I
Mãos enormes, leves, fortes, delicadas,
como asas, ásperas pelos exercícios
na academia.
Mãos tímidas, calmas, limpas, falazes
mas discretas, repousadas sobre a mesa,
em dádiva.
Dedos grandes, lisos, grossos, perfeitos
no ofício da afeição, no gesto contido
mas perseverante.
Dedos diuturnos, sossegados, pressionando
teclas solícitas de um computador,
horas a fio.
Mãos pacientes quando não agitadas
nas práticas esportivas, ou meditando
parcimoniosamente.
Um ensaio, traços de Leonardo da Vinci
em esquema sugestivo, detalhe,
uma reverência.
Mãos castas, dedos exultantes, sutis
em seus devaneios, ânsias, manifestações,
acenos juvenis.
Mãos pacatas, generosas, afagantes,
limpas, bem cuidadas, quietas mesmo
quando despertas.
Brancas, sossegadas, assim cruzadas
sobre o corpo dormido, imobilizando
dedos inquietos.
Acenando, apertando outras mãos,
ou em repouso de tarefas pacientes,
despedindo-se.
Mãos benfazejas, reverentes, recatadas,
em gestos amenos de aproximação
e solidariedade.
Mãos silentes quando assim prostradas
sobre o umbral da tarde declinante;
aquiescentes.
II
Heidegger: “Mas o ofício da mão é mais rico
do que geralmente se imagina(...)”. Ela
estende-se.
A mão distende, direciona, descontrola-se
na extensão da idéia ou sua ausência
inconsciente.
“Recebe sua própria saudação pela mão
dos outros”, interrelação de sentidos, ou
introspectiva.
“Duas mãos se enlaçam em uma”. Projetam-se,
reconstituem-se, redimem-se, dão, negam-se
e recuperam.
Sua linguagem é fundante, minuciosa,
valha a hipérbole: portanto direcionada
de sentidos.
“Cada movimento das mãos” (...) !”carrega
a si mesmo através do fundamento de
pensar.”
Mão que é o símbolo de outras mãos,
representando-as e no representa-las,
justificando-as.
“Todo trabalho da mão é fundamentado
pelo pensar”: a mão fala e pensa por
nós outros.
Ainda Heidegger: “pensar é o mais simples,
e por tal motivo o mais árduo de todos os
trabalhos da mão.”
Metafísicas, ônticas, oníricas, e concretas
as mãos confabulam, sentenciam, decidem
independentes.
A mão que antecede o pensamento
que inventa a linguagem, indicando
e nomeando.
Que é da mão o ato constituinte,
consumante, o sinal que antecede
a palavra.
É forma e conteúdo, também é causa e efeito,
mágica e realidade na sua materialidade,
e poesia.
Extraído do livro RETRATOS E POESIA REUNIDA ,. Brasília: Thesaurus, 2004.
Título da obra: “El lado oscuro de Da Vinci”, da artista chilena Camen Fulle. Outros trabalhos em:
http://www.geocities.com/carmenfulle/index.html
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