MANOEL J. CARDOSO
Nasceu em Nossa Senhora das Dores, Sergipe.
Professor de português, formado em Letras Neolatinas pela Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Publicou alguns poemas no "Diário de Sergipe".
TEMPO DE ESTRADA – 20 POEMAS DA TRANSAMAZÔNICA. Rio de Janeiro: S.D.M.T em co-edição com Instituto Nacional do Livro e Grupo de Planejamento Gráfico, editores, 1972. 208 p. Ex. bibl. Antonio Miranda
UM CAMINHO PARA O NORTE
Me visto de vastidão
para entender um trabalho recente
que se constrói em argamassa
de coragem, suor e fogo,
no rasgar as entranhas de uma planície fechada,
onde as lendas de encanto, terror e grandeza
fizeram morada.
Corto o véu de meus olhos para crer
na pertinácia de um povo
que quer construir o amanhã
com as forças do braço
e estira uma estrada por selvas perigosas;
ali se amoitam ainda: a fera, a endemia,
o aborígene bom, que desconfia com razão,
e os quilos de metros
caminham pelos pés de homens e de máquinas
e o mundo vai ficando como nunca foi:
aberto ao crescer, ao cultivo, ao trânsito,
à morada e ao enriquecimento.
Que caminho é esse que quanto mais caminha
mais há por caminhar?
Que homens são esse que desafiam a linha
divisória da terra,
esmagando distâncias,
ignorando carapanãs*1, piuns*2, tocandiras*3,
sem temor do jaguar e da sucuri,
do boitacá*4 e da boiúna*5?
Homens-brasis em direção de um século por vir,
quando apenas subsistirá o herói do trabalho
e do bom conviver,
que despertaram e fazem do futuro presente,
invalidando conceitos caducos de fora.
Me monto em montanhas para enxergar distante
e nesta via que vai sem viandantes ainda
vejo o traço-de-união
entre um Nordeste que tem sede
e uma Amazônia que tem água sobejante,
para se compensarem nesse desejo do oposto
e para um encontro fecundo e duradouro
entre: nordestino-tostato — seringueiro / castanheiro- isolado
e para um crescer de gente
que se aposse dos vazios amazônicos,
onde há larga cópia de bens ocultos:
minérios raros, madeiras de valor, óleo de pedra,
solos férteis, cardumes fartos
e no domar dos rios e das águas
crescerão os caminhos, sobrará energia
para substituir o braço do homem cansado.
Me envolvo de verde e abraço a esperança nesta alvorada,
porque a Transamazônica é um marco amanhecido
em terras equatoriais brasileiras,
uma respostas ao que se lumuria e cruza os braços,
um desafio ao que dorme em faustos de tredição,
uma rasteira no perna-longa forasteiro
que queria percorrer nossos pagos com botas-de-sete-léguas.
Vendo verdade vamos de vento a bombordo,
marujos seguros de um porto avançado,
caminheiros confiantes de um breve chegar,
onde o Acre não é acre mais em seu trabalhar,
o Pará já não pára pra pensar,
o Amazonas faz amar sua zonas
de água, de verde e de sol.
Hoje, agora (e muito mais amanhã),
a Amazônia se liga definitivamente
ao patrimônio brasílico
e é nossa, muito nossa, só nossa.
E a Transamazônica — estrada que Euclides sonhou —
é o hífen que une dois Brasis
em um só,
bem maior:
Brasil do trabalho,
de homens libertos,
coberto de SOL.
*1 -carapanãs – espécie de mosquito de pernas compridas.
- grupo indígena que habita o Noroeste do Amazonas (Área Indígena Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I, Yauareté I e Yauareté II), junto ao médio rio Solimões (Áreas Indígenas Méria e Miratu) e a República da Colômbia.
*2 – pium - Nome vulgar de insetos dípteros da família dos Culicídeos, vetores de várias doenças , entre as quais a malária.
*3 – tocandira – formiga que morde e produz uma dor terrível.
*4 – boitacá - é um mito indígena que indica uma serpente de fogo ou de luz de olhos graúdos, ou um touro que solta fogo pelas narinas.
*5 – boiúna - A boiuna, Mboi-Una (cobra negra), cobra-grande, mãe-do-rio ou senhora-das-águas é um mito amazônico de origem ameríndia.
Página publicada em novembro de 2020
|