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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
POESIA MUNDIAL EM PORTUGUÊS

Rimbaud aos 17 anos, retratado por Étienne Carjat,
 provavelmente em dezembro de 1871

 

ARTHUR RIMBAUD
 

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (Charleville, 20 de outubro de 1854 — Marselha, 10 de novembro de 1891) foi um poeta francês.[ Produziu suas obras mais famosas quando ainda era adolescente sendo descrito por Paul James, à época, como "um jovem Shakespeare". Como parte do movimento decadente, Rimbaud influenciou a literatura, a música e a arte modernas. Era conhecido por sua fama de libertino e por uma alma inquieta, viajando de forma intensiva por três continentes antes de morrer de câncer aos 37 anos de idade.   Fonte da foto e da biografia: wikipedia.

 

REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL. Ano 3,  No. 6  jul./dez., 2021.          Diretor Flavio R. Kothe.  Brasília, DF: Editora Cajuína/Opção editora, 2021.  146 p.              ISBN 2674-84-95

 

                      TRADUÇÃO DO FRANCÊS AO PORTUGUÊS
                                  por ANDERSON BRAGA HORTA

           Nova tradução do soneto “VOYELLES”,
                     de   ARTHUR  

 

        A negro. E branco, I rubro, U verde, O azul; vogais,
       Dir-vos-ei algum dia as origens latentes:
       A, felpudo e atro cós de moscas refulgentes
       Enxameando ao redor de podridões letais,

       Caos de sombra; E, candor de vapores e tendas,
       Lanças glaciais, reis brancos, frêmitos de umbelas;
       I, púrpuras, cruor, riso de bocas belas
       Na ira, ou da embriaguez nas penitentes sendas;

       U, ciclos, divinal vibrar de verde oceano,
       Paz de animais semeando os pastos, paz do arcano
       Que a alquimia imprimiu na alta fronte do asceta;

       O, supremo Clarim de estridentes brados,
       De silêncios por Sóis, Mundos e Anjos cruzados:
       — O, ômega, clarão de Seus Olhos violeta!

                   COCHER  IVRE

                   Pouacre
                   Nacre
                   Voit:

                   Acre,
                   Loi,
                   Fiacre,
                   Choit!

                   Femme,
                   Tombe:
                   Lombe

                   Saigne:
                   — Clame:
                   Geigne.
 

                                               COCHEIRO BÊBADO

                                               Nacre
                                              
Sai,  
                                              
Lacre
                                               Vai;

                                               Acre,
                                               Guai,
                                               Fiacre,
                                               Cai.

                                               Tombo:
                                               Lombo,
                                               Dama

                                               Prerne
                                               —Clama!
                                               Geme.

                                                                                   

                                              

   OLHO/ ILHA

   L´etoile    a plueré       rose             au couer              de les orilles
   L´infini     roulé            blanc          de ta nuque         à tes reins;  
   La      mer          a perlé         rouse           à tes mammes      vermeilles
   Et´Homme         saigné         noir             à ton flanc             souverain

   A estrela   chorou         rosa            ao fundo               de tua orelha,
   O espaço   rolou           branco         entre a nuca          e o quadril
   O mar      perolou        ruivo           a mamila               vermelha
   E o Homem        sangrou                negro           o flanco       senhoril.

 

        

Fonte:    RIMBAUD, Arthur .Poesia completa       . Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks,1994    

 

 

 

Extraído de

 

POESIA SEMPRE Revista Semestral de Poesia. Ano 5 – Número 8.  Junho 1997.  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional – Ministério da Cultura. Departamento Nacional do Livro, 1997.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

Les corbeaux

 

Seigneur, quand froide est la prairie,

Quand dans les hameaux abattus,

Les longs angélus se sont tus...

Sur la nature défleurie

Faites s'abattre des grands deux

Les chers corbeaux délicieux.

 

Armée étrange aux cris sévères,
Les vents froids attaquent vos nids!
Vous, les long des fleuves jaunis,
Sur les routes aux vieux calvaires,
Sur les fossés et sur les trous
Dispersez-vous, ralliez-vous!

 

Par milliers, sur les champs de France,
Où dorment des morts d'avant-hier,
Tournoyez, n'est-ce pas, l'hiver,
Pour que chaque passant repense!
Sois donc le crieur du devoir,
O notre funèbre oiseau noir!

 

Mais, saints du ciel, en haut du chêne,
Mât perdu dans le soir charmé,
Laissez les fauvettes de mai
Pour ceux qu 'au fond du bois enchaîne,
Dans l'herbe d'où l'on ne peut fuir,
La défaite sans avenir.

 

 

Tradução de Xavier Placer

 

Os corvos

 

Quando o frio envolve os campos
quando nas desoladas aldeias
o longo "Ângelus" se cala
sobre a natureza despida,
fazei, Senhor, dos altos céus,
descer os deliciosos corvos amados.

 

Estranho exército de graves clamores,

os implacáveis ventos vos assolam os ninhos.

Ao longo dos barrentos rios,

sobre as estradas de velhos cruzeiros,

sobre casebres e velas,

dispersai-vos, confundi-vos.

 

Aos milhares, sobre os campos de França
onde repousam os mortos de anteontem,
voai, volteai, ao frio ar de inverno,
para que os passantes meditem!
Sede os pregoeiros de dever,
ó nossa negra ave agoirenta!

 

Mas, Senhor, no alto do carvalho

— mastro perdido na noite enfeitiçada —

deixai as toutinegras de maio

para aqueles que, no fundo da floresta,

sob a relva de onde não se pode fugir,

estão esmagados pela derrota sem esperança!

 

 

 

Tradução de Augusto de Campos

 

Os corvos

 

Senhor, quando os campos são frios
E nos povoados desnudos
Os longos ângelus são mudos...
Sobre os arvoredos vazios
Fazei descer dos céus preciosos
Os caros corvos deliciosos.

 

Hoste estranha de gritos secos,
Ventos frios varrem vossos ninhos!
Vós, ao longo dos rios maninhos,
Sobre os calvários e seus becos,
Sobre as fossas, sobre os canais,
Dispersai-vos, e ali restais.

 

Aos milhares, nos campos ermos,
Onde há mortos recém-sepultos,
Girai, no inverno, vossos vultos
Para cada um de nós vos vermos,
Sede a consciência que nos leva,
Ó
funerais aves da treva!

 

Mas, anjos do ar, no alto da fronde,
Mastro sem fim que os céus encantam,
Deixai os pássaros que cantam
Aos que no breu do bosque esconde,
Lá, onde o escuro é mais escuro,
Uma derrota sem futuro.

 

 

 

Tradução de Ivo Barroso

 

Os corvos

 

Senhor, quando há frio no prado,
Quando nos vilarejos pobres,
Dos ângelus calam-se os dobres...
Sobre esse mundo desolado
Fazei cair dos céus ciosos
Os caros corvos deliciosos.

Hordas hostis de uivos sicários,
Invadem vosso ninho os frios
Ventos! e vós, beirando os rios
E as velhas vias dos calvários,
Por sobre fossas, sobre clivos,
Disseminai-vos, convergi-vos!

 

Aos bandos, nos campos de França,
Em que os heróis jazem sepultos,
Quem vir, no inverno, os vossos vultos
Ao passar, repasse na lembrança!
Sê pois o arauto do dever,
Ó fúnebre ave de se ver!

 

Santos do céu, de altos carvalhos,
Mastro perdido em noites negras,
Deixai em maio as toutinegras
Aos que estão presos nos atalhos
Sob o relvado em fosso escuro,
Pela derrota sem futuro.

 

 

 

TRÊS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DO POEMA
“LE BATEAU IVRE”
(“O BARCO BÊBADO”), DE ARTHUR RIMBAUD

AUGUSTO DE CAMPOS
IVO BARROSO
AFONSO HENRIQUES NETO

 

Extraído de

 

POESIA SEMPRE.  Ano 18.  2012. Número 36.  Edição dedicada a Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, 2012. Editor Afonso Henriques Neto.

 

Nascido em 20 de outubro de 1854. Jean-Nicholas Arthur Rimbaud escreveu o extraordinário poema "Le bateau ivre" em setembro de 1871, um mês antes de completar 17 anos de idade. Desse modo. o poema acaba de festejar 141 anos de existência (em 2013). Naquele mesmo setembro de 1871, Rimbaud sai de sua cidade natal, Charleville, e segue para Paris, a convite do poeta Paul Verlaine (1844-1806), com quem se correspondia, levando consigo este poema-passaporte: o poeta mostrará, ainda em Charleville, o poema ao amigo Ernest Delahaye dizendo: "Eis o que fiz para lhes apresentar à chegada", se referindo aos intelectuais parisienses, com quem irá travar relacionamento. Rimbaud tinha exata noção do valor do "'bateau ivre", pois irá falar a Delahaye, após ter lido a ele o poema, bem saber "que até agora ninguém escreveu mula semelhante."

A carregar um turbilhão de imagens, o "barco bêbado”, símbolo do poeta ou da própria poesia em completa liberdade, usa da sonoridade e magia das palavras para enumerar forças pânicas, relâmpagos hiperbólicos, paisagens exóticas, colorações vertiginosas, audaciosos jogos sintéticos, atmosferas surreais. êxtases, vidências, exaltações e delírios, criando, em última análise, uma nova língua poética.

Algum tempo mais tarde, será redescoberto e "adotado” por vários movimentos de vanguarda do século XX na condição de um verdadeiro e precioso ícone.

Poema dos mais traduzidos em lodo o mundo, solucionamos três traduções em português, dentre as muitas que já foram realizadas em nosso idioma, para saudar, repetimos, os 141 anos de idade deste clássico da literatura mundial.

 

Le bateau ivre

 

Comme je descendais des Fleuves impassibles.

Je ne me sentis plus guidé par les haleurs:

Des Peaux-Rouges criards les avaient pris pour cibles.

Les ayant cloués nus aux poteaux de couleurs.

 

J´étais insoucieux de touts les équipages.
Porteur de blés flamands ou de cotons anglais.
Quand avec mes haleurs ont fini ces tapages,
Les Fleuves m ont laissé descendre où je voulais.

 

Dans les clapotements furieux des marées,

Moi, l'autre hiver, plus sourd que les cerveaux d'enfants,

Je courus! Et les Péninsules démarrées

N'ont pas subi tohu-hohu plus triomphants.

 

La tempête a béni mes éveils maritimes.
Plus léger qu'un bouchon j'ai dansé sur les flots
Qu`on appelle rouleurs éternels de victimes,
Dix nuits, sans regretter l'oeil niais des falots!

 

Plus douce qu'aux enfants la chair des pommes sures,

L`eau verte pénétra ma coque de sapin

Et des taches de vins bleus et des vomissures

Me lava, dispersant gouvernail et grappin.

 

Et dès lors, je me suis baigné dans le Poème
De la Mer, infusé d'astres, et lactescent,
Dévorant les azurs verts; où, flottaison blême
Et ravie, un noyé pensif parfois descend:

 

Où, teignant tout à coup les bleuités, délires
Et rythmes lents sous les rutilements du jour,
Plus fortes que l'alcool, plus vastes que nos lyres,
Fermentent les rousseurs amères de l'amour!

 

Je sais les cieux crevant en éclairs, et les trombes
Et les ressacs et les courants: je sais le soir,
 

L'Aube exaltée ainsi qu'un peuple de colombes.
Et j'ai vu quelquefois ce que l'homme a cru voir!

 

J'ai vu le soleil bas, taché d'horreurs mystiques,
Illuminant de longs ligements violets.

Pareils à des acteurs de drames très antiques

Les flots roulant au loin leurs frissons de volets!

 

J'ai rêvé la nuit verte aux neiges éblouies,
Baiser montant aux yeux des mers avec lenteurs,
La circulation des sèves inouïes,
Et l éveil jaune et bleu des phosphores chanteurs!

 

J'ai suivi, des mois pleins, pareille aux vacheries
Hystériques, la houle à l`assant des récifs,
Sans songer que les pieds lumineux des Maries
 Pussent forcer le mufle aux Océans poussifs!

 

J'ai heurté, savez-vous, d incroyables Florides
Mêlant aux fleurs des yeux de panthers à peaux
D'hommes! Des arcs-en-ciel tendus comme des brides
Sous l'horizon des mers, à de glauques troupeaux!

 

J'ai vu fermenter les marais énormes, nasses
Où pourrit dans les joncs tout un Léviathan!
Des écroulements d'eaux au milieu des bonaces,
Et les lointains vers les gouffres cataractant !

 

Glaciers, soleils d'argent, flots nacreux, cieux de braises!
Échouages hideux au fond des golfes bruns
Où les serpents géants dévorés des punaises
Choient, des arbres tordus, avec de noirs parfums!

 

J`aurais voulu montrer aux enfants ces dorades

Du Ilot bleu, ces poissons d'or, ces poissons chantants.

— Des écumes de fleurs ont bercé mes dérades

Et d'ineffables vents m'ont ailé par instants.

 

Parfois, martyr lassé des pôles et des zones,
La mer dont le sanglot faisait mon roulis doux
Montait vers moi ses fleurs d'ombre aux ventouses jaunes
Et je restais, ainsi qu`une femme à genoux...

 

Presque île, ballottant sur mes bords les querelles
Et les lientes d`oiseaux clabaudeurs aux yeux blonds.
Et je voguais, lorsqu'à travers mes liens frêles
Des noyés descendaient dormir, à reculons!

Qw1                     

Or moi, bateau perdu sous les cheveux des anses,

Jeté par l'ouragan dans Féther sans oiseau, 185 Moi don't les Monitors et les voiliers des Flanses N'auraient pas repêché la carcasse ivre d'eau;

 

Libre, fumant, monté de bruines violettes, Moi qui trouais le ciel rougeoyant comme un mur Qui porte, confiture exquise aux bons poètes, Des lichens de soleil et des morves d'azur;

 

Qui courais, tache de lunules électriques, Planche folle, escorté des hippocampes noirs, Quand les juillets faisaient crouler à coups de triques I^es cieux ultramarines aux ardents entonnoirs;

 

Moi qui tremblais, sentant geindre à cinquante lieues Le rut des Béhémots et les Maelstroms épais, Fileur éternel des immobilités bleues, Je regrette l'Europe aux anciens parapets!

 

J'ai vu des archipels sidéraux! et des îles

Dont les cieux délirants sont ouverts au vogueur:

— Est-ce en ces nuits sans fonds que tu dors et t'exiles,

Million d'oiseaux d'or, ô future Vigueur?

 

Mais, vrai, j'ai trop pleuré! I^es Aubes sont navrantes. Toute lune est atroce et tout soleil amer: L'âcre amour m'a gonflé de torpeurs enivrantes. 0 que ma quille éclate! 0 que j'aille à la mer!

 

Si je désire une eau d'Europe, c'est la flache Noire et froide où vers le crépuscule embaumé Un enfant accroupi plein de tristesses, lâche Un bateau frêle comme un papillon de mai.

 

Je ne puis plus, baigné de vos langueurs, 6 lames, Enlever leur sillage aux porteurs de cotons, Ni traverser l'orgueil des drapeaux et des flammes, Ni nager sous les yeux horribles des pontons. 

 

ARTHUR RIMBAUD (1854-1801)

 

 

 

O barco bêbado

 

 

Tradução de AUGUSTO DE CAMPOS

 

 

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

 

Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

 

Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
Viam turbilhonar marés de verde e anil.

 

0 vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!

 

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.

 

Então eu mergulhei nas águas do Poema
Do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes — dilema
Lívido — um afogado afunda lentamente;

 

Onde, tingindo azulidades com quebrantos
E ritmos lentos sob o rutilante albor,

Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,
Fermentam de amargura as rubéolas do amor!

 

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,
Ressacas e marés: conheço o entardecer,
À Aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

 

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Iluminando os longos túmulos glaciais;
Como atrizes senis em palcos cabalísticos.
Ondas rolando ao longe os frémitos de umbrais!

 

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

 

Por meses eu segui, tropel de vacarias
Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias!

 

Cheguei a visitar as Elóridas perdidas
Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.

 

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas
Onde apodrecem Leviatãs distantes!
0 desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

 

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!
Naufrágios abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

 

Ah! se as crianças vissem o dourar das ondas.
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
— As espumas em flor ninaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

 

Mártir de poios e de zonas misteriosas,
0 mar a soluçar cobria os meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
E eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

 

Quase ilha a balouçar entre borras e brados
De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.

 

Mas eu, barco perdido em baías e danças,

Lançado no ar sem pássaros pela torrente,

De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de água ardente;

 

Livre, fumando em meio às virações inquietas.
Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Liquens de sol e vómitos de azul escuro;

 

Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas
O céu ultramarino e seus funis de bruma;

 

Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,
0 cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris,
Fiandeiro sem fim dos rnarasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!

 

Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas

Que o delírio dos céus desvela ao viajor:

— É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,

Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

 

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!

Toda lua é cruel e todo sol, engano:

0 amargo amor opiou de ócios minhas horas.

Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

 

Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
Trêmulo como a asa de uma borboleta.

 

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

 

 

 

O barco ébrio

                   

Tradução de IVO  BARROSO

 

Como descesse ao léu nos Rios impassíveis,
Não me sentia mais atado aos sirgadores;
Tomaram-nos por alvo os índios irascíveis,
Depois de atá-los nus em postes multicores.

 

Estava indiferente às minhas equipagens,
Fossem trigo flamengo ou algodão inglês.
Quando morreu com a gente a grita dos selvagens,
Pelos Rios segui, liberto desta vez.

 

No iroso marulhar dessa maré revolta,

Eu, que mais lerdo fui que o cérebro de infantes,

Corria agora! e nem Penínsulas à solta

Sofreram convulsões que fossem mais triunfantes.

 

A borrasca abençoou minhas manhãs marítimas.
Como uma rolha andei das vagas nos lençóis
Que dizem transportar eternamente as vítimas,
Dez noites sem lembrar o olho mau dos faróis!

 

Mais doce que ao menino os frutos não maduros,
A água verde entranhou-se em meu madeiro, e então
De azuis manchas de vinho e vômitos escuros
Lavou-me, dispersando a fateixa e o timão.

 

Eis que a partir daí eu me banhei no Poema
Do Mar que, latescente e infuso de astros, traga
O verde-azul, por onde, aparição extrema
E lívida, um cadáver pensativo vaga;

 

Onde, tingindo em cheio a colcha azulecida,
Sob as rutilações do dia em estertor,
Maior que a inspiração, mais forte que a bebida,
Fermenta esse amargoso enrubescer do amor.

 

Sei de céus a estourar de relâmpagos, trombas,
Ressacas e marés; eu sei do entardecer,
Da Aurora a crepitar como um bando de pombas,
E vi alguma vez o que o homem pensou ver!

 

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Para se iluminar de coagulações cianas,
E como um velho ator de dramas inartísticos
As ondas a rolar quais trêmulas persianas!

 

Sonhei com a noite verde em neves infinitas,
Beijo a subir do mar aos olhos com langores,
Toda a circulação das seivas inauditas
E a explosão auriazul dos fósforos cantores!

 

Segui, meses a fio, iguais a vacarias
Histéricas, a vaga a avançar nos rochedos,
Sem cogitar que os pés piedosos das Marias
Pudessem forcejar a fauce aos Mares tredos!

 

Bati, ficai sabendo, em Flóridas perdidas

Ante os olhos em flor de feras disfarçadas

De homens! Eu vi abrir-se o arco-íris como bridas

Refreando, no horizonte, às gláucicas manadas!

 

E vi o fermentar de enormes charcos, ansas
Onde apodrece, nos juncais, um Leviatã!
E catadupas dágua em meio das bonanças;
Longes cataratando em golfos de titãs!

 

Geleiras, sóis de prata, os bráseos céus! Abrolhos
Onde encalhes fatais fervilham de esqueletos;
Serpentes colossais devoradas de piolhos
A tombar dos cipós com seus perfumes prelos!

 

Bem quisera mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, peixes de ouro, esses peixes cantantes.
 

— A espuma em flor berçou-me à saída de enseadas
E inefável o vento alçou-me por instantes.

 

Mártir que se cansou das zonas perigosas,
Aos soluços do mar em balouços parelhos,
Vi-o erguer para mim negra flor de ventosas
E ali fiquei qual fosse uma mulher de joelhos...

 

Quase ilha, a sacudir das bordas as arruaças
E o excremento a tombar dos pássaros burlões,
Vogava a ver passar, entre as cordagens lassas,
Afogados dormindo a descer aos recuões!...

 

Ora eu, barco perdido entre as comas das ansas,
Jogado por tufões no éter de aves ausentes,
Sem ter um Monitor ou veleiro das Hansas
Que pescasse a carcaça, ébria de água, à corrente;

 

Livre, a fumar, surgindo entre as brumas violetas,
Eu que rasguei os rúbeos céus qual muro hostil
Que ostentasse, iguaria invulgar aos bons poetas,
Os líquenes do sol e as excreções do anil;

 

Que ia, de lúnulas elétricas manchado,
Prancha doida, a arrastar hipocampos servis,
Quando o verão baixava a golpes de cajado
0 céu ultramarino em árdegos funis.

 

Que tremia, de ouvir, a distâncias incríveis,
0 cio dos Behemots e os Maelstroms suspeitos,
Eterno tecelão de azuis inamovíveis,
Da Europa eu desejava os velhos parapeitos!

 

Vislumbrei siderais arquipélagos! ilhas

De delirantes céus se abrindo ao vogador:

— Nessas noites sem fundo é que dormes e brilhas,

0 Milhão de aves de ouro, õ futuro Vigor? —

 

Certo, chorei demais! As albas são cruciantes.
Amargo é todo sol e atroz é todo luar!
Agre amor embebeu-me em torpores ebriantes:
Que minha quilha estale! e que eu jaza no mar!

 

Se há na Europa uma água a que eu aspire, é a mansa,
Fria e escura poça, ao crepúsculo em desmaio,
A que um menino chega e tristemente lança
Um barco frágil como a borboleta em maio.

 

Não posso mais, banhado em teu langor, ó vagas,
À esteira perseguir dos barcos de algodões,
Nem fender a altivez das flâmulas pressagas,
Nem vogar sob a vista horrível dos pontões.

 

 

 

O barco bêbado

 

              TRADUÇÃO DE AFONSO HENRIQUES NETO

 

 

E como descesse pelos Rios impassíveis,
Não me sentia mais guiado por meus sirgadores;
índios aos berros os flecharam, terríveis,
Após pregá-los nus em postes multicores.

 

Eu era indiferente às minhas equipagens,
Trigo flamengo e fardos de algodão inglês.
Ao findarem os sirgadores e os gritos selvagens,
Os Rios me deixaram ir onde quis, bem vês.

 

No marulhar furioso das marés geladas,
Eu, outro inverno, mais surdo que os recém-nascidos,
Corri! E com as Penínsulas desamarradas
Seguiam triunfantes repelões enlouquecidos.

 

A tempestade abençoou as manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha dancei sobre o mar,
Esse antigo embalador das eternas vítimas,
Dez noites, sem dos faróis idiotas lamentar!

 

A água verde infiltrou-se em meu casco de pinho,
Doce como às crianças maçãs parecem creme,
E das manchas de vômito e do azul do vinho
Me lavou, libertando-me de âncora e leme.

 

E desde então me banhei no Poema do Mar,
Infuso de astros, lactescente, devorando
Verdes azuis; por onde, pálido flutuar,
Um afogado pensativo vai vagando;

 

E onde, tingindo súbito azul com os lentos
Ritmos, delírios sob lucilações do alvor,
Mais fortes que todo o álcool, maiores que inventos,
Fermentam amargas vermelhidões do amor!

 

Sei dos céus crivados de clarões, e das trombas,
Ressacas e correntezas: sei o entardecer,
A Aurora exaltada qual revoada de pombas,
E por vezes vi o que o homem acreditou ver!

 

Vi o sol baixar, sujo de místicos horrores,
Refulgindo coagulações violáceas, finas,
E como no drama antigo os velhos atores,
Ondas a rolar, longe, um tremor de cortinas!

 

Sonhei a noite esverdeada em neves estelares,
Beijos subindo aos olhos do mar, vagarosos,
Total circulação das seivas singulares,
Despertar ouro e azul dos fósforos sonoros!

 

Persegui por meses, iguais a vacarias
Histéricas, vagas contra areais em pânico.
Sem sonhar que os luminosos pés das Marias
Tanto forçassem o arfante focinho Oceânico!

 

Visitei, acreditai, Flóridas desmedidas,
Às flores mesclando olhos de bichos estranhos
Com peles de homens! E arco-íris como bridas
Freando no horizonte do mar glaucos rebanhos!

 

Eu vi fermentarem charcos enormes, ansas
Por onde apodrecem Leviatãs gigantes!
Tantas explosões de água no meio das bonanças,
E os longes no caos de abismos cataratantes!

 

Geleiras, sóis de prata, céus em brasa, abertos
Golfos para terríveis naufrágios sem lumes!
Serpentes imensas roídas por insetos
A tombar de árvores com seus negros perfumes!

 

Desejara mostrar às crianças as douradas
Da onda azul, os peixes de ouro, peixes cantantes.
— A espuma em flor ritmava minha jornada.
Inefáveis ventos me alavam por instantes.

 

Mártir exausto dessas zonas perigosas,
0 mar em soluços e balanços vermelhos
Subia até mim com flores de sombra e ventosas,
E eu ficava, igual a uma mulher, de joelhos...

 

Quase ilha, sacudo das minhas bordas, ágil,
Brados e bostas de aves de olhos de açafrão.
E sigo a ver passar, entre o cordame frágil.
Afogados a dormir, indo em contramão!

 

Eu, barco perdido nos cabelos das ansas,
Jogado por tufões no ar de aves esquecidas,
Sem ter Monitores ou veleiros das Hansas
Que pescassem a ébria carcaça ensandecida;

 

Livre, fumando, vindo de brumas violetas,
Eu que perfurava o céu roxo qual um muro
Que então portasse, nobre manjar aos bons poetas.
Liquens de sol e secreções do azid mais puro;
 

Prancha doida, suja de lúnulas elétricas,
Seguida por negros hipocampos em jogo,
Quando o verão tombava em golpes e faíscas
De céus ultramarinos por funis de fogo;
 

Que tremia, escutando na distância infernal
0 cio dos Behemots e dos Maelstroms perfeitos,
Tecelão eterno de fixo azul sem igual,
Da Europa eu ansiava pelos velhos parapeitos!

 

Eu vi os arquipélagos siderais! e as ilhas
Cujos céus delirantes se abrem ao viajor:
— Em noites sem fundo é que dormes e te exilas,
Milhão de pássaros de ouro, ó futuro Vigor?

 

Mas, muito chorei! As Auroras são cruciantes.
Toda lua é atroz e todo sol amargo:
Acre amor me inflou de torpores inebriantes.
Ah! que a quilha se quebre! e que eu me perca ao largo!

 

Se da Europa desejo uma água, é o charco
Negro e frio onde, nesse crepúsculo em desmaio. Um menino, agachado e triste, lança um barco
Tão frágil quanto uma borboleta de maio.

 

Nesse langor, ó vagas, não posso as esteiras
Arrebatar das barcaças cheias de algodões,
Nem romper a altivez dos pendões e bandeiras,
Nem navegar sob o olhar torvo dos pontões.

 

Eu, barco perdido nos cabelos das ansas,
Jogado por tufões no ar de aves esquecidas,
Sem ter Monitores ou veleiros das Hansas
Que pescassem a ébria carcaça ensandecida;

 

Livre, fumando, vindo de brumas violetas,
Eu que perfurava o céu roxo qual um muro
Que então portasse, nobre manjar aos bons poetas.
Liquens de sol e secreções do azid mais puro;

 

Prancha doida, suja de lúnulas elétricas, Seguida por negros hipocampos em jogo, Quando o verão tombava em golpes e faíscas De céus ultramarinos por funis de fogo;

 

Que tremia, escutando na distância infernal
0 cio dos Behemots e dos Maelstroms perfeitos,
Tecelão eterno de fixo azul sem igual,
Da Europa eu ansiava pelos velhos parapeitos!

 

Eu vi os arquipélagos siderais! e as ilhas
Cujos céus delirantes se abrem ao viajor:
— Em noites sem fundo é que dormes e te exilas,
Milhão de pássaros de ouro, ó futuro Vigor?

 

Mas, muito chorei! As Auroras são cruciantes.
Toda lua é atroz e todo sol amargo:
Acre amor me inflou de torpores inebriantes.
Ah! que a quilha se quebre! e que eu me perca ao largo!

 

Se da Europa desejo uma água, é o charco
Negro e frio onde, nesse crepúsculo em desmaio. Um menino, agachado e triste, lança um barco
Tão frágil quanto uma borboleta de maio.

 

Nesse langor, ó vagas, não posso as esteiras
Arrebatar das barcaças cheias de algodões,
Nem romper a altivez dos pendões e bandeiras,
Nem navegar sob o olhar torvo dos pontões.

 

 

 

 

 

 

31 POETAS, 214 POEMAS.  DO RIGVEDA A APOLLINAIRE. Uma antologia pessoal de poemas traduzidos, com notas e comentários de Décio Pignatari.  Capa: Silvia Massaro.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996.  132 p.    Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

 

        AS CATADORAS DE PIOLHOS

      
Chega o ciclone rubro à cabeça, implora,
        A enxames brancos de seus sonhos vagos, mãos
        De unhas cor de prata e, logo, duas irmãs
        Surgem à cabeceira, grandes, sem demora.

        Conduzem-no a sentar-se a uma janela imensa
        Por onde um ar azul invade um caos de flores.
        Passeiam dedos finos, tetros, sedutores,
        Por seus cabelos-chumbo que o orvalho adensa.

        Ove cantar seus hálitos, os quais, de medo,
        Colorem-se de méis rosados vegetais,
        Que silvos de saliva cortam, muito cedo
        Retidos sob a língua — são beijos-aspirais.

        Um lento ciliciar de cílios silencia
        Perfumes. Seus dedos elétricos, docinhos,
        Obrigam crepitar, sob a cinza macia
        Das unhas nobres, o morrer dos piolhinhos.

        E sobe-lhe à cabeça o vinho da Preguiça;
        Em sopros de delírio, um suspirar de gaita
        Alia-se ao rascar das unhas, e este atiça
        Um choro sobe-e-desce, um choro que não sai...

 

 

RIMBAUD, Arthur.  Rimbaud Livre. Introdução e traduções de Augusto de Campos.  Com “ilustrações” computadorizadas de Augusto de Campos & Arnaldo Antunes. 2ª. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.  88 p.     Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

 

    Ó SAISONS, Ó CHÂTEAUX

      
Ó saisons, oh châteaux
       Quelle âme est sans défauts?

       Ó saisons, ó châteaux,

       J´ai fait la magique étude
       Du Bonheur, que nul n´étude.

       Ó vive lui, chaque fois
       Que chante  sons coq gaulois.

       Mais! je n´aurai plus d´envie,
       Il s´est charge de m avie.

      
Ce Charme! Il prit âme et corps,
       Et dispersa tous efforts.

       Que comprendre à ma parole?
       Il fait qu´ell fuie et vole!




            
CASTELOS, ESTAÇÕES

             Castelos, estações
             Que alma é sem senões?

            
Castelos, estações.

             Eu fiz o mágico estudo
             Da Felicidade, eis tudo.

            
Que eu possa ouvir outra vez
             Cantar seu galo gaulês.

             Desejos? Dores?  Olvida.
             Ela é a luz da minha vida.

             O Encanto entrou em minha alma.
             Doravante tudo é calma.

             O que esperar do meu verso?
             Que voe pelo universo.

*

Página ampliada e republicada em agosto de 2023

 

 

Página publicada em dezembro de 2017; ampliada e republicada em janeiro de 2018; ampliada em agosto de 2018; ampliada em agosto de 2020

 


 

 

 
 
 
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