TEIAS E TRAMAS GENEALÓGICAS
Poema de Antonio Miranda
Ilustração de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda
O patriarca costumava reunir a parentela
para contar a história dos antepassados.
As mulheres abanavam leques fingindo interesse.
As crianças, impacientes, sonhando com o bolo
depois da litania genealógica
e da liturgia dos defuntos.
Fotos ovaladas, ornadas com flores de papel crepom.
Heráldica difusa, inventários imprecisos.
(Ocultava os crimes, os abusos, aberrações.)
Cronologia desencontrada, discurso labiríntico.
Notícias de freguesias extintas,
referências a arquivos queimados,
lápides de um cemitério afogado
na última cheia do rio Parnaíba.
Não havia certificados de sesmarias e datas,
nem herdades patrimoniais claras nos cartórios.
Não obstante o zelo da religião em suas vidas,
uma miscigenação aleatória e até promíscua,
incertos acasalamentos com padres estrangeiros,
e incestos, rizomas subterrâneos, tramas insondáveis.
A tia empertigada na foto como se usasse espartilho,
saía do baú para as assombrações noturnas.
Morrera de peste seguida de febres e estertores,
recolhida ao monte de cadáveres a serem queimados
a céu aberto para excomungar
as penas inculcadas em suas carnes ímpias
onde o fogo-fátuo acendia a libertação
de suas almas de bodes e calangos
—derradeiras agonias.
A virgem que acasalou com o trapezista:
grávida, escorraçada, seguiu o circo mambembe.
Histórias do destino humano
vigiando fontes e riachos temporários
para garantir a sobrevivência da estirpe,
pastando cabras como ovelhas bíblicas.
O Amor seria o resultado indesejável
de uma química perversa,
alheio ao controle humano, subjugante
—garantia o patriarca—,
próprio dos seres fracos e incivilizados.
Neusa dedilhava, depois, valsas no piano fanho
e era então servido o patrimônio culinário
de bolos, biscoitos e doces de família.
Dona Filomena palavreando receitas
com o eco de vozes defuntas.
Avós putrefatas, tios decapitados, bestiários.
Tio Nelson era o único testemunho do Além.
As crianças ficavam cativas de pesadelos:
bois encantados, pavões delirantes, cabeças-de-cuia.
Extraído de: MIRANDA, Antonio. Do Azul mais Distante. Brasília: Thesaurus, 2008.
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