que importa já passou nada restou
daquelas noites mornas e sem normas
pelas ruelas sujas paredes descascadas
da Lapa detrás dos Arcos prostitutas
mendigos tabuleiros angu com torresmo
travestis drogados acuados grasnando
de saltos altos seios postiços línguas
masturbando clientes colados aos postes
garotos de programa na Galeria Alasca
mostrando pênis rijos como mercadorias
vendedores de amendoim torradinho
lá vem o camburão arrasando quarteirão
sexo ali na praia ali mesmo luzes
refletidas corpos nus fricção orgasmo
curra sofreguidão susto prostração
que a noite é longa e os sonhos aguçados
um intelectual na porta do boteco cisma
um resto de samba-canção desnaturado
o bonde trepida os marinheiros urinam
e as igrejas dormem e os ratos assustados
os jornais da madrugada pesam nas calçadas
os bêbedos os malandros os vendedores de rua
os casais que saem dos cabarés suados
e o velho que dorme no banco de praça
e as luzes da avenida reverberando
e as colunas mortas e as portas fechadas
os anúncios luminosos as hospedarias
e os sobrados envergonhados sonolentos
não há lua sob um céu de chumbo
o bolso vazio o coração esfacelado
um desempregado com fome na parada
esperando o ônibus para o subúrbio
fantasias notívagas os preconceitos suspensos
desejos absconsos e sua cumplicidade
classes sociais aproximando-se promíscuas
antes que o dia enquadre as criaturas
Chácara Irecê, 28/5/2005, 12/11/2005
Comentários
Tem um indivíduo que de vez em quando me envia e-mails dizendo não ser poesia o que escrevo por faltar métrica, e rima certa... É isso mesmo: tem muito de anti-poesia... Ele está certo. Eu também.
Reclama de meu descuido com a gramática, com a sintaxe, falta de pontuação... Eu reajo e tiro todas as vírgulas...
Tem um outro que é mais exigente e não aceita que eu despoetise o mundo referindo-me a coisas desagradáveis, usando palavras grosseiras, temas cruéis.
Os dois vão ficar chocados com este poema. Vão me deletar. A Internet é fantástica porque é invasiva, interativa, quase instantânea nas relações virtuais. Às vezes recebo comentários minutos depois de distribuir os meus textos. A tempo de reagir e de rever os meus escritos, corrigindo falhas, acrescentando, cortando, seguindo as reações dos interlocutores quando considero oportunas.
O que eu mais adoro no sítio www.usinadeletras.com.br (onde eu primeiro publico meus textos) é que a edição é instantânea. Não há censura, revisão, seleção. Lê quem quer, apaga quem não gosta. O lixo e o luxo, tudo junto, numa usina, na moagem... Você é um entre milhares... A quantidade pode levar à quantidade, ainda que residualmente. Às vezes, minutos depois de publicar um poema, ele é visitado, lido. E, não raro, eu reedito, conserto, acrescento, apago versos... É tudo tão provisório na onipresença da web... É isso mesmo.
Você acerta, você apaga, joga para o espaço. Vai criando e desfazendo relações. No relativo anonimato, as pessoas são menos formais, mais autênticas: xingam, expressam admiração, apropriam-se de, desfazem-se sem maiores constrangimentos.
André Lemos, referindo-se à cibercultura, hasteia-se no coreano Nom June Park, e afirma que “não existe verdade, pois não existe aquilo que podemos afirmar ser o real. Tudo não passa de pura invenção e rearranjos sucessivos.”
Lemos refere-se à vídeo-arte mas poderia também referir-se à palavra, ao texto, cada vez menos referentes ao “fundamento figurativo, naturalista, representativo”. Cada vez somos mais alegóricos.
O poema acima parece figurativo, descritivo... mas não existe o original, não se refere a lugar algum, a nenhum momento específico. 1957, Rio de Janeiro e os Arcos da Lapa são referências concretas... o resto é simulação, no lugar do real. Por isso é que é real, só que em outra dimensão – na quarta dimensão em que vive o artista e seu público!
“O mundo ao qual esse “ciber-artista” se refere não é mais o mundo real dos fenômenos, mas o mundo virtual dos simulacros”. Conclui André Lemos. Assino em baixo.
Antonio Miranda
Em tempo:
Ao prefaciar o livro coletivo de poesia escrito por três alunos meus, recortei trechos de cada um deles e “formei” um poema “coletivo”. Ficaram perplexos... Havia inter-relação e sentido entre os versos e compunham um poema...
Fiz o mesmo no prefácio do livro Alucinaciones, do poeta Francisco Alarcón, que acaba de ser publicado na Venezuela. Recortei com uma tesoura virtual (control C + control V) versos de vários poemas e montei um poema-mosaico. Pensei que ele ia rejeitar o prefácio. Ele gostou e publicou e assumiu o poema... É assim mesmo que a gente produz os próprios textos, fazendo montagens, colagens, justaposições, confrontos, contradições... A ordem dos fatores altera o produto.