LIXÃO ESCATOLÓGICO
Poema de Antonio Miranda
Ilustração de Miguel Angel Fernández*
“Povo
não pode ser sempre o coletivo de fome”
AFFONSO ROMANO DE SANT´ANNA
I
Os urubus e os miseráveis da periferia,
hábeis, disputam monturos nos lixões.
Desfrutam detritos, escolhos, escombros,
entulhos, podridões, bestializados.
Oh pesadelos alados pairando
sobre os dejetos, resíduos abjetos,
fetos abandonados, carniças!
Carradas e camadas soterradas,
ignóbeis vermes decompondo
eternidades.
Nuvens ácidas, químicas, espessas
sobre paisagens desoladas, poluídas
- odores e horrores condensados
a combustar os elementos corrompidos.
Oh sobressaltos notívagos, assaltos,
temores, necessidades inconformadas,
insumos, consumos, exsumos sem remissão.
Ratos e ratos prestos roendo restos
no pasto podre, pestilento; hordas
(des)humanas corroendo e devorando
- um gerúndio insidioso e viscoso,
nefasto infúndio.
II
Suicidas, lacraias, discursos, pneus,
fezes liquefeitas, serpentes voadoras,
brinquedos, prazeres azinhavrados,
desovas de cadáveres, jóias, ossos,
remédios vencidos, versos envenenados.
Jantares deglutidos, vomitados,
resquícios de bodas e de fodas,
livros esquecidos, ininteligíveis,
utensílios inutilizados e até
um poema de Bilac carcomido,
um verbete (corroído) de dicionário
sobre o Santo Sudário
ou sobre a bem-aventurança.
Bonecas decapitadas, lâminas oxidadas,
amantes desesperados, orelhas decepadas,
corpos mutilados, insepultos, intestinos
famélicos, expostos, cancerosos.
III
Buscam no desperdício o seu ofício
- na serventia, insânia, mendicância.
Busca-se não só o alimento mas
também, se possível, o salvamento.
Porém, tudo que é eterno se degrada:
os sonhos, as idéias, os plásticos,
os metais enferrujados, os projetos,
voltam à condição de minerais.
Do alto os urubus-querubins
no festim macabro anunciam
o fim dos tempos e da história
- escória e abandono
ao desamparo de Deus.
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