I
Nas calçadas, nos desvãos da noite,
debaixo de pontes, lá estão eles
como hienas, em andrajos, pestilentos,
na sua cantilena de desgraçados.
Que eles não invadam os nossos jardins,
não devorem as nossas roseiras!
nem depredem o canteiro de azáleas
nem urinem sobre os girassóis em brasa.
Nos fundos lá da rodoviária
são despejados a intervalos regulares
e ali se multiplicam como moscas
pondo ovos que logo chocam ali mesmo.
Não têm dentes mas como trituram
toda a grama, todo e qualquer arbusto
ao seu alcance, como um formigueiro
ou uma terrível horda de gafanhotos.
Retirantes, excluídos, sem-terra.
sem-teto, sem renda, analfabetos
dejetos, escravos, servos, deserdados
arregimentados viram votos oportunos.
II
Aquelas chagas não são implantes
mais bem (ou mal) são cancros cancerosos
não são transplantes ou cirurgias plásticas
são brotações ulcerosas circunstantes.
São seqüelas de mazelas hereditárias
de capitanias e oligarquias perpétuas
que permanecem na pele e no cerne
e se multiplicam por gerações infinitas.
Rebrotam como cogumelos renitentes
são como cactos na seca sempiterna
gravatás sobreviventes do incêndio
natural que devasta e revive anualmente.
Perpetuam formas de domínio seculares
entranhadas nas memórias ancestrais
implantadas como castas naturais
mais que atávicas elas são telúricas.
(Uma casta que se reproduz cativa
nas entranhas da terra cáustica
que resseca e rebrota e reverbera
ao sol que multiplica e degenera).
Apenas nascem e já se reproduzem
sem as faculdades completas, pouco
ou quase nada, desnutridos, mas ágeis
reforçando apenas os membros indispensáveis.
Os braços de capinar e ceifar a cana
os pés rachados de caminhar e correr
o sexo para reproduzir e multiplicar
e garantir a perpetuação da serventia.
Sem luz, sem tudo, sem nada
(virando números em cadastros oficiais),
como dizem agora, sem cidadania
mas eu completaria: sem-humanidade
Extraído do livro RETRATOS & POESIA REUNIDA (Brasília: Thesaurus, 2004).
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