O Barroco: Exemplo para a Vanguarda
[uma introdução ao poema de Anastacyo Ayres Penhafiel]
Jayro Luna
Doutor em Literatura Portuguesa (USP)
O Barroco por suas características relacionadas ao trabalho de invenção e pesquisa da forma, voltando-se, em muitos casos, para o aproveitamento espacial da página, tem servido de ponto de referência para muitos experimentos poéticos contemporâneos. Além deste aspecto espacial do barroco, a própria atitude barroquista de entender a obra de arte como um engenho, um artifício, criando assim uma relação lúdica entre autor, obra e público, é outro ponto de forte marca que tem levado estudiosos contemporâneos a reestudar essa época, até então tida apenas como um momento nebuloso marcado pela postura da contra-reforrna religiosa, e por isso mesmo, considerado por alguns críticos como uma época retrógrada e comprometida ideologicamente com uma postura artística envolvida com a supressão da liberdade, visão que os estudos mais recentes e profundos sobre essa época modificaram, principalmente a partir de trabalhos como o de Wolfflin, Walter Benjamim, entre outros, alguns dos pioneiros nessa reavaliação.
No caso que nos interessa, a visão barroca de que a obra pode ser o resultado de um produto probabilístico ou estatístico da ocorrência de signos, cabendo ao artista uma tarefa de controlador do fluxo dessa ocorrêncía, parece ser possível. Para considerar a existência de tal visão, ou algo parecido a isso, pensamos em poemas como o do enigmático Anastacyo Ayres de Penhafiel, do barroco baiano, com seu "Labirinto Cúbico”.
A frase latina "In Utroque Cesar", traduzÍvel como "há um outro césar" ou "de ambos os lados um césar", é um poema aparentemente laudatório ao então vice-rei do Brasil, Vasco César de Menezes. Observa Péricles Eugênio da Silva Ramos, que é possível ler a frase completa, partindo-se de cada "I", fazendo viradas para a esquerda ou direita, para cima ou para baixo, conforme o caso. Comentando produções barrocas como esta, que particularmente para Alfonso Ávila é um exemplo de poema em que prevalece o elemento "gráfico, este de graficidade mais despojada e concreta", para Ávila o Barroco tema característica de ser uma época em que O elemento lúdico assume posturas de jogo do aleatório.
"A esse processo lúdico de encadeamento, seja de formas plásticas. seja de palavras, não soaria imprópria a classificação de sintaxe do aleatório ou estruturação do arbitrário. A 'mistura arbitrária das coisas', referida por Leo Spitzer, explicar-se-ia, deste modo, como um exemplo a mais dentre tantos outros daquele multifário usar bem do jogo da linguagem barroca."(Á VILA, Affonso. O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, p.57)
Se atentarmos para o poema, ele se baseia na junção de dois triângulos, cuja hipotenusa comum aos dois triângulos retângulos é a diagonal do quadrado que forma o poema, ou seja, a seqüência formada pela letra "I". Assim, teremos junto ao ângulo reto do triângulo inferior, e portanto, mais a "oriente" do meio da página, o nome de “César" lido em variações diversas, mas todas, partindo de uma leitura invertida do nome, isto é ao contrário, ou da direita para a esquerda. Já :no triângulo retângulo superior, junto ao ângulo reto deste, temos as mesmas variações com o nome de "César" só que agora na ordem natural de nossa leitura, da esquerda para a direita. Numa analogia dos dois “césares” sugeridos no poema - o César, imperador de Roma; o César, vice-rei do Brasil no inicio do século XVIII - estão aí dispostos como se o poema fosse uma reprodução geométrica do globo, veja lá, Roma no alto à direita; Salvador, em baixo à esquerda. Por outro lado, o fato dos nomes serem lidos em direções opostas, pode ser interpretado também como uma sutil "alfinetada" no despropósito da comparação entre o "imperador de Roma" e o "conde de Sabugosa". Observemos ainda, que dominando a região central do poema, podemos ler radicais latinos relacionados com a idéia de órbita, como "ortuni". Como um verdadeiro labirinto, esse poema tem cada letra colocada em um lugar específico, conhecendo a disposição do poema como sendo formado pelos dois referidos triângulos, a ausência de qualquer letra, pode facilmente ser suprida, ou seja, é um poema que basta uma parte para que se possa recompô-lo integralmente, um controle estocástico dos mais efetivos. Um poema muito próximo, pois, do que ocorre com a geometria fractal, no qual, seguindo uma equação repetitiva, constrói-se uma seqüência de variações sobre o mesmo tema, a diferença está, evidentemente no geometrismo absoluto do poema.
Ana Hatherly comentando sobre a poesia barroca portuguesa observa que ela tem experimentos muito próximos das vanguardas poéticas:
'"'Na segunda metade do século XX, os poetas Concreto-experimentalistas contribuíram para o ressurgimento de alguns aspectos mais criativos da poesia barroca, destacando-se a versatilidade lingüística, a criatividade imagística, o culto do ludismo e a visualidade do texto."
(HATHERLY, Ana. "A Poesia Barroca Portuguesa" em: Revista do Centro de Estudos
No artigo acima citado, podemos observar alguns poemas cuja criatividade imagistico-visual foi das mais notáveis, como o poema "Pirâmide Solene" de D.Francisco Manuel de MeIo ou o "Anagrama Poético" de Luis Nunes Tinoco que rivalizam em visualidade com o de Anastacyo Aires de Penhafiel.
Desse modo, esperamos ter tocado de forma simples, mas acreditamos, conveniente e segura no assunto de buscar demonstrar que as chamadas poesia moderna, de vanguarda e o barroco, têm obras que podem ser estudadas pelo aspecto estocástico com que essas obras podem ser conjugadas e que em diferentes espaços culturais e épocas houve momentos em que o poeta trabalhou sua obra sob um ponto de vista matemático, diverso da simples contagem silábica na busca de um melro dito excelente, mas muitas vezes, com o perdão da rima. insuficiente.
Jayro Luna
Extraído de LUNA, Jayro. Caderno de Anotações. Belo Horizonte/São Paulo: Signos/Editora Oporetuno, 2005. p. 77-80. |