ANTONIO OLINTO
Antonio Olinto Marques da Rocha (Ubá, Minas Gerais, em 10 de maio de 1919). Membro da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 12-09-2009, no Rio de Janeiro.
Há tempos os admiradores de Antonio Olinto — entre eles João Carlos Taveira e Alice Spindola — reclamavam uma página com textos do admirável acadêmico. Chegou a vez. Vamos começar com textos escolhidos de uma obra pouco conhecida do público, esgotada nas livrarias — O dia da Ira / The Day of Wrath — cujo exemplar encontramos na coleção de Marly de Oliveira doada pela família à Biblioteca Nacional de Brasília, em que está estampada uma carinhosa e íntima dedicatória à poeta e ao seu companheiro João Cabral de Melo Neto, em 1989.
Antonio Olinto's The Day of Wrath was first published in 1959. It was his fïfth book of poetry. Composed as a cinematographic poem displaying a serene, firm command of language, it placed the poet in the forefront of Brazíl's modern poetry. The poem's tragic tone was conceived in a down-to-earth spirit and its rhythm had the poignancy of gregorian chant wielding powerful poetic impetus.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTS IN ENGLISH
OLINTO, Antonio. Teorias. Poemas de Antonio Olinto. Rio de Janeiro: Edições Sinal, 1967. S.p. 21,5x21 cm. edição serigráfica, ilustrada. Col. Bibl. Antonio Miranda (LA)
OLINTO, Antonio. Ave Zora Ave Aurora. Rio de Janeiro: 2006. 137 p. 14x21 cm. Edição do autor.Capa e ilustrações de Marjorie Sonneschein. Inclui a Bibliografia do autor, ilustrações a cores das capas dos livros e de outros documentos sobre a sua vida. Col. A.M. (EA)
IV
Faço-me palavra
Ave Palavra,
faço de meu corpo uma árvore em que pouses
faço-me palavra eu também
divido-me nas sílabas necessárias
com tímbales e cânticos
vestir-me-ei por inteiro de palavras
que só existo quando através de ti.
Ave Palavra.
V
A paisagem
Nesse ínterim
esvaziam-se as palavras
inúteis
vindas na enxurrada
em queda no vazio
de listas e sinais.
Sem elas
desaparece o pleno sentido
some ajusta aceitação
de morros e flores
de rios e mares
e ao longo da planície
as palavras renascem
para que delas saia de novo
a paisagem.
De
OLINTO, Antonio. Nagasaki.
Capa e ilustrações de Levy Menezes.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1956.
76 p. ilus. p&b formato 27,5x18,5 Col. A.M. (EE)
VI
TRAGO-TE os rios
umedecidos de infância.
Não digas que há esquivanças
neste gesto doado.
Venho com passos naturais,
com piedade, sacrifício,
entregar-te a colheita dos olhos,
o fardo dos claros fracassos.
A pluma capturada
nas realidades sem mistura,
o tenteio do vento
no corpo oferecido as notícias,
a flor presa na mão branca,
o espanto da esposa iniciada,
o passeio exato no jardim —
estão comigo, estas coisas,
nesta verdade do canto,
na quietude dos átrios acalmados.
Trago-te os beijos da criança,
a paisagem ao redor da fazenda,
os brinquedos de barro já com sangue,
os lençóis do justo nascimento.
a mão pousada na madeira,
o sorriso apenas formulado,
a aceitação do gosto recebido,
a alegria das brasas extintas.
Venho dar-te notícias das coisas
esparzidas nos campos lá fora,
entregar-te o resíduo das datas,
o sinal de uma face marcada
para o largo consumo do amor.
VII
ASA da humildade
no corpo desistido.
Era uma fimbria que me perseguia
no contato da pele desnudada,
talvez nuvem que baixasse muito,
memoria que o tempo não matasse.
Como entender a voz das águas brancas
no horizonte de gente derramada?
Harpa humilde
para as canções menores
no acolhimento da lembrança finda
e areia, e coisa, e vento
na exaltação da ultima palavra,
a de antes da fraqueza consentida,
a do silencio insubmisso.
Esta humildade
como inicio de aflito testemunho
de atos renascidos na paisagem.
Apenas carne conformada na figura
em braços, lábios, coxas e vazios,
tentativa de único semblante,
de marca firmada no chão
para construir com ternura
a coragem do afastamento.
OLINTO, Antonio. O homem do madrigal. Capa e ilustração de Poty. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1957. 61 p 16,5x23 cm. “ Antonio Olinto “ Ex. bibl. Antonio Miranda
O CRIME DÁ MÁQUINA
A MÁQUINA rodou só
nos trilhos limpos,
foi matar a menina de vermelho.
Bastou um grito para o espanto
fixar-se na tarde.
Desceu gente de longe,
homens pisaram pedras,
mulheres jogaram noites na pressa,
os pais surgiram de súbito.
Um sangue ungia rodas e trilhos,
pedaço de vestido repousava em dormente.
Lanternas acesas na lida em voo,
foram examinar a máquina,
o freio intacto,
as peças nuas,
a chaminé parada em pânico.
Rodara só
nos trilhos limpos.
Em desvio de falas,
colheram saudades da menina,
assistiram ao desfile das pausas,
contaram casos de nascimentos.
A manhã pousou na máquina,
os homens trouxeram cadeiras,
fizeram um círculo de vozes,
ergueram pedaços do crime.
Depois tomaram café,
deram seus votos
e fitaram, em rápida apreensão,
a máquina condenada.
Levaram-na para um desvio,
destruíram os trilhos de um lado e de outro,
fundaram cerca de arame ao redor,
deixaram placa de madeira
com letras em quase cruz;
Quando as outras máquinas passam
nos trilhos mais longe,
apitam avisos,
rodam mandadas,
contemplam a cela tênue,
plantas agora buscando as fendas
da quieta locomotiva.
De
O DIA DA IRA
THE DAY OF WRATH
Translated by Richard Chappell
Rio de Janeiro: Nordica; London: Rex Colling, 1986
l — Abertura
Noite é chuva, plano é longo.
Hora de abraçar a máquina
medianeira do olho e do objeto
disposta para o módulo dos ritos
através.
Ó câmara de sutis delicadezas,
brandura carda, mansa entrega,
me ensina a reta prontidão
no pegar cada coisa e seu contorno,
me concede a cordura decisiva
da lente caminhando para a imagem
diretamente.
Ferramenta e musa,
vem comigo às estacas do homem
chamado Sousa,
entra na macia resistência da pele
águas adentro
(sabes: somos em aquário,
nele andamos, consistimos,
amamos
refreados de presenças
além do líquido limite:
em aquário somos).
Mulher e fábula,
tira a transparência
das roupas silenciadas,
restaura os rituais
dos mitos cotidianos
passados de fêmea a fêmea,
mãe, irmã, amante,
câmera votiva.
Que importa sejas metal agora,
vidro, foco, olho de máquina,
para a justa visão da coisa vista?
Eia, câmera, comigo
ao plano largo, noite chuva.
5 — Infância
Num retrospecto
de que vale?
O menino soltava papagaio
no morro transformado em nova imagem
tão nítida que vai além retângulo,
termina no prelúdio de uma nuvem
e o grito batia longe
na tarde dos bambuais
de que vale?
Sousa já era mas sorria,
tinha o fascinio dos começos,
a fixidez dos olhos sendo
nada e flor.
A voz que subia aflita
(só podia ser da mãe)
talava da noite próxima
e de bichos escondidos
pelo pasto,
no regato,
no caminho,
pela sombra deslizada de repente
de que vale?
Na descida tudo vinha
em gesto nem sempre visto
de papagaio vermelho,
papel de seda rasgado
na maciez do paiol.
Súbito
era noite e um cão latia
alto.
FUSÃO
10 — Fala do Sousa
O desígnio das coisas
ferido de espera.
Nem poderia ser, como pensais,
de lastro diferente.
Sabeis e guardais remanso.
Vinde à frente do palco
no risco da luz firmada
que os olhos querem vossa fala.
caso inventado mas pende
da mais sólida nuvem.
As tábuas estão aí,
a mesa, o pão, a roupa
e as gentes.
Nas cadeiras que vos olham
a certeza de vossa força.
Traçai o desenho
do que está vindo,
erguei a mão em rito,
fazei objetos.
Agora vejo.
Esse traço é o caminho da moça?
Completai-o que desce um cântico,
não deve ser interrompido.
O desígnio da moça
repousa em nervos de flor.
Riscai outros.
Esse não conheço.
Da que foi mãe?
Parece mais linha sem ponta.
Aonde irá?
OLINTO, Antonio. Tempo de verso. Rio de Janeiro: Ed. Porta de Livraria, 1992. 102 p. 14x21 cm. Ex. Biblioteca Nacional de Brasília.
QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Para Deoscoredes M. dos Santos e
Jnanita Elbein
Quarta-feira de Cinzas outra vez
E outra vez, outra vez tempos caindo
Carnaval outra vez, gritos no mês
Que em idos vai, em idos se exaurindo
Agora nestes séculos tombando
Na cidade de jeito incerto e brando
Ainda no começo e já implícita
Naquela vez soleira de outra vez
Preâmbulo de idade que solícita
Busca nascer epílogo. Talvez
Naquele sol nascença de outro caos
Pousando bem na gárgula do largo
Do Boticário agora levado aos
Pesos de uma vanguarda neste encargo
De ser ele e de estar no carnaval
Reposto nas pinturas e na igual
Repetição de casas e varandas
Pêlos cantos de ruas, pelas bandas
De avenidas olhando tempos idos
Nestes idos de César recolhidos
Ao carnaval em sístole outra vez,
Outra face, outra mão, outra lhanura
No receber a séria rispidez
Com que a vã tentativa de feitura
Acomete o vazio cada vez
E volta ao recomeço novamente
E estanca, e vai, e vem, e, num revés
Que é vitória, regressa e põe na gente
Os ímpetos de ser. Vejo a passagem
De tudo nesta porta, passa imagem,
Passam máscaras sós, passam nudezas,
Passam livros e coisas, passam rezas
De vozes reduzidas à calada
Da noite, passa boi, passa boiada
E no domínio breve deste espaço
Se vejo e se examino, também passo
Que outra vez a passagem se faz ato
E torna a restringir-se ao tema exato
De ventos idos vindo ao ponto findo
Do que, já feito e morto, se refez
E outra vez, outra vez tempo caindo,
Quarta-feira de Cinzas outra vez.
Rio de Janeiro, março de 1965
Tema:Carnaval.
TEXTS IN ENGLISH
Translated by Richard Chappell
l — Aperture
The night is rain, the range is long.
Time to embrace the apparatus,
médium, of eye and object
poised for the melody of rites
transcending.
O camera of subtle delicacies,
bristling softness, tamed surrender,
teach me the straight immediacy
of catching each thing and its contour,
yield up to me the decisive saneness
of the lens treading imagewards
in direct line.
Tool and muse,
come with me to the pile of the man
called Sousa,
enter the skin's bland resistance
deep instream
(you know: we're aquarium-bound,
its there that we move, and we subsist,
there that we love
restrained by presences
beyond the Íimiting liquid:
aquarium-bound are we).
Wife and fable,
cast off the transparence
of silenced apparel,
restore me the rituais
of everyday myths
passed on irom woman to woman,
mother, sister and mistress,
O camera of vows.
What does it matter if now you're metal,
glass, focus and apparatus eye,
For seeing truly the thing that's seen?
Come, camera, with me
to the wide range and night rain.
5 — Childhood
And in hindsight
of what valley or value?
The child loosed a kite
on a hilltop transformed into a fresh image
so sharp that it overruns the oblong,
terminating upon a cloud's prelude
and the cry was striking afar
on that bamboo grove s evening
of what valley or value?
Sousa's now alive but smiling,
clutching the enthralment of beginnings,
the fixture of his eyes was being
nothing and yet flourishing.
The voice that rose up in torment
(could only be mother's)
spoke out of the night now at hand
and of creatures hidden
around in the undergrowth,
in the ditch,
on the path,
away in the shadow which slipped suddenly in
from what valley or value?
On the descent ali was coming
with a red kite-like
gesture not always seen,
the tom tissue paper
lay upon the barn's blandness.
Suddenly now
ít was night and a dog was barking
out loud.
DISSOLVE
10 — Sousa's story
All things' intent
lies wounded with waiting.
It couldn't be, as you feel,
otherwise moulded.
This you know and keep your peace.
Step fbrward to front stage
in the stripe of hard light
that eyes seek from your speech.
It's all invented and suspended
from the very firmest cloud.
The boards are there,
the table, bread and too the costumes
and all the people.
On the chairs that stare at you
sits your sureness of strength.
Sketch the drawing
of what's dawning,
lift your hand, rite performing,
make objects.
I can see now.
Is that stroke the girl on foot?
End it all for hymns to fall,
It shall not be cut short.
The girl's intention
reclines in nerves in bloom.
Trace out others.
There's one I know not.
The one who mother was?
Seems more a line without a point.
Where is she going?
A
De
OLINTO, Antonio. Theories & other poemas. A bilingual edition. Translated from the
Portuguese by Jean McQuillen. London: Rex Collings, 1972. 70 p. Capa baseada em desenho de Carybé. autografado. formato 14x21,5 cm. Col. A.M. (EA)
Teoria do real
O real está aí
entre o olho e a coisa
o real se realiza
na relação
impõe-se à carne do olho
ao cerne do olho
e surge diferente
contudo o mesmo
cada coisa abalada em seu estar aí
pela invenção do olho
capa e signo
a júbilo da mulher no conceder-se
antecipando a casa que o filho
do filho do filho de seu filho fará
sair das coisas.
Theory of reality
Reality is there
Between the eye and the thing
Reality is realized
In the relationship
It is imposed on the eye's flesh
On the eye's core
Springs up different
And yet the same
Each thing shaken in its being there
By the invention of the eye
Cover and sign
The woman's jubilation in surrender
Anticipating the house the son
Of the son of the son of her son will make
Of the things.
Teoria do poema
o poema é
a demolição do poema
tarda e difícil
demolição
o poema está
aí
Na exatitude de cada coisa
ninguém o vê
sua pureza pede
outros sentidos
ainda inconclusos
só o entendemos quando
o destruímos
em penoso e largo
destruir
então morrendo ele emerge
e volta para nós demolido
reconhecêmo-lo na alegria
de desmontá-lo
pomos em letras e sinais
a improvável
demolição
contudo o poema luta
contra nós
fere-se na briga e um pouco
da paisagem
se perde
empobrecendo os objetos
matéria de nosso
gozo
por enquanto somos obrigados
a demolir o poema
cada poema
e da destruição tirar o
já quase
poema
então morrendo ele é
poema.
Theory of the poem
The poem is
The poem's demolishment
Slow and hard
Demolishment
The poem is
There
In each thing's exactness
No one sees it
Its purity wants
Other senses
Still unconcluded
We only understand it when
We demolish it
In painful and vast
Demolishment
Then dying it springs up
And comes demolished back to us
We recognize it in the joy
of dismantling it
We puí into letters and signs
The improbable
Demolition
Nevertheless the poem fights
Against us
Hurts itself in the fight and a shade
Of the landscape
Is lost
Impoverishing the objects
Matter of our
Enjoyment
Meanwhile we have to
Demolish the poem
Each poem
And from the destruction pull the
Almost
Poem
Then dying it is
Poem.
Página publicada em fevereiro de 2009. ampliada e republicada em dezembro de 2011.
Metaoema - metapoesia - metha poem
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