CASSIANO RICARDO
(Texto interpretativo extraído de José FERNANDES: O Poema visual – Leitura do imaginário esotérico (Da antiguidade ao século XX) Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p. 110-114)
“Primeiramente, observamos que o poema se conforma a um círculo, anunciando a perfeição a que chegaram a técnica e a o progresso, estampados na evolução da indústria e da pilotagem de naves espaciais. Examinando as palavras que o circundam e que o amoldam, verificamos que , a despeito de as semias se prenderem à perfeição e à harmonia, todas as direções sígnicas e simbólicas apontam para uma semântica invertida, peculiar à ironia e ao humor. Nos rastros da ironia, podemos começar pela base mais extensa, moldada pelo período os que vão nascer te saúdam. De imediato, percebemos que este período intertextualiza a saudação que os gladiadores romanos dirigiam ao imperador: Ave, Caesar, morituri te salutant. Não obstante o poeta haver substituído os que vão morrer por os que vão nascer, está evidenciando, mediante os caprichos da ironia, que compreendem a ambigüidade e, às vezes, a inadequação das semias, o significado da morte. Se não, vejamos.
A seqüência verbal que encima o bloco à esquerda do círculo, ave bela ave, pode ser interpretada de formas diversas. O vocábulo ave, sem qualquer esforço hermenêutico, parace jungido à semia de saudação, mormente se conjugado com o segundo ave, que encerra a acepção de pássaro. Neste caso, teríamos uma saudação à bela ave, à cápsula espacial, ou ao próprio Gagárin, à medida que esta palavra russa significa pato*; portanto, ave. Mesmo não havendo registro nos dicionários, a interjeição ave é empregada também como expressão de surpresa, de estupefação. É evidente que a construtura sêmica do poema permite todas as interpretações, máxime se considerarmos que a ambigüidade recai também sobre o substantivo-adjetivo bela. Ao procedermos a correlação entre o exterior e o interior, ave bélica, verificamos que, em essência, a nave, ale de bonite, é guerreira, e bela, mesmo na parte externa, encobre certo hibridismo lingüístico, recobrindo, a um só tempo, beleza e guerra, bellum. Nestas circunstâncias, a interjeição ave, de ave bela, propende mais para assombro e perplexidade que para homenagem ou cumprimento:
GAGÁRIN
|
Passando à parte superior do círculo-nave-poema, notamos que a ironia se adensa, pois os símbolos, mesmo encerrando maior hermetismo, permitem que os significados de guerra se confirmem. Neste ponto, o vocábulo ave tem diminuída a acepção afecta a pássaro, tendendo quase exclusivamente para a expressão saudatória ou de espanto perante o imponderável. Por sua vez, o ermo belonave, afora estender-se à beleza e à guerra, pode incorporar a sílaba na, de nave, compondo a palavra belona, extremamente significativa na conjuntura sígnica e simbólica do poema. Belona figura na mitologia grega como a deusa que preparava o carro e os cavalos de Marte, quando ele partia para a guerra. Mostrava-se nas batalhas com o semblante formidável, cabelos esparsos, uma tocha numa mão e um látego na outra, com o qual fazia retumbar o ar(...) Apresentava-se, em geral, armada dos pés à cabeça,de lança em punho.** A inserção da deusa no contexto vem confirmar a proposta que estamos sustentando: o vocábulo belo, antes de ligar-se à beleza e à magnificência da nave, constitui instrumento de voraz destruição. Belona, assim entendida, não firma apenas um jogo fônico-vocabular, mas consuma a semântica de guerra e de perfeição, porque, ao mesmo tempo, nave de Belona e uma nave bela, nomeadamente se considerarmos todos os atributos da deusa: formosura e ferocidade.
Neste jogo em que figuram, antes de tudo, as semias do avesso, a reiteração, desde dentro, da palavra belo, em vez de assinalar a proclamação de delirante harmonia e máxima expressão da criatividade humana, revela-se, na verdade, como incitação à luta, como faziam os antigos exércitos grego e romano, ao responderem ao desafio do comandante: bellum! bellum! É evidente que, nas circunstâncias estéticas e históricas do texto, a dualidade sêmica é inevitável. Aproximando-se mais do óbvio, ou seja, de significações denotativas, podemos admitir que se trata de uma dupla manifestação de deslumbramento perante a engenhosidade do aparelho: belo belo.
Seguindo esta postura hermenêutica, verificamos que as palavras que encimam o bloco, à direita, uma bela nave, não enunciam unicamente admiração face o maravilhoso como se era de esperar. Uma bela nave é um desdobramento fônico-semântico de belonave, vindo a (re)compor o significado de nave bélica. È claro que não podemos nos esquecer do sentido conotativo, uma vez que ele, no contexto geral, também se transforma em denotativo, porque revela um extraordinário acontecimento, capaz de elevar o homem ao engenho dos deuses. Entanto, o que se sobressai é a inadequação semântica. A palavra astronave, na significação de dentro e considerando que o poeta joga com o passado e com o presente, afora nomear um veículo hipermoderno, resultado da imensa capacidade criadora do homem, traduz-se, no subsolo da linguagem, como a nave do astro, isto é, a nave de Astreu, Titã que declara guerra a Júpiter e é derrotado, vindo a transformar-se em astro.***
Ao sobrepor as palavras e os significados, o poeta faz com que a controversa semântica se deposite, inclusive, no centro do discurso, notadamente na palavra pato. Colocada quase no centro do poema, ela passa a conjugar imagens que absorvem e refletem as polissemias que perpassam o texto. A conjugação de imagens possibilita a simbiose da nave com outros instrumentos de destruição, uma vez que pato selvagem era o código de identificação dos aviões de combate utilizado durante a Segunda Guerra Mundial, além da perfeita interação do pássaro-avião-nave com o próprio piloto, que carrega no nome as propriedade semânticas de ave. A adição do qualitativo selvagem ao vocábulo pato fá-lo incorporar, em todas as acepções, as semias de sanguinolência, de feridade. Diante desta situação, o termo ave volta a mesclar todas as ambigüidades da palavra colocada na periferia do poema-nave, pois seu papel não é instaurar equilíbrio, mas confirmá-lo, como podemos averiguar pelo simples posicionamento quase no centro. Esta posição se reveste de importância ímpar, porque ratifica o movimento da unidade para a multiplicidade, característica deste poema.
Se não bastassem os significados amplo e avesso das palavras, o poeta joga ainda com os simbolismos da mandala, dispondo os blocos de maneira a formar um círculo, que visualiza a roda da fortuna. Começando pelo círculo, observamos que as palavras que o compõem, não obstante aparentarem uniformidade, contradizem a perfeição que lhe é pertinente, uma vez que três blocos são formados por duas linhas e um, por uma única linha. A despeito de o quarto bloco apresentar-se mais extenso, deixa ele entrever certo desequilíbrio que, tanto no círculo, quanto na roda da fortuna, corrobora a semia de imperfeição, porque formado por uma única linha e por um maior número de palavras. Mas a evidência da imperfeição é, conseguintemente, da ironia que subjaz nos interstícios do discurso, advém da divisão do círuclo em quatro partes distintas. Ora, o círculo se caracteriza pela indivisibilidade; dividi-lo é ceifar suas propriedades, é deixar patente a destinação suspeita por que se pautam as conquistas espaciais.
A imperfeição que domina toda a construtura orgânica e semântica do poema é confirmada, também, pela semelhança formal com a roda. A roda, embora sugerindo as qualidades inerentes ao círculo, carrega certa dose de inacabamento, de contingência e de perecibilidade, justamente por relacionar-se com o mundo futuro, intrínseco à nave espacial e, mormente, aos feitos humanos, sempre apensos ao desar, como a marcar os seus limites. Além disso, ao constituir a expressão do processo circulatório, o circlatio, a roda se coliga ao movimento de ascensão e de descensão.**** Deste modo, a configuração do poema seria a materialização do máximo e do mínimo que sempre estigmatizaram as atividades humanas.
A disposição visual do poema, interligando o círculo à roda, e da fortuna, confere, de imediato, limitações que não permitem à belonave restringir-se ao campo semântico da beleza. A roda da fortuna conjuga-se às vicissitudes do mundo. Nada mais ambíguo no contexto técnico-científico, que a conquista do espaço, assinalada, a um só tempo, pelo avanço de mecanismos de condução do homem a viagens interplanetárias e por domínios que podem se estender a atividades bélicas. Assim, a nave, como a roda da fortuna, representa as alternâncias da sorte, a chance ou o revés, as flutuações, a ascensão e os riscos de queda*****, conforme as disposições dos raios de discernimento ou de insensatez e segundo as permutações do belo e do bellum.
Consoante a análise que vimos desenvolvendo, não é sem fortes razoes que o poema se divide em quatro partes. Primeiramente, ao ligar-se à universalidade, o número quatro proporciona a verdadeira dimensão da belonave, tanto no que se refere às aplicabilidades práticas — viagens interplanetárias, domínio técnico-científico e, marcadamente, domínio bélico —, quanto à ratificação das potencialidades de engenho do ser humano, capaz de transformar até mesmo as noções de belo artístico. A presença do quaternário na construtura do poema insufla-se inusitado efeito visual e confere-lhe incomensurável densidade sêmica, porque resulta inigualável, para exprimir a ambigüidade, a polissignificação crescente: belo, bélico, belonave, astronave.
É certamente segundo a polissemia do quatro que nos sentimos autorizado a dizer que todas as palavras do poema exercem uma semântica às avessas. É sob este prisma que as duas palavras que cortam o círculo verticalmente sintetizam toda a simbologia do poema. Se o quaternário concentra oposição irredutível e permanente entre ser e não-ser******, o poeta, ao contrapor belonave e nascer, reproduz a saudação dos gladiadores: os que vão morrer te saúdam. Gagárin, assim entendido, longe de revelar uma postura ufanista perante o progresso, deixa patente uma visão pessimista, como aquela já manifesta pelos poetas expressionistas, pois os que vão nascer, ao nascerem sob o signo da guerra, nascerão para a morte.
*Cf. MACHADO, J. P. Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1984. p. 683
**SPALDING, T. O. Dicionário de mitologia. Belo Horizonte: Itatiaia,1965. p. 40
***Idem, p. 32
****Cf.JUNG, C. G. Psicología y alquimia. Buenos Aires: Santiago Rueda, 1943. p. 180
*****CHEVALIER, J. & GHERRRANDT, A. Diccionaire dês symboles. Paris: Robert Lafont; Jupiter, 1982, p. 830
*****Cf, ALLENDY, D. R. Le symbolisme des nombres. Paris: Chacornac Frères, 1984). p. 71-72
|