AUTORRETRATO
Para Sofia Vivo
Ilustração de Azalea Quiñones (Venezuela)*
Às vezes sou um, às vezes sou outro:
todo mundo é assim, ou é assado.
Eu, sem fugir à regra, transgredi.
Fui, ao mesmo tempo, eu e o outro
—um para dentro, outro para os outros
mas, confesso, sou igual a todos
num disfarce que é a outra face
de uma falsa dicotomia.
Maniqueísmos? Planger ou prazer?
Nem religioso eu sou, nem romântico,
muito menos ideólogo ou assumido
de qualquer coisa, na minha infidelidade,
falta de fé. E, no entanto, obstinado
quase otimista porque realista
-na reversão da contradição.
Sou um pouco o Orlando da Virginia Woolf
o Patinho Feio disfarçado de Dorian Gray
fui herói de histórias em quadrinhos
namorei estrelas de Hollywood ou,
mais terrestre, da Vera Cruz e da Atlântida
ganhei o Prêmio Nobel, a Comenda Maior
da Confraria dos Poetas Ególatras e Suicidas.
Li uma montanha inexpugnável de livros
tentei reescrevê-los, sem qualquer humildade
subi, letra a letra, degraus estonteantes
delirantes, construindo arquiteturas etéreas
no círculo vicioso das virtualidades banais.
Deveria rasgar todas as frases deletérias
todas as imprecações, todas as contrafações
verbais e venais que produzi – lixo execrável.
Deveria envergonhar-me de minha falsa polidez
de minha insensatez, minhas impropriedades
mas sempre tenho a firmeza dos inseguros
enquanto os crédulos, os convictos
não resistem às próprias contradições.
Transgredi mas, juro, apenas verbalmente.
No mais, sou casto na minha perversidade.
Sou beato na minha mais íntima heresia.
E mais despretensioso do que a minha soberba.
Quero dizer: no fundo sou inseguro e fiel
a princípios de que nem participo.
Deu para entender? Nem Deus pressente
aquela dor que finjo que deveras sinto
ao plagiar aquele poeta que nem mesmo venero.
Vou na contra-mão da ordem estabelecida
mas, disfarçando, eu vou é de costas
e não estou sozinho, participando assim
de uma nova modalidade olímpica ou acadêmica.
Os que são de Bacabal que me sigam
os que usam botas de ferro, brinco de osso
que rezam constrangidos, os desamados
os sem-biblioteca, os sem sentido.
Foto do poema “AUTO-RETRATO” —AUTORRETRATO na nova ortografia — em exposição na Galeria CAL (Casa da América Latina), em Brasília, durante a exposição NOVO ROSTO: BREVE ANTOLOGIA DO AUTO-RETRATO, curadoria de Wagner Barja. O excelente catálogo também inclui o poema no original em Português e em versão inglesa (Brasília: Thesaurus Editora, 2009).
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*Obra Transparência 17 “Rojo Infinito”, primera parte de um tríptico de sua última exposição Azalea Quiñones. Paz en la Tierra. Collage y Pintura realizada no Museo de Arte Contemporáneo de Caracas Sofía Imber/CELARG , em 2005.