BATERIAS DESCARREGADAS
Poema de Antonio Miranda
Foto: Robson Corrëa de Araújo
BATERIAS descarregadas
pneus pneus pneus
alimentos putref
cacos dejetos
e a criança
abando
Nada
(MIRANDA, Grito interrompido, 2007)
Interessante, muitos títulos deste livro fazem parte do corpo do texto. Este antipoema é nesse estilo. Os dois iniciais versos portam-se como iconicidades metonímicas de veículos automotivos. O primeiro inclusive reporta-se a alguns com defeito devido aos signos “Baterias descarregadas”. A anáfora do vocábulo pneus no plural sugere uma quantidade significativa da presença de automóveis, os quais, abdutivamente, aproximando-se dos problemas mecânicos com baterias podem também estar com defeito. São partes de um todo que sugerem um desconcerto e que recebe uma intensificação da simbolicidade ulterior a esses recém-referenciados signos: “alimentos putref”, “cacos dejetos”, “e criança abando”, “nada”. Esse estado de decomposição, putrefação, dejetos estilhaçados vivem no mesmo espaço com um ser necessitado de atenção — uma criança — porém este se encontra abandonado. Essa união entre os objetos danificados, a podridão dos alimentos, os dejetos, isto é, partes de um todo assaz próximas de um sujeito desprezado geram a condição esperpêntica do texto. Vida e esfacelamento unem-se erigindo o contexto do esperpento.
Faz-se mister observarmos que este antipoema vai ampliando as imagens desconcertantes, pois sai de baterias a uma criança, proporcionando uma gradação crescente entre os símbolos. E quão curioso é este efeito, porque vai de um polo pluralizado a outro singularizado e definido. O signo criança, em oposição aos demais, é o único substantivo sem o morfema do plural e que vem acrescido de um artigo definido. Esse detalhe nos leva a entender que não é um ser qualquer. Trata-se de alguém com sua individualidade bem percebida e interpretada pelo observador. Principalmente, por condizer com um ser que precisa de cuidados, mas isso lhe foi negado. A maneira como o termo “abando” “nada” foi redigido desperta a capacidade analítica do leitor. Ele teve suas duas últimas sílabas separadas das três que as precedem, fazendo com que um rema, que significa uma palavra na terminologia peirceana que fala por si mesma, seja convertido em outro com um aspecto inusitado, porque a desconstrução sígnica serviu para edificar o vocábulo nada. Esta condição é a característica que uma pessoa obtém de um indivíduo ao ser abandonado. Alguém somente é excluído da vida de outro ser caso seja considerado dessa forma: um nada.
O antipoeta, ao (des)construir o signo abandonada, aguçou suas qualidades sígnicas, isto é seus qualissignos, a fim de unir o conteúdo à forma, gerando assim o isomorfismo. Além disso, é visível também que este antipoema vai ritmicamente reduzindo suas sílabas poéticas. Percebamos que o texto inicia com um verso octassílabo e é concluído com um monossílabo. O aspecto esfacelador funde-se tamé à forma do poema em sua totalidade. A isomorfia materializa-se nas linhas poéticas como um todo. A ausência de pontuação, que é um traço característico da oralidade, amplifica, na estrutura formal da antipoesia, esse caráter de extinção. Os elementos sígnicos trabalhados ao longo da poesia vão sendo reduzidos ao plano do niilismo, isto é, do nada. Será a isso a que cada unidade apontada está destinada. Assim, a visão deformadora da realidade vai ganhando proporções esperpênticas significativas, uma vez que apresenta o caos em que estes signos estão inseridos.
Os dejetos e a criança convivem esperpenticamente no mesmo ambiente. Vemos que a fotografia dialoga com esse universo: um coco abandonado sob o asfalto com sua casca já escurecida. A pigmentação verde, que é um qualissigno vivaz, já se encontra amarronzada, remetendo ao estado de putrefação. O alimento foi esvaziado o que poderíamos associa, abdutivamente, a uma icononicidade metafórica de baterias descarregadas, ou seja sem sua energia alimentar. A finalidade do destaque sob essa fruta é justamente mostrar o nada em que ela irá se metamorfosear. Enfim, ambos os textos, verbal e não verbal, interagem entre si ao ponto de a mensagem estar muito bem representada.
Extraído de
In: DIAS JUNIOR, Valter Gomes. A poesia de Antonio Miranda e suas intersemioses. João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Pós-graduação em Letras, 2014. 268 p. Tese de doutorado defendida com Louvor.
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