I
Águas estagnadas desde tempos imemoriais,
águas de chuvas empoçadas, nas margens
do rio, águas diluvianas evaporando-se
e retornando mornas, refeitas, minerais.
Aprazíveis. Águas decompostas, represadas,
como instintos domados, vazando
pelas várzeas, brenhas, banhados.
Águas turvas sob um céu de abismo,
gotas d’água marcando águas lúcidas.
Natureza feraz, indiferente
aos clamores e valores humanos.
Em correntezas repentinas, em líquidas
paisagens de espanto e estupor.
Éramos tão pequenos naquelas águas
todas, e árvores tão grandes! Tudo
tão longe ali tão perto e incerto.
Havia peixes escorregadios, promíscuos
e pássaros pairando nas alturas.
Águas feitas de suores dissolutos,
daqueles povos plantados na terra,
sem remissão e sossego. Condenados.
Seres alegres, saltitantes, loquazes, festivos,
como alimárias ribeirinhas domesticadas.
Esperançosos. Simples. Primitivos.
II
Chuvas em movimento constante, andantes,
erradias, intempestivas. Seguidas de sóis
abrasantes, ardentes, inclementes. Chuvas
torrenciais e estios intermitentes, insistentes
que secam a terra, estirões distantes. Calores.
Éramos tão pequenos naquelas águas
todas, e as árvores tamanhas!
Andávamos descalços, nus, a esmo,
inocentes de tantas maldades atávicas,
tão indefesos apesar de rezas e de missas.
Pisando poças de água parada, brejos
vizinhos perto de casa — tão distantes!
correndo e gritando, pulando troncos
caídos, cipós e raízes aflorantes.
Tropeçando, levantando e entrando
nos espelhos de nuvens trêmulas,
refletindo espaços andantes, instáveis.
III
A sensação lívida e temerosa das ações
inconseqüentes, livres de vigilância
e cuidados. Soltos. Em algazarra.
Que inocente sensualidade! Águas transpirantes.
Inconscientes do prazer compartilhado,
ausentes de qualquer responsabilidade.
Corpos imberbes roçando, atritando,
como peixes resvalantes entre ervas
flutuantes, agarrando-se, arfantes,
enfrentando-se com fúria, extenuados.
Viçosos como arrebentações vegetais,
como animais libertos, triunfantes.
Até que um imobiliza o outro, vencido
pelo cansaço, pela fadiga, pelo peso
do corpo. Sobre a presa inerte, ofegante,
mordendo-a com ímpeto e sentindo
um sabor álacre de saliva e espanto.
IV
Um tremor repentino, por todo o corpo,
um prazer assustado e intrigante.
Uma cega, avessa, e
súbita excitação.
Pequenos demais para o entendimento
de um destino selado, de uma identidade
aflorando
subjugante
na perplexidade
das águas trêmulas,
calafrio
e vislumbre.
Voltamos silenciosos para casa
com uma culpa entranhável,
tomados de vergonha e encanto.