POESIA MUNDIAL EM PORTUGUÊS
DEREK WALCOTT
Derek Walcott (1930-2017), prêmio Nobel de literatura de 1992, descendente de negros e brancos, nasceu na ilha caribenha de Santa Lúcia, ex-colônia francesa e inglesa (alternadamente, muitas vezes). Walcott se sentia legítimo herdeiro tanto da tradição africana quanto da europeia, e escrevia livremente sobre seu quintal e sobre o mundo. Sua obra mais conhecida é o poema épico Omeros, que ecoa a Ilíada no ambiente caribenho (publicado no Brasil em bela tradução de Paulo Vizioli). Finalmente, cabe dizer: a única constante na poesia de Walcott é a presença do mar.
TEXT IN ENGLISH – TEXTO EM PORTUGUÊS
IARARANA – revista de arte, crítica e literatura. Salvador, Bahia. No. 4 – 2000. Ex. bibl. Antonio Miranda
Crusoe's Journal
I looked now upon the world as a thing remote, which I had nothing to do with, no expectation from, and, indeed, no desires about. In a word, I had nothing indeed to do with it, nor was ever likely to have; so I thought it looked as we may perhaps look upon it hereafter, viz., as a place I had lived in but was come out of it; and well might I say, as Father Abraham (...), "Between me and thee is a great gulf fixed".
Robinson Crusoe
Once we have driven past Mundo Nuevo trace
safely to this beach house
perched between ocean and green, churning forest
the intellect appraises
objects surely, even the bare necessities
of style are turned to use,
like those plain iron tools he salvages
from shipwreck, hewing a prose
as odorous as raw wood to the adze;
out of such timbers
came our first book, our profane Genesis
whose Adam speaks that prose
which, blessing some sea-rock, startles itself
with poetry's surprise,
in a green world, one without metaphors;
like Christopher he bears
in speech mnemonic as a missionary's
the Word to savages,
its shape an earthen, water bearing vessel's
whose sprinkling alters us
into good Fridays who recite His praise,
parroting our master's
style and voice, we make his language ours,
converted cannibals
we learn with him to eat the flesh of Christ.
All shapes, all objects multiplied from his,
our ocean's Proteus;
in childhood, his derelict's old age
was like a god's. (Now pass
in memory, in serene parenthesis,
the cliff-deep leeward coast
of my own island filing past the noise
of stuttering canvas,
some noon-struck village, Choiseul, Canaries,
crouched crocodile canoes,
a savage settlement from Henty's novels,
Marryat or R.L.S.,
with one boy signalling at the sea's edge,
though what he cried is lost.)
So time, that makes us objects, multiplies
our natural loneliness.
For the hermetic skill, that from earth's clays
shapes something without use,
and, separate from itself, lives somewhere else,
sharing with every beach
a longing for those gulls that cloud the cays
with raw, mimetic cries,
never surrenders wholly, for it knows
it needs another's praise
like hoar, half-cracked Ben Gunn, until it cries
at last, "O happy desert!"
and learns again the self-creating peace
of islands. So from this house
that faces nothing but the sea, his journals
assume a household use;
we learn to shape from them, where nothing was
the language of a race,
and since the intellect demands its mask
that sun-cracked, bearded face
provides us with the wish to dramatize
ourselves at nature's cost,
to attempt a beard, to squint through the sea-haze,
posing as naturalists,
drunks, castaways, beachcombers, all of us
yearn for those fantasies
of innocence, for our faith's arrested, phase
when the clear voice
startled itself saying "water, heaven, Christ,"
hoarding such heresies as
God's loneliness moves in His smallest creatures.
WALCOTT, Derek. Collected Poems: 1948-1984. New York: FarrTar, Straus & Giroux, 1993, p. 92-94.
TEXTO EM PORTUGUÊS
O Diário de Robinson Crusoé
Derek Walcott
Tradução: Décio Torres Cruz Revisão: Marta Rosas
Agora eu via o mundo como uma coisa remota, com a qual nada tinha que ver e da qual nada esperava nem mesmo desejava. Numa palavra, eu não tinha de fato nada que ver com o mundo e provavelmente jamais teria; por isso achei que talvez pudéssemos vê-lo dali em diante como um lugar no qual eu vivera, mas do qual havia saído; e bem poderia dizer, como o pai Abraão (...), "Entre nós e vós está posto um grande abismo ".
Robinson Crusoé
Após deixarmos para trás Mundo Nuevo, seguindo
em segurança até esta casafde praia
empoleirada entre oceano e verde floresta bravia,
o intelecto avalia
objetos com precisão; mesmo as necessidades básicas
do estilo ganham uso,
como esses simples utensílios de ferro que ele resgata
do naufrágio, lavrando uma prosa
tão perfumada como madeira nova para a enxó;
de tal lenho
surgiu o nosso primeiro livro, nosso Gênese profano,
cujo Adão fala aquela prosa
que, abençoando alguma rocha marinha, se choca
com surpresa de poesia,
em um mundo verde, sem metáforas;
como Cristóvão, ele carrega
na fala mnemónica de missionário
a Palavra para os selvagens,
sua forma a de um vaso de barro para a água
cuja aspersão nos transforma
em Sextas-Feiras santos que recitam o Seu louvor,
papagueando do nosso mestre
estilo e voz, fazemos nossa a sua língua,
canibais convertidos, com ele aprendemos a comer a carne de Cristo.
Todas as formas, todos os objetos multiplicados dos seus,
o Proteu de nosso oceano; na infância, a antiguidade do seu derrelito
era como a de um deus. (Agora passam na memória, em sereno parêntese,
as falésias da costa, a sotavento, de minha própria ilha desfilando pelo ruído
da lona que farfalha, alguma vila amodorrada ao meio-dia, Choiseul, Canárias,
canoas como quietos crocodilos, um povoado rústico dos romances de Henty,
Marryat ou R.L.S., com um garoto acenando à beira-mar,
embora o que ele gritava se tenha perdido.) Assim o tempo, que nos faz objetos, multiplica
nossa solidão natural.
Pois a habilidade hermética, que dos barros da terra
molda algo sem uso e, separada de si mesma, vive em algum outro lugar,
compartilhando com cada praia um desejo daquelas gaivotas que anuviam os recifes
com miméticos gritos primevos, nunca se rende completamente, pois sabe
que precisa do elogio de outro, como o velho maluco Ben Gunn, até gritar
por fim "O deserto feliz!" e aprender de novo a paz autocriadora
das ilhas. Assim, desta casa de onde nada se vê além do mar, seu diário
assume utilidade doméstica; aprendemos a moldar a partir dele, onde nada havia,
a língua de uma raça, e, já que o intelecto exige sua máscara,
esse rosto barbado, curtido pelo sol, nos provê do desejo de dramatizar-nos
à custa da natureza, de ensaiar uma barba, forçar a vista no mormaço,
posando de naturalistas, bêbados, párias, vagabundos de praia, todos nós
ansiamos por essas fantasias de inocência, pela fase suspensa de nossa fé,
quando a voz clara surpreendeu-se ao dizer "água, paraíso, Cristo",
colecionando heresias como a solidão de Deus pulsa em Suas criaturas mais ínfimas.
Todas as formas, todos os objetos multiplicados dos seus,
o Proteu de nosso oceano;
na infância, a antiguidade do seu derrelito
era como a de um deus. (Agora passam
na memória, em sereno parêntese,
as falésias da costa, a sotavento,
de minha própria ilha desfilando pelo ruído
da lona que farfalha,
alguma vila amodorrada ao meio-dia, Choiseul, Canárias,
canoas como quietos crocodilos,
um povoado rústico dos romances de Henty,
Marryat ou R.L.S.,
com um garoto acenando à beira-mar,
embora o que ele gritava se tenha perdido.)
Assim o tempo, que nos faz objetos, multiplica
nossa solidão natural.
Pois a habilidade hermética, que dos barros da terra
molda algo sem uso
e, separada de si mesma, vivé em algum outro lugar,
compartilhando com cada praia
um desejo daquelas gaivotas que anuviam os recifes
com miméticos gritos primevos,
nunca se rende completamente, pois sabe
que precisa do elogio de outro,
como o velho maluco Ben Gunn, até gritar
por fim "Ó deserto feliz!"
e aprender de novo a paz autocriadora
das ilhas. Assim, desta casa
de onde nada se vê além do mar, seu diário
assume utilidade doméstica;
aprendemos a moldar a partir dele, onde nada havia,
a língua de uma raça,
e, já que o intelecto exige sua máscara,
esse rosto barbado, curtido pelo sol,
nos provê do desejo de dramatizar-nos
à custa da natureza,
de ensaiar uma barba, forçar a vista no mormaço,
posando de naturalistas,
bêbados, párias, vagabundos de praia, todos nós
ansiamos por essas fantasias
de inocência, pela fase suspensa de nossa fé,
quando a voz clara
surpreendeu-se ao dizer "água, paraíso, Cristo",
colecionando heresias como
a solidão de Deus pulsa em Suas criaturas mais ínfimas.
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Décio Torres Cruz é natural de Sátiro Dias (1958), Doutor em Literatura Comparada (State University of New York, em Buffalo/1997). Leciona Língua e Literatura Inglesa (UNEB e UFBA) e Inglês Instrumental
(Faculdade Ruy Barbosa), tendo diversos artigos e traduções publicados. Marta Rosas é natural de Salvador (1962), pós-graduada em Tradução (UFBA/1992 e USP/1995), cursa mestrado em Linguística Aplicada (Tradução do Humor/UFBA). Exerce a profissão de tradutora há mais de 15 anos, tendo vários trabalhos publicados (editoras Cultrix, Revan e Relume-Dumará).
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL. No. 9 – jan./jun. 2023. Editor: Flavio R. Kothe. Brasília, DF: Editora Cajuína, Opção editora, 2023. 174 p. ISSN 22674-8495.
Tradução de Marcos Freitas
AMOR APÓS AMOR
Vai vir o tempo
em que, com júbilo
você saudará a si mesmo, chegando
na sua própria porta, no seu próprio espelho
e trocará sorriso de boas-vindas,
e irá dizer, sente-se aqui. Coma.
Você vai amar de novo o estranho que você era.
Dê-lhe vinho. Dê-lhe pão. Devolva seu coração
a si mesmo, ao estranho que o amou
por toda a vida, a quem você trocou
por outro, que o conhece de cor.
Retire as cartas de amor da estante,
as fotografias, os bilhetes desesperados,
descasque a sua própria imagem no espelho.
Sente-se. Festeja sua vida.
PLENO VERÃO, TOBAGO
Calor branco.
Um rio verde.
Uma ponte,
queimadas palmeiras amarelas
da casa de dormir de verão
cochilando até agosto.
Dias que seguirei,
dias que perdi,
dias que crescem, como filhas,
meus braços acolhedores.
[Tradução do inglês]
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Página ampliada e republicada em julho de 2023
Página publicada em junho de 2019
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