POESIA INFANTIL / INFANTO-JUVENIL
Coordenação de Liliane Bernardes
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(1902-1987)
Carlos Drummond de Andrade é considerado um dos mais importantes poetas brasileiros. Nasceu na cidade mineira de Itabira em 31 de outubro de 1902 e morreu no Rio de Janeiro em 17 de agosto de 1987.
Para as crianças escreveu os livros:O Elefante -1983 História de dois amores -1985
O Pintinho -1988
PARÊMIA DE CAVALO
Cavalo ruano corre todo o ano
Cavalo baio mais veloz que o raio
Cavalo branco veja lá se é manco
Cavalo pedrês compro dois por mês
Cavalo rosilho quero com filho
Cavalo alazão a minha paixão
Cavalo inteiro amanse primeiro
Cavalo de sela mas não pra donzela
Cavalo preto chave de soneto
Cavalo de tiro não rincho, suspiro
Cavalo de circo não corre uma vírgula
Cavalo de raça rolo de fumaça
Cavalo de pobre é vintém de cobre
Cavalo baiano eu dou pra fulano
Cavalo paulista não abaixa a crista
Cavalo mineiro dizem que é matreiro
Cavalo do sul chispa até no azul
Cavalo inglês fica pra outra vez.
O ELEFANTE
Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos moveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
e é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa as formas naturais.
Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.
E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
e as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
Caiu-lhe o vasto engenho
Como simples papel.
A cola se dissolve
E todo seu conteúdo
De perdão, de carícia,
De pluma, de algodão,
Jorra sobre o tapete, qual mito desmontado
Amanhã recomeço.
NO BANCO DE JARDIM
No banco de jardim,
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.
.
No banco de jardim,
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.
.
No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.
A chuva me irritava.
Até que um dia descobri que Maria é que chovia.
A chuva era Maria.
E cada pingo de Maria ensopava o meu domingo.
E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura...
Maria, chuvosíssima criatura!
Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa...Nossa!
Não me chovas, Maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!
Eu lhe dizia em vão - pois que Maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,
que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira Maria, chuvadonha,
chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
Eu lhe gritava: Pára! E ela chovendo,
poças d’água gelada ia tecendo.
Choveu tanto Maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa
e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de Maria mais chuvavam,
de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,
e eis o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.
Os seres mais estranhos se juntando na mesma aquosa pasta
iam clamando contra essa chuva estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).
Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,
e Maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.
Os navios soçobram.
Continentes já submergem com todos os viventes,
e Maria chovendo.
Eis que a essa altura, delida e fluida
a humana enfibratura,
e a terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,
e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! - e ela parou.
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Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras.
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala - nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Receita de Ano-Novo. Concepção e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. 94 p. ilus. ISBN 978-85-359-2660-6
Um belo livro!!! Vale a pena buscá-lo (numa biblioteca ou na livraria) e lê-lo na íntegra!!! Drummond é o máximo!!!
NESTE NATAL
Quantas rosas se perdem
se perdemos a ideia
de rosa
Quanto azul descolore
em nosso esquecimento
de azul
Quantas horas não chegam
se negamos a hora
de esperar.
FELIZ NATAL. FELIZ ANO-NOVO
Fazer de areia, terra e água uma canção.
Depois, fazer de vento e flauta
que há de transmitir essa canção.
Por último, fazer do sopro a boca e os lábios
que a flauta animarão.
E a flauta, sem nada mais que puro som,
envolverá o sonho da criação
a vida inteira, na amplidão.
MUDANÇA
O que muda na mudança,
se tudo em volta é uma dança
no trajeto da esperança,
junto ao que nunca se alcança?
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