A língua portuguesa é fonética, os caracteres chineses são ideográficos. Em nosso idioma lidamos com abstrações, enquanto um chinês reduz tudo a traços essenciais, como tenta também um cientista, entre nós, ao representar um objeto de seu estudo, mesmo sem recorrer aos ideogramas chineses ou aos hieróglifos egípcios. Mas existe uma forma intermediária de representação, que nós vamos intitular como sendo arte verbal.
Os poetas concretistas de meados do século passado — Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari — praticaram a verbivocovisualidade, sintetizando e geometrizando o texto em construções verbais. Agora, graças às tecnologias da informação, praticamos a animaverbivocovisualidade, uma combinatória que culmina em animação/movimento. Mas, devemos ir ao início do processo, para entendermos o caminho percorrido. Quem nos inicia é Ezra Pound, em seu ABC da Literatura (*), quando recorre a Ernest Fenellosa, um estudioso norte-americano que viveu durante o pós-guerra (da 2ª. Guerra Mundial) no Japão e dedicou-se a decifrar a escrita chinesa.
“O ensaio de Fenellosa estava talvez adiantado demais em relação ao seu tempo para que fosse facilmente compreendido. Ele não proclamava seu método; estava tentando explicar o ideograma chinês como um meio de transmissão e registro do pensamento. Foi à raiz do problema, à raiz da diferença entre o que é válido no pensamento chinês e sem valor ou enganoso em uma grande parte do pensamento e da linguagem europeus.” (POUND, s.d., p. 25)
Fenellosa teria facilitado o caminho para aproximar a linguagem literária da linguagem científica, como os concretistas brasileiros tentaram a coisificação (concreção) da linguagem poética.
Pound adverte para as duas linguagens em que nós, ocidentais, nos desenvolvemos: uma baseada no som e a outra na visão da coisa a ser representada.
“Em contraste com o método da abstração ou de definir as coisas em termos sucessivamente mais e mais genéricos, Fenellosa encarece o método da ciência, “que é o método da poesia”, distinto do método da “discussão filosófica”, e que é o meio de que se servem os chineses em sua ideografia ou escrita de figuras abreviadas.” (Opus cit., p. 26).
O ideograma chinês é algo reconhecível. Em nossa língua, muitos vêm tentando este tipo de representação, às vezes “desenhando com letras”, como no caso do camelo de Guilherme Mansur:
Valendo-se da aniverbivocovisualidade (o AV3), cabe o exemplo do poema visual “CRUZADO” de Da Nirham Eros (pseudônimo de Antonio Miranda), nas versões estática e dinâmica:
“Cruzado” de Da Nirham Eros utiliza um retângulo de letras na formatação do “ideograma verbal”, formando quatro triângulos inclusos, iconizando, “visualizando” ou provocando a vivencialização do cruzamento proposto. Óbvio. Simples. É mais fácil ser complicado do que simples como por exemplo, quando descrevemos o que seria um “cruzado” em um verbete de dicionário... Mais difícil é tentar o simples pela via do complicado. Certo: cruzado é cruzado. Apenas isso. E na versão animada, ainda mais óbvia:
Existem milhares de exemplos do tipo aqui exposto, mais comum no caso dos substantivos, mas estamos progredindo no sentido de promover representações mais complexas, abrangentes, em registros literários e científicos. Na escrita chinesa também existem combinações complexas, sempre baseadas “em algo que todos CONHECEM”, adverte Pound*:
“Fenellosa explicava como e porque a linguagem escrita dessa maneira simplesmente TINHA QUE PERMANECER POÉTICA; simplesmente não podia deixar de ser e de permanecer poética num sentido em que uma coluna tipográfica inglesa poderia muito bem não permanecer poética.” (POUND, op. cit., p. 28)
Ezra Pound, o genial autor do controvertido “Os Cantos”, demonizado durante sua vida e glorificado depois de sua morte, nos disse que o “método ideogrâmico” com o qual construiu seus cantos e inspirou os nossos “concretistas”, é um “método da ciência”.(POUND, opus cit. p. 30) E conclui:
“Isso não exclui, de forma alguma, o uso da lógica, das conjeturas, das intuições e das percepções globais, ou da visão de “como a coisa TINHA QUE SER ASSIM”. / É algo, porém, que tem muito a ver com a eficiência da manifestação verbal e com a capacidade de transmitir um juízo.” (POUND, opus cit., p. 31).
Podemos arredondar esta conclusão sobre a questão da linguagem e sua compreensão, recorrendo, uma vez mais, a Pound quando declara: “E no entanto o máximo de fanopéia (a projeção de uma imagem visual sobre a mente) é provavelmente alcançado pelos chineses, em parte devido à particular espécie de sua linguagem escrita” (POUND, op. cit, p. 45). Pound também acredita que o máximo de melopéia estava língua grega. Não cita um exemplo relativo à logopéia neste trecho... Não precisava. Como não somos chineses, muito menos gregos, e como o mundo segue andando, e estamos na Hipermodernidade, com outros recursos ao nosso alcance, é melhor acreditar nas transformações possíveis dos meios atuais de comunicação.
* Pound cita o caso da representação em ideograma do “vermelho” (ver POUND, p. 27), sem ter que recorrer à cor vermelha na inscrição.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Organização e apresentação da edição brasileira: Augusto de Campos. Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, s.d. 218 p.