Eu nasci no Mearim
um rio barrento e lento
lá no fundo da memória
carcomida, como a mim
corroeu o mesmo tempo
e o desalento; também
o rio corrompeu, assoreou.
Um rio perdido ou esquecido
o rio e eu, frente a frente
como um eu diante de outro
eu, desconhecendo-se
outros eus que ficaram
ao longo do caminho
todos irreconhecíveis!
Paisagens deformadas
agora imperceptíveis
não fosse por sua imanência
ou permanência, indefectíveis
lembranças redivivas
imagens esclerosadas
de natimortos renitentes.
O rio torto e incerto
de minha infância esquecida
com aquelas palmeiras
decapitadas; eu, ribeirinho
assustado, imaginando
caminhos nas águas
moventes e errantes.
Lá adiante, quem sabe
o mar, o continente
lá no futuro, o passado
presente e instigante
de um desterro e
destino de emigrante
portanto inveterado.
Que migra e singra
mares nunca dantes
navegados, levando
o próprio rio e seu
desmoronamento e
permanecendo ancorado
mesmo em movimento.
Ou é o porto que vai
enquanto o rio petrifica
na lembrança estagnada.
O Mearim das lavadeiras
já falecidas, meninos
que já se foram
ou mesmo se afogaram.
Porque o rio segue
seu curso indiferente
numa geografia absurda
de ausentes desterrados
de águas turvas, tépidas
desmemoriadas de seus sobreviventes.
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