ANTONIO MIRANDA
ORAÇÃO
ORAÇÃO
por JOSÉ FERNANDES in
*Extraído de FERNANDES, José. Poesia e ciberpoesia: Leitura de poemas de Antonio Miranda. Goiânia, GO: Editora Kelps, 2011. 172 p. ISBN 978-85-400-0216-6
Ao incrustar as palavras em um livro de pedra, sustentado e indicado por mão de pedra, fica clara a determinação dos princípios por que as orações devem pautar-se, uma vez que a pedra é o símbolo do permanente. Mas, se considerarmos que a inscrição hora sim hora não determina um intervalo em que se não ora, o texto resvala para a ironia, como a dizer que só se ora, quando se sente necessidade e, portanto, o ato de orar deixar de ser obrigação para se converter em uma espécie de troca: reza-se para se obter algum favor da divindade.
A alternância das horas pode apontar também para uma ironia; rígidas regras a que determinados religiosos tem-tinham de seguir, como determinava, por exemplo, Santo Inácio de Loiola, fundador dos jesuítas que afirmava: Acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da igreja assim o tiver determinado. Essa capacidade de o religioso perder a identidade do pensamento, considerando que oração transmite a noção de impotência, também é legível no silêncio eloquente da afirmação e da negação.
Outra leitura possível seria vermos na oração a própria conformação do estilo poético verbivocovisual, extremamente estrutural, despojado e sóbrio, como a vida religiosa; mas que, em decorrência de sua arquitetura, assemelha-se aos ofícios dos monges e à arte das igrejas, mosteiros e catedrais, à medida que, na sobriedade da condensação de signos e símbolos, oculta e revela o Sublime. Assim, a expressão hora sim hora não seria a matéria do esconder-se e do mostrar-se, como ocorre aos espíritos do bem e do mal às horas abertas e fechadas e ao mistério de se transubstanciar em pão e vinho.
Assim, entendido, o ato de orar marcaria, religiosamente, um momento de ultrapassagem do humano, à medida que o súplice se eleva ao divino no momento da oração. Porém, em decorrência de sua humanidade, retoma à sua condição de miséria e de limites. Por isso, hora sim hora não. Do mesmo modo, a oração no sentido de criação literária também revelaria instantes de divindade e de humanidade, uma vez que a arte expressa o sublime do humano; mas também pode revelar suas imperfeições, porquanto constitui uma forma de o artista ultrapassar-se, uma forma de o artista ressuscitar-se ininterruptamente e vencer o tempo, como bem o caracteriza Fernando Aguiar, em sua concepção a que denomina O contrário do tempo: hora sim hora não.
Esta interpretação evidencia-se, quando verificamos que o texto se incrusta em pedra, como a materializar a elevação do espírito de quem ora, mesmo sendo hora sim hora não, e a perenidade do texto poético, que exercita um duplo movimento de ascensão e de descensão, à medida que ele sacraliza e des-sacraliza a pronúncia primeira do faça-se. Por este motivo, hora sim hora não.
No campo da metalinguagem, ainda podemos ler no livro posto na mão da estátua as transformações por que passa o fazer estético ao longo dos tempos e os necessários artifícios de que o artista tem de valer-se para esculpir os novos estilos artísticos. Assim, interpretado, a expressão hora sim hora não, que se lhe incrusta, materializa a mobilidade impressa ao espírito bustrofédico de que as artes contemporâneas são caudatárias, à medida que os estilos estão sempre em movimento de ir-e-vir, semp abrindo e fechando sulcos na linguagem e, por isso, sempre sendo e ní sendo: horas sim e horas não de arte.
O movimento bustrofédico do moderno, em que as formas e fôrmas se sucedem em ritmo sistólico e diastólico no tempo, envob verdadeiras metamorfoses, entendidas naquele sentido de atualizações ( velho sob novas imagens, na criação de um mesmo poeta, como se e operasse a intertextualidade da própria obra. O poema Oração constitui- um exemplar deste processo na poesia de Antonio Miranda, pois retoma na edição de Artefício artefacto, de 2010, inteiramente outro, sob a fôrma de um hakai. A troca do substantivo hora, que a despeito da semelhança fônica com o verbo orar, sugeria ambiguidade temporal; agora, conforma-se ao verbo, em sua forma imperativa, mais que indicativa, com o significai de súplica à divindade; mas, notadamente com seu sentido etimológico de falar, dizer, pronunciar uma fórmula ritual, uma prece, um discurso.
A oração, no sentido de falar, relacionada à composição do poema
estende-se aos momentos de revelação; mas, sobretudo, aos instantes de silêncio, que pode se correlacionar com a solidão e, sobretudo, com o não- dito, com a ambiguidade do texto, ao revelar-se para esconder e ao esconder para revelar. Consoante essa perspectiva, o significado de pronunciar uma fórmula ritual também se aplica ao poema, à medida que a pronúncia do verbo, no discurso poético, obedece ao ritual realmente mágico, porquanto a palavra assume exatamente as dimensões do orar, naquela acepção e que o poeta tangencia o mistério:
ORAÇÃO
ORA
S I M
ORA
NÃO
O ritual da pronúncia, não sendo continuado, exige também o imperativo ORA NÃO, a fim de o poeta pensar o criado, perquirir a palavra, para inseri-la no sublime, no transcendente. Daí a leitura do vocábulo prece, uma vez que o poema é a oração, o discurso e a homilia do evangelho poético para, mediante o rito da palavra, instituir o estético, que é a tran-substanciação do ser na verdade revelada em linguagem.
Se iniciarmos a leitura do poema pela direita, encontramos a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo arar: ARO. Ela nos aponta para uma leitura anagramática e bustrofédica que carrega aquele sentido grego impresso ao poema analisado ao início deste capítulo, em que o poeta compara a composição ao leito do rio, e, deste modo, lemos ARO SIM ARO NÃO. Essa interpretação nos leva à verificação de que o ato de arar refere-se ao preparo exigido ao poeta para sulcar a língua com seu mar de palavras, a fim de navegar na superfície e na profundidade do discurso. A expressão ARO NÃO, nesta interpretação, assinalaria o momento do descanso, em que o poema exercita sua função de crescer e produzir, mediante o campo semântico e as isotopias linguísticas, e o poeta possa empreender uma farta colheita, porquanto lavrou a palavra consoante as normas dos campos semântico e estético do discurso artístico.
A leitura das letras que compõem o verbo ORA também nos leva ao sentido de arar e lavrar, uma vez que o fonema [O], em seu simbolismo profundo de olho e fonte, traduz a essência mesma do ato de arar a terra e, mormente, a palavra. Enquanto o olho confere à letra o significado de profundidade interior, imprescindível à revelação, à epifania do ser lírico, a fonte, ao trazer a essência das profundezas da terra, estabelece estreita ligação com o ato de criar, porquanto implica arrancar a palavra de seu estado de inércia e colocá-la na dimensão do criado; mas mediante o olhar do divino e do sublime. Do mesmo modo, o ato de ler tem implicações com a fonte e com o olho, pois a percepção total do significado só se conquista mediante mergulho na construtura plena do discurso estético.
Por sua vez, a letra [R], ao significar começo, no sentido de pronúncia primeira, também se correlaciona com o verbo arar, ação imprescindível ao plantio e, por analogia, necessária à elaboração do texto artístico. Já a letra [A] final fecha o ORA, agora verbo e substantivo, pois se conforma à semântica de criar, como se fosse o nascimento, e ao círculo, a marcar o eterno retomo, ao eterno criar-se através da palavra, pois essa letra contém o começo e o fim, o fim e o começo. Além disso, como o ato de criar também se liga ao verbo esposar, como simbolismo da letra [A[ sugere ainda uma relação erótica que se estabelece entre o ser lírico e a poesia, pois fazer e criar implicam a existência do amor, entendido como ação imprescindível ao fazer poético ποιεσις.
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