WALTER DE MENDONÇA SAMPAIO
(1923-2008)
Walter de Mendonça Sampaio nasceu cm Aracaju, SE, em
14 de janeiro de 1923. Teve atuação destacada na literatura sergipana nas décadas de 1930/1940, já que, junto a um grupo de outros intelectuais, editou, nos anos de 1939/1940, os jornais Mensagem e Símbolo, e cm 1948/1950 a revista a Época. Foi, também, em dos fundadores, em 1942, da entidade cultural "Mensagem dos Novos de Sergipe". Bacharelando-se em Direito, em 1946, transferiu para São Paulo, onde radicou-se desde o ano de 1949. Em 1976, publicou, pela Editora H, o seu livro de poemas, A Rosa e o Enigma.
REVISTA DE LITERATURA BRASILEIRA – LB 1 – São Paulo, SP: 1996. Conselho Editorial: Aluysio Mendonça Sampaio – Henrique L. Alves.
Ex. bibl. Antonio Miranda
A ROSA E O ENIGMA
A madrugada lá fora
anda quebrando vidraças
e abrindo janelas nas águas furtadas
Entre o chão e o teto
contorcida a escada de madeira
Pássaros mortos a
tapetam a soleira do quarto.
Mãos avançam peremptoriamente
como se atraídas pela refração da manhã
quisessem desligar-se do corpo
cansado pela vigília.
Vontade de decifrar enigma.
Enquanto o pensamento estremece
esmagado, nas pálpebras cansadas
a rosa da noite desfaz pétalas roxas n
o parapeito cinzento da janela.
O RIO
Deveria gritar em minhas margens cobertas de cinzas
chorar em minhas pedras vermelhas de sangue
a voz sem garganta das estrelas apagadas
e a tristeza dos violinos quebrados.
Deveria gritar em minhas margens vazias de flores
chorar em meus barcos de espuma
— eu que gemo na obscuridade do cais s
em uma luz acesa no coração.
Queria ser o rio de tinta no quadro dos museus
a ser agora este rio ouvindo em suas margens
a voz triste dos náufragos
o choro da criança morta que passa boiando.
Olhai meu silêncio sem termo
margens vazias de flores
Olhai os destroços dos soldados,
pedaços de farda, os cavalos mortos.
Olhai as páginas soltas dos livros
esta folha de jornal
que o vento trouxe do campo de concentração
o laço de fita c as asas partidas da borboleta.
POEMA AO SOLDADO MORTO
Este monstro que jaz ao teu lado, irmão
é um tanque, mudo, impassível
grotesco, inútil
que tuas mãos pequenas venceram.
Esta mancha escura na areia
é o teu sangue
o sangue que deste para viver.
Esta voz que ouves
e que o vento traz dos campos de batalha
onde teus irmãos lutam
não é um gemido
não é um grito
é o canto da vitória, irmão
que teus irmãos estão cantando.
Debruça tua cabeça na terra que é tua e de todos
e morto veja com teus olhos ainda abertos
o monstro inútil, imóvel
que tuas mãos venceram.
Então poderás pressentir nos olhos ainda molhados
o vento da manhã
as árvores florescendo ao lado do teu corpo inerte
flores desabrochando nos teus olhos
nos teus lábios, na tua face
e as raízes crescendo no teu corpo
dilatando-se nas tuas veias.
E na doce plenitude da fecundação
sentirás a presença dos teus filhos, dos teus irmãos
debruçados sobre a terra
colhendo dos trigais e das vinhas
que nasceram de teu corpo
o fruto do teu sacrifício, do teu amor
o pouco necessário para todos
da tua carne e do teu sangue.
Inclina a cabeça sobre a terra, humildemente
que a madrugada já vem nascendo
e é preciso agora esquecer o tanque imóvel, vencido
é preciso, irmão!
A manhã chegará como uma benção
apagará nos teus olhos parados
a mancha de sangue.
Inclinaste, totalmente
para que os ventos da madrugada
te encontrem abraçado com a terra que é tua
identificado com a terra que é de todos
igualmente tua, dos teus filhos, dos teus irmãos.
REVISTA DE LITERATURA BRASILEIRA – LB 49– São Paulo, SP: 2008. Direção: Aluysio Mendonça Sampaio. Ex. bib. Antonio Miranda
Mensagem a um jovem poeta morto
A Enoch Santiago Filho
Ofereço ao silêncio da noite
as vozes de meu canto desesperado
e à luz mansa da estrela
o brilho de minhas lágrimas.
Ofereço a ti, Poeta, a presença da saudade
e estes versos de tecido invisível.
Na amargura que desce sobre nossos olhos
na agonia de nossa pequenez face à morte imponderável
eu divisarei teu vulto inquieto.
Na aurora que se levantará sobre o mundo angustiado
em que viveste, eu te divisarei,
nas flores que renascerão no sei da grande harmonia
na luz da madrugada que secará os cabelos da noite
molhados das lágrimas do mundo
nos braços de espumas de mar
que se levantarão para colher a última luz
na compreensão de que chegamos à outra margem
do tempo e do espaço, eu te divisarei.
Quando o pássaro da manhã acordar o mundo
para a vida que chega
todos os que sobreviveram, numa absoluta compreensão
guardarão um minuto de silêncio
que será teu, Poeta,
porque compreenderão que teu pensamento
foi um facho de esperança iluminando a densa noite
da descrença, da inércia e da injustiça.
O teu olho morto na terra escura
verá erguerem-se contra a grande obsessão
milhares de homens iguais a ti.
Na hora da redenção verás os campos cultivados
as cidades dormindo no conchego da noite
os homens correrem alegres nos campos
como animais solto no pasto.
Verás os ventos acariciarem a s mulheres perdidas
e todos encherão as mãos com a água do rio
que voltou a correr.
Ouvirás um rumor de raízes crescendo
e os ventos cantarem na tua sepultura
a canção que gostaria de ouvir da boca do povo.
Sentirás nas entranhas
O calor dos animais dormindo sobre a relva.
Verás a estrela descer do céu
e estender lume de prata sobre a tapera.
Ouvirás uma voz cantando no silêncio do beco
e então compreenderás que chegou o momento
da nova poesia descer ao coração dos homens.
Chegará o momento em que nossa voz descerá
aos túmulos
para falar aos que morreram
e então será a tua vez.
Chegará o momento em que iremos todos
à presença dos que tiveram nos lábios
a palavra de salvação
e então chegará a tua vez.
— Isto quando vier o instante esperado
pelos que passaram a noite em vigília
encobertos pela angústia do mundo
— Isto quando chegar o momento
em que uma força nova animará
os que tiveram palavras desencantadas
e pensarem na inutilidade da vida.
Porque é preciso que a paz encontre ainda vivos
os que perderam a esperança nos caminhos do mundo.
Mas, agora, Poeta, estás dormindo no ventre da terra
morto como tantos dos teus irmãos
fecundando o silêncio da morte
esmagado pelo peso do mundo
distante do dia que nascerás.
Silêncio! Silêncio!
As águas do rio Spree choram
O corpo mutilado de Rosa Luxemburgo.
Silêncio!
Garcia Lorca repousa num cemitério de Granada.
Silêncio!
É a voz de Antonio Machado que vem do fundo da terra.
Silêncio! Outro poeta desceu ao silêncio da morte!
Eles aguardam o momento da vida
E um dia descerão na luz que acordará o novo mundo.
A ROSA E O ENIGMA
A madrugada lá fora
anda quebrando vidraças
e abrindo janelas nas águas furtadas.
Entre o chão e o teto
contorcida escada de madeira.
Pássaros mortos
atapetam a soleira do quarto.
Mãos avançam peremptoriamente
como se atraídas pela refração da manhã
quisessem desligar-se do corpo
cansado pela vigília.
Vontade de decifrar o enigma.
Enquanto o pensamento estremece
esmagado, nas pálpebras cansadas
a rosa da noite desfaz pétalas roxas
no parapeito cinzento da janela.
*
Página ampliada e republicada em novembro de 2022.
Página publicada em setembro de 2019
|