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BONIFÁCIO FORTES
(1926-2004)
José Bonifácio Fortes Neto, nasceu em Aracaju, Sergipe. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia em 1950, jurista e professor universitário foi redator, colunista, repórter e colaborador de vários jornais, como Correio de Aracaju, Sergipe-Jornal, Diário de Sergipe, A Cruzada, Gazeta de Sergipe, O Nordeste, Folha da Manhã e também correspondente em Aracaju do Diário da Bahia. Bonifácio publicou: “Poemas do Meu Caminho” (1944), “Evolução da Paisagem Humana da Cidade do Aracaju” (1955) e “Zeppelin” (1998).
O M E D O
A chama, a grande chama interrompida...
Furacão que os tempos não levaram
vive em meu espírito. E não é luta, nem duelo...
Estranhamente
não é
suave enlevo.
A agitação das pálpebras,
o derrear tímido das mãos.
E aquela queda imensa
que não se pode deter.
Nem se ilhando no pensamento,
nem se ficando no instante presente.
(Ah, as aves em revoada!)
0 medo de passar sem a realização.
Tétrico medo,
pendente de todas as emoções...
Até no sono, o sono sem paz das noites de delírio.
(Oh, os cândidos pombos do fundo do quintal!
E a gaiola de rolinhas fogo-pagou
que nem sei que fim levou...)
Sim, irmão, o medo...
Estranho medo,
pegajoso nos reflexos do espelho,
angustioso no rosto de meu pai.
(De Poemas do meu caminho- 1944)
P O E M A
Se esta mão que escreve sustentasse
a expressão imaginada...
Se da mente surgisse
o traço que se tenta
como haste, apoio e trave,
haveria já, na tarde desmaiada,
o abrigo, o nó, o laço,
o arpejo, a nata ou o asco
que do pó refulgiu e se perdeu
entre muitas fraturas estampadas
da palavra mascada e esquecida
na sombra.
Da expressão imaginada,
no arfar da mente estuprada - !
nada
(1986)
V Ó
Nas talhas da casa de minha´vó*
as águas descansavam, decantavam,
filtravam-se
Limpos tecidos alvos
resguardavam-nas.
Na sequência rotineira de potes,
porrões, panelas,
boiava o austríaco vaso permeável, refiltrando.
Depois que mataram meu avô
Cecilinha confinou-se
sem queixas e lamentos.
Rezava baixinho, obstinadamente. Cobria-se de
tecido escuro, do queixo aos
pés, sobriamente.
Centrou-se no filho,
sua cobradora implacável.
Defendia as águas e os ganhos:
guardiã atenta.
A espada ancestral na parede do quarto, na casinha
úmida onde morava... intocada de Paraguays e Canudos...
0 carinho sóbrio, seco, permanente, superava os dois
mil-réis de prata que
nos dava como se desculpando.
Dos finos lábios, leve sorriso
inda hoje, puramente,
dessedenta.
Nas talhas da casa de minha vó
a saudade filtrada,
pura,
sóbria e rica,
absolutamente viva.
(1995
* Maria Cecília de Guimarães Fortes,
minha avó paterna)
Página publicada em janeiro de 2020
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