POESIA MUNDIAL EM PORTUGUÊS
CATULO
Caio Valério Catulo (em latim: Gaius Valerius Catullus; Verona, 87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C.) foi um sofisticado e controverso poeta romano durante o final do período republicano.
Catulo se liga a um círculo de poetas de ideais estéticos comuns, os quais, Cícero chama de poetas novos (modernos), termo este, carregado de sentido pejorativo. Esse grupo de poetas rompia com o passado literário romano (mitológico), passando, entre outras características, a utilizar uma temática considerada “menor” pelos seus críticos.
Acrescenta-se às características da poesia de Catulo, a linguagem coloquial (Ex. Ineptire, no canto VIII), a simulação frequente de improviso na sintaxe (frases interrompidas por orações paratéticas, repetição de palavras e expressões, movimento circular da elocução), versos ligeiros e a simulação do acesso aos recantos mais íntimos do homem.
(Biografia completa em: https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A1tulo)
A MORTE DO PASSARINHO
Gracioso passarinho,
Delícias da minha amada;
Tu que tens parte em seus brincos,
Em seu regaço pousada;
Que o dedinho lhe provocas,
E a quem ela, com prazer,
O dedinho logo entrega,
Excitando-te a morder
Quando está de mim saudosa,
E então lhe dá na vontade
Buscar em brincos mais ternos
Alívio à dura saudade,
Por calmar, segundo eu cuido,
Do seu peito o amante ardor,
E dar um consolozinho
Solitária à sua dor,
Contigo brinca. Esses brincos
Não os poder eu brincar!
Ai! tivesse-te eu como ela,
Que me rira do penar!
O bem, o bem, passarinho,
Que eu te havia de querer!
O tal fruto douradinho
Que à moça de bom correr
O virgíneo esquivo cinto
Se diz ter soltado enfim,
Certo não lhe era mais grato
Do que o tu foras a miml
Tradutor: Antonio Feliciano de Castilho
CATULO
o ciclo de poemas
a Juvêncio
POR QUE CALAR NOSSOS AMORES?: Poesia homoerótica latina. Organização Raimundo Carvalho, Guilherme Gontijo Flores, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, João Angelo Oliva Neto. Edição bilíngue Latin – Português. Belo Horizonte, MG: Autêntica
Editora, 2017. 285 p. (Coleçâo Clássica) 16,5x24 cm. ISBN 978-85-8217-602-3 Ex. bibl. Antonio Miranda
Um caso de semiótica?
Caio Valério Catulo nasceu em Verona entre 87 e 84 e morreu
por volta de 52 a.C. Par nós hoje é praticamente o único poeta latino
do fim do regime republicano em Roma, que teve prosadores como
Cícero, Júlio César, Salústio e Cornélio Nepos. Houve, é claro, vários
outros poetas, que, com exceção de Tito Lucrécio Caro, não tiveram
escritos preservado, a não ser fragmentariamente. Entretanto, Lucrécio, a despeito de compor De rerum natura, “Da natureza
das Coisas”, longo e vigoroso poema didático em hexâmetros
datílicos, hoje é ledo mais como a maior fonte da filosofia epi-
curista, so que também como poeta. Catulo é, assim, entre os
latinos, o maior poeta lírico,, elegíacao e epigramático cuja obra
nos chegou praticamente inteira. Nela, entre outros, há dois
conjuntos de poemas amorosos: um dedicado a uma mulher
casada, que nomeia “Lésbia”, outro a um adolescente chamado
Juvêncio. Do “ciclo de Juvêncio” apresentamos aqui os poemas
15, 24, 48, 81 e 99.1 São composições propriamente “pederásticas”
porque exibem o amor (em grego éros) por um adolescente (em
grego páis, paidós). Essa espécie de poemas amorosos já era
designada pelo gregos antigos como moûsa paidiké, “a musa —
bem entendido — a poesia (amorosa) para o rapaz”, da qual é
exemplo eloquente o volume 12 da Antologia grega (ou Antologia
palatina). 2
Mais do que documentar a experiência afetiva do Catulo his-
tórico, que é sempre problemático aferir, os poemas pederásticos
são decerto um pequeno monumento de delicadeza poética, são um
minimonumento de ternura, se entendermos o termo também pela acepção antiga do adjetivo tener, que significa não apenas “terno”,
no plano afetivo, mas antes “tenro” no plano físico, de que o adoles-
cente apolíneo é para os antigos (e para o infeliz Aschenbach, de A morte em Veneza) a materialização mais perfeita. A delgada e pas-
sageira perfeição do termo adolescente deve ser perenizada no
poema pederástico pela perfeita ternura da linguagem, que se deixa
ver de imediato pelo muitos diminutivos — integellum (15, 4, “intei-
rinho”), flósculum (24, 1, “florzinha”) (...) (...)
A graça e o encantamento do amigo Calvo são também, como sem-
pre, na poesia latina, a graça e o encantamento dos poemas do
amigo. Imaginemo-nos: o mesmo amigo que podemos muito amar
a despeito de tudo é também aquele cujos poemas nos enchem da
maior admiração.
(João Angelo Oliva Neto)
1 Os outros são 16, 21, 23 e 26.
2 O volume xxxxxxxxxxxxx , “A musa pederástica
do Estratão”. (...)
Catullus 15
Commendo tibi me aca meos amores,
Aureli. Veniam peto prudentem,
ut, si quicquam animo tuo cupisti,
quod castum experteres et integellum,
conserues puerum mihi pudice,
non dico a populo — nihio ueremur 5
istos, que in platea modo huc modo illuc
in re praetereunt sua occuppati —
uerum a te metuo tuoque pene
infesto pueris bonis malistue.
Quem tu qua lubet, ut lubtet moueto 10
quantum uis, ubi erit foris paratum:
hunc unum excipio, ut puto, puidenter
Quod si te mala mens furorque uecors
in tamtam impulerit, scelest, culpam, 15
ut mostrum insidiis caput lacessas,
a tum te miserum malique fati,
quem atttactis pedibus patente porta
percurrent raphanique mugilesque.
Catulo 15
A ti eu me confio e meus amores,
Aurélio, e de pudor eu peço vênia
pois se já desejaste algo em teu ânimo
que mantivesses casto e inteirinho,
preserves em pudor este menino 5
não digo das pessoas — delas nada
temo a passar na praça aqui e ali
com suas próprias coisas ocupadas.
Minha paúra és tu, e é teu pau,
atal aos bons, fatal aos maus meninos; 15
por onde queiras, como queiras, leva-o,
quando saíres, pronto para tudo.
Só ele excluo, sim, pudicamente,
pois se uma ideia má ou louca fúria
te impedir, pérfido, a tamanho crime 15 de preparar insídias contra mim,
então, ah! infeliz e malfadado,
pelos pés arrastado, por teu rabo
aberto vão passar mugens e rábãos.
Catullus 24
O qui flosculus es luuentiorum,
nom horum modo, sed quota ut fuerunt
aut posthac aliis erunt in annis,
mallen diuitias Midae dedisses
isti, cui neque seruus est neque arca, 5
quam sic te sineres ab illo amari.
“Qui? Non est homo bellus?” inquies. Est;
sed bello hic neque seuus est neque arca
Hoc tu quam lubet abice eleuaque;
ne seruum tamen ille habet neque arddam. 10
Catulo 24
Ó tu, que és florzinha dos Juvencios,
e não só destes, mas de quantos foram
ou no futuro, após, inda serão:
antes riquezas mil de Midas desses
àquele que não tem escravo ou arca 5
que te deixares ser por ele amado.sss
“Quê?, não é homem belo?” dizes. É.
Mas fala ao “belo” ter escravo e arca.
Recusa e ignora o fato o quanto queres.
(Porém, escravo ele não tem, nem arca!)
Catullus 48
Mellitos óculos tuos, Iuuenti,
siquis me sinat usque basiare,
usque ad milia basiem trecenta
nec nunquamn yudear satur futurus,
non si densior aridis aristus 5
sit nostrae seges osculationis.
Catulo 48
Os teus olhoas de mel, Juvêncio, se eu
os pudesse beijar continuamente,
continuamente eu beijaria até
trezentos mil sem ver-me satisfeito
nem se mais densa do que espigas secas 5
fosse a messe dos beijos meus e teus.
Catullus 81
Nemone in tanto potuit populo esse, luuenti,
bellus homo, quem tu diligere inciperes,
praeterquam iste tuus moribunda ab sede Pisauri
hospes inaurata pallidor statua,
qui tibi nunc cordio est, quem tu praeponere nobis 5
audes? Ei! Nescis quod facinus facias.
Catulo 81
Não havia, Juvêncio, em povo tão imenso,
um homem belo a quem quisesses mais
que de Pisauro moribunda esse teu hóspede
mais pálido que estatura redouradaa,
que tens no coração e que ousas preferir 5
a mim? Não vês o crime que cometes!
Catullus 99
Surripui tibi, dum ludis, melite luuenti,
suauiolum dulci dulcius ambrosia.
Verum id non impune tuli; manque ampluis horam
sufficum in summa me menini esse cruce,
dum tibi me purgo nec possum fletibus ullis 5
tantilum uestrae demere saeuitiae.
Nam simul id factum est, multis diluta labella
guttis abstersisti omnibus articulis,
ne quicquam nostro contractum ex ore maneret,
tanquam commictae spurca saliua lupae. 10
Praeterea infesto miserum me tradere amori
non cessati ombique escruciare modo,
ut mi ex ambrosia mutatum iam foret illud
suauiolum trist tristius elleboro.
Quam quoriam poenam misero porponis amori, 15
numquam iam posthac basia surripian.
Catulo 99
Roubei-te (tu brincavas), Juvêncio de mel
um beijinho mais doce que ambrosia
mas não impune pois por uma hora ou mais
me vi na ponta de uma estaca enfiado
me desculpando, mas meus prantos não dobraram 5
nem um tantinho da maldade tua.
Feito o que fiz, teus lábios, úmidos de muitas
gotas, secaste com teus dedos todos,
minha boca malsã não fosse qual saliva
suja de meretriz em que se mija. 10
Depois, a infesto Amor entregar-me infeliz
não cessaste e excruciar-me de mil modos,
até que em mim o tal beijinho, ambrosia,
tornou-me amargo, mais que o amargo heléboro.
Porque esta é a pena que atribuis a um triste amor, 15
eu beijos nunca mais hei de roubar.
Notas
v. 1: Meus amores, é pessoa, o menino Juvêncio, objeto do amor
pederástico de Catulo.
v. 2: Aurélio: desconhecido.
v. 5: menino: puer, o favorito do poeta.
v. 14: ideia má: mala mens, demência, loucura.
v. 19: mugens: mugiles, tipo de peixe.
v. 19: rabãos: raphani, tipo de rabanetem rábano. A pena era
reservada ais adúlteros pegos em flagrante; ver Horácio
(Sátiras, 1, 2, 131-133).
Catulo 24
v. 1: Juvêncios: sentiorum de Inuenti. Era antigo e aristocrático clã,
orginário de Túsculo, mas ramificado também em Verona.
v. 4: Midas: Midae, de Midas. É legendário rei da Frígia, que tor-
navaouro tudo em que tocava.
v. 5: [aquele que não tem] escravo ou arca: huic neque seruus est
neque arca; é Fúrio, rival do poeta no amor ao menino, men-
cionado em outros poemas de Catulo.
Catulo 48
v.1: olhos de mel: Melitos óculos. A locução é a mesama de Safo
(fragmento 112 Lobel-Page / Voigt = 106 e 108 Reinach): “Tua
forma é graciosa, e <teus> olhos <são> de mel” (ooi xápiEv
uèv Elõç õnnara õ [...] uÉÀÀux’).;
Catulo 81
v.3: Pisauro moribunda: moribunda Pisauri. Pisaurum é cidade da
Úmbria, hoje Pesaro; é “moribunda” porque economicamente em
declínio.
v. 3: hóspede: hospes. O termo significa tanto “hóspede” como
“hospedeiro”, sentido arcaico que ocorre também em portu-
guês. “Hóspede” é mais provável por fazer a ação passar-se |
em Roma em vez de Pisauro.
v. 4: mais pálido: pallidior. A cor do ouro tal como era ou tal como
os romanos o viam tende ao pálido, como confirma Estácio
(Silvas, 4, 7, 14-16):
Dite uiso, Quando Dite apareceu,
pállidus fossor redit erutoque o mineiro voltou pálido,
concolor auro. Da cor do ouruo que extraía.
v. 4: estátua redourada: inaurata statua. Os romanos costumavam
dourar as estátuas de bronze.
Catulo 99
v.1: Brincavas: dum ludis, literalmente “enquanto brincavas”.
Entendo que ludere aqui significa que Juvêncio se divertia não
sexualmente e se irritou com o ímpeto do poeta.
v.4: na ponta de uma estaca enfiado: suffixum in summa cruce.
Crux, além da conhecida cruz, designa outro instrumento de
tortura, a estaca em que mais raramente se empalavam com-
denados.
v. 10: meretriz em que se mija: comictae salina lupae. É turpilóquio
engenhoso: a saliva da meretriz que pratica felação é como que
suja de urina.
v. 12: cessaste: para o regime do verbo ver Franciscco Fernandes,
Dicionário de Verbos e Regimes, s.v.
v. 12: excruciar-me: excruciare, utilizado muito oportunamente; ver
acima v. 4, na ponta de um estaca enfiado.
v. 14: mais amargo do que o amargo heléboro: tristi tristus eleboro.
Heléboro é erva medicinal muito amarga=-
Página publicada em fevereiro de 2019
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