças — Com  prazer eu vos cuspo na cara — Para  que enforcar ? Morrer  ? Morrer — e não aprendi.   Mendigos,  vos! Pois para inveja vossa Eu  já era o que vós — jamais alcançais. De  fato, eu sofro, de fato eu sofro — Mas  vós — estais morrendo, estais! Eu,  mesmo após cem andanças mortais, Consigo  me reencontrar com a luz — Para  que enforcar! Morrer  ? Morrer — eu não aprendi.   Por  isso ressoou na Espanha longínqua A  canção das castanholas, para mim, Em  torno a lanterna mirava sombria, Claro  o cantador, contente e vadio. Como  eu auscultando as profundezas A  minha água mais funda afundou, Parecia-me  que eu dormi, dormia Sempre  saudável e sempre doentio.         NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Seleção de textos de   GérardLebrun. Tradução de notas de Rubens Rodrigues Torres  Filho. Editor: Victor  Civita.  São Paulo: Abril S. A. Cultural  e  Industrial, 1974.    434 p.    Ex.  bibl. Antonio Miranda              VOCAÇÃO  DE POETA         (Das Canções do Príncipe Livrepássaro, poemas de 1882-1884,publicados  em apêndice à Gaia Ciência, na edição  de 1886).
            Ainda outro dia, na sonolênciaDe  escuras árvores, eu sozinho,
 ouvi  batendo, como em cadência,
 Um  tique, um taque, bem de mansinho...
 Fiquei  zangado, fechei a cara —
 Mas  afinal me deixei levar
 E  igual a um poeta, que nem repara,
 Em  tique-taque me ouvi falar.
 
 E  vendo o verso cair, cadente,
 Sílabas,  upa, saltando fora,
 Tive  que rir, rir, de repente,
 E  ri por um bom quarto de hora.
 Tu,  um poeta? Tu, um poeta?
 Tua  cabeça está assim tão mal?
 —  “Sim, meu senhor, sois um poeta”,
 E  dá de ombros o pica-pau.
 
 Por  quem espero aqui nesta moita?
 A  quem espreito como um ladrão?
 Um  dito? Imagem? Mas, psiu! Afoita
 Salta  à garupa rima e refrão..
 Algo  rasteja? Ou pula? Já o espeta
 Em  verso o poeta, justo e por igual.
 —  Sim, meu senhor, sou um poeta”,
 
     E dá de ombros o pica-pau.  Rimas, penso eu,  serão como dardos?Que reboliços, saltos e sustos,
 Se o dardo agudo vai acertar dos
 Pobre lagartos os pontos justos.
 Ai, ele morre à ponta da seta
 Ou cambaleia, o ébrio animal!
 — “Sim, meu senhor, sois um poeta”,
 E dá de ombros o pica-pau.
 Vesgo versinho, tão  apressado,Bêbeda corre cada palavrinha!
 Até que tudo, tiquetaqueado,
 Cai na corrente, linha após linha.
 Existe laia tão cruel e abjeta
 Que isto ainda — alegra? O poeta — é mau?
 — “Sim, meu senhor, sois um poeta”,
 E dá de ombros o pica-pau.
 
 Tu zombas, ave? Queres brincar?
 Se está tão mal minha cabeça,
 Meu coração pior há de estar?
 Ai de ti, que minha raiva cresça!—
 Mas trança rimas, sempre —o poeta,
 Na raiva mesmo sempre certo e mau.
 — “Sim, meu senhor, sois um poeta”,
 E dá de ombros o pica-pau.
     NATAL  (Das Canções do Príncipe  Livrepássaro.)  Eis –me suspenso a um galho torto
 E balançando aqui meu cansaço.
 Sou convidado de um passarinho
 E aqui repouso, onde está seu ninho.
 Mas onde estou? Ai, longe, no espaço.
 
 O mar, tão branco, dormindo absorto,
 E ali, purpúrea, vai uma vela.
 Penhasco, idílios, torres e cais,
 Balir de ovelhas e figueirais.
 Sul da inocência, me acolhe nela!
 Só a passo e passo — é como estar morto,O pé ante pé faz o alemão pesar.
 Mandei o vento levar-me ao alto,
 Aprendi com pássaros leveza e salto —
 Ao sul voei, por sobre o mar.
 
 Razão! Trabalho pesado e ingrato!
 Que vai ao alvo se chega tão cedo!
 No voo aprendo o mal que me eiva —
 Já sinto ânimo, e sangue e seiva
 De nova vida e novo brinquedo...
 Quem pensa a sós, de sábio eu trato,Cantar a sós — já é para os parvos!
 Estou cantando em vosso louvor:
 Fazei um círculo e, ao meu redor,
 Malvados pássaros, vinde sentar-vos!|
 
 Jovens, tão falsos, tão inconstantes.
 Pareceis feitos bem para amantes
 E em passatempos vos entreter...
 No norte amei — e confesso a custo —
 Uma mulher, velha de dar susto
   “Verdade”, o nome dessa mulher.    (Dos Poemas, 1871-1888)      O  ANDARILHO
 Um andarilho vai pela noiteA passos largos;
 Só curvo vale e longo desdém
 São seus encargos.
 A noite é linda —
 Mas ele avança e não se detém.
 Aonde vai seu caminho ainda?
 Nem sabe bem.
 Um passarinho canta na noite:“Ai, minha ave, que me fizeste!
 Que meu sentido e pé retiveste,
 E escorres mágoa de coração
 Tão docemente no meu ouvido,
 Que ainda paro
 E presto atenção? —
 Porque me lanças teu chamariz?”—
 A boa ave se cala e diz:“Não, andarilho! Não é a ti, não,
 Que chamo aqui
 Com a canção —
 Chamo uma fêmea de seu desdém —
 Que importa isso, a ti também?
 Sozinho, a noite não está linda —
 Que importa a ti? Deves ainda
 Seguir, andar.
 E nunca, nunca, nunca parar!
 Ficas ainda?
 O que te fez minha flauta mansa,
 Homem da andança?
 
 A boa ave se cala e pensa:
 “O que lhe fez minha flauta mansa,
 Que fica ainda?
 O pobre, pobre homem da andança!”’
       DA  POBREZA DO RIQUÍSSIMO   (Dos Ditirambos de Dioniso, 1888:  Estas são as canções de Zaratustra,que  ele cantava para si mesmo, para suportar sua última solidão.”)
 
 Dez anos já —e nenhuma gora me alcançou,
 nem úmido vento nem orvalho de amor
 — uma terra sem chuva...
 Agora pelo à minha sabedoria
 que não se torne avara nessa aridez:
 corra ela própria, goteje orvalho;
 seja ela a chuva do ermo amarelado!
 
 Um dia mandei as nuvens
 embora de minhas montanhas —
 um dia eu disse, “mais luz, obscuras!”
 Agora as chamo, que venham:
 fazei escuro ao meu redor com vossas ubres!
 — quero ordenhar-vos,
 vacas das alturas!
 Leite quente, sabedoria, doce orvalho do amor
 derramo por sobre a terra.
 
 Fora, fora, ó verdades
 de olhar sombrio!
 Não quero ver em minhas montanhas
 acres verdades impacientes.
 Dourada de sorrisos,
 de mim se acerca hoje a verdade,
 adoçada de sol, bronzeada de amor —
 só uma verdade madura eu tiro da  árvore.
 Hoje  estendo as mãosàs seduções do acaso,
 bastante esperto para guiar, tapear o acaso,
 como uma criança.
 Hoje quero ser hospitaleiro
 com o mal-vindo,
 contra o destino mesmo não quero ter espinhos
 — Zaratustra não é um ouriço.
 Minha alma, insaciável com sua língua,já lambeu em todas as coisas boas e ruins,
 em cada profundeza já mergulhou.
 Mas sempre igual à cortiça,
 sempre boia outra vez à tona,
 bruxuleia como óleo sobre os mares morenos:
 por ter essa alma me chamam o Afortunado.
 Quem são meu e mãe?Não é meu pai o príncipe Supérfluo,
 e mão o Riso atencioso?
 Não me gerou esse duplo conúbio,
 em animal de enigma,
 eu monstro luminoso,
 eu esbanjador de toda a sabedoria de Zaratustra?
 
 Hoje doente de delicadeza,
 um vento de orvalho,
 Zaratustra está sentado, esperando, esperando,
 [em  suas montanhas —
 em seu próprio suco
 tornado doce e cozinhado,
 embaixo de seu cume,
 embaixo de seu gelo,
 cansado e venturoso,
 um criador em seu sétimo dia.
 — Quietos!É minha verdade! —
 De olhos esquivos,
 de arrepios aveludados
 me atinge seu olhar,
 amável, mau, um olhar de moça...
 Ela adivinha — ah! o que ela inventa? —
 Purpúreo espreita um dragão
 no fundo de um olhar de moça.
 Quietos! Minha verdade fala!  Ai de ti, Zaratustra!Pareces alguém
 que engoliu ouro:
 ainda hão de te abrir a barriga!
 És rico demais,corruptor de muitos!
 São muitos os que tornas invejosos,
 são muitos os que tornas pobres...
 A mim própria tua luz faz sombra —
 ela me congela:? vai embora, tu, que és rico,
 vai, Zaratustra, sai de teu sol!
 
 Queres presentear, distribuir teu supérfluo,
 mas tu próprio é o meu supérfluo!
 Sê esperto, tu, que és rico!
 Presenteia antes a ti próprio, ó  Zaratustra!
 Dez anos já —e nenhuma gota de alcançou?
 Nem úmido vento? nem orvalho do amor?
 Mas quem haveria de te amar,
 ó mais que rico?
 Tua felicidade faz secar em torno,
 torna pobre de amor
 — uma terra sem chuva...
 Ninguém mais te agradece,mas tu agradeces a todo aquele
 que toma de ti:
 nisso te reconheço,
 ó mais que rico,
 ó mais  pobre de todos os ricos!
 Tu te sacrificas, tua riqueza te atormenta —
 tu dás,
 não te poupas, não te amas:
 o grande tormento te força o tempo todo,
 o tormento dos celeiros saturados, do  coração
 [saturado,
 mas ninguém mais te agradece...
 O tormento dos celeiros saturados,[do coração saturado —
 ninguém mais te agradece...
 Tens de tornar-te mais pobresábio insensato!
 queres ser amado.
 Ama-se somente aos sofredores,
 só se dá amor aos que têm fome:
 presentei antes a ti próprio, ó  Zaratustra!
 — Eu sou tua verdade...                                                
                     Página  publicada em junho de 2018; ampliamos a página em maio de 2020       |