“Tapete”, desenhado por Da Nirham Eros {heterônimo de Antonio Miranda)
quando vivia no Rio de Janeiro, sem agosto de 1958.
DESMEMORIAL
Poema de Antonio Miranda
Diante de um espelho
que reflete outros espelhos
vejo-me
não no espaço mas no tempo
a refletir sobre o passado
no presente.
O espelho é uma dimensão
do tempo na desmemória
em que imagens refletidas
não refletem seus espaços
esquecidos
— espaços sem um lugar
definido.
Lugares como imagens desgastadas
cohabitando momentos impossíveis
até ao desvario — revendo-se
irreconhecíveis!!! lugares em momentos
diferentes, numa sequência de assombros
e desconcertos, inquietantes.
Lugares no espelho da memóriass
refletindo-se, aproximando-se
de lugares tão distantes
— não-lugares, alhures,
em tempo algum
e arbitrários, delirantes:
o Orinoco lado a lado com
o Rio de La Plata, la Plaza de Altamira
mas allá de la Recoleta
(em transitar inconsútil)
e a Ponte de São Francisco
separando Nova Iorque
do Rio de Janeiro
(em que vogo solitário
e ermo).
Nenhum absurdo em tão absurda
geografia, em desmemória...
Lugares como imagens
desgastadas
momentos impossíveis
até ao desvario
revendo-se lugares
em momentos diferentes
numa sequência de assombros
e desacertos inquietantes.
Dos cadernos da escola saem
cleópatras, iracemas
e as cataratas do Iguaçu;
Maria Callas cantando
o Tico Tico no Fubá
e a Elis Regina
— bem que merecia...
recebendo o Grammy
depois de cantar La Cumparsita.
Na memória convivem
pessoas que tanto amei
numa promíscua proximidade,
independentes de mim,
aproximando-se, fundindo-se,
abandonando-me de vez.
Lembranças de desejos
irrealizados, tão sonhados,
tristes, amores idealizados,
aconteceram ou deixaram de ser,
mares nunca dantes navegados.
Eu em vários lugares
imagens tão difer – entes...
desconcertantes
olhando-se pelos prismas
dos espelhos, estranhando-se
numa irreflexão permanente.
Os espelhos irrefletidos
nada sabem da existência
de suas imagens jamais:
ouvem-se os estilhaços de vidros
e faz-se escuro
e durmo para sempre.
24/11/2004
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