Fonte: www.partes.com.br
ZEH GUSTAVO
(Gustavo Dumas)
Sempre ando em livrarias, sebos e feiras de livros buscando novidades e antiguidades... Quando sempre encontro um pouco mais do mesmo... Foi uma boa surpresa de fim de ano o livro A Perspectiva do Quase, do Zeh Gustavo. Achei a capa interessante. Li uns versos e pareceu-me, à primeira vista, um Manoel de Barros urbano, com ressábios de Raul Bopp (que andou pelos interiores paulistas, sô) e com desvarios de Leminsky...
Mas logo vi, como o próprio autor diz em seu texto: “aquele segundo estalo que eu tive/ creio não ter sido apenas um estalo: / era um estilo.” Comprei o livro e quero compartilhar alguns poemas com o meu público, recomendando a obra.” Antonio Miranda
De
A PERSPECTIVA DO QUASE
São Paulo: artepaubrasil, 2008. 80 p.
978-85-99629-07-9
Programa de desgoverno
os caracteres não têm caráter
— a vida não é um monte de dados;
o corpo precisa de estimulezas
mais que de informatações;
o meio só é o fim se houver infinitos;
o mistério ainda é mais lírico que as descobertas;
feito assim em arte
— inexatamente é que se diz melhor
cinco
Ocorre-me habilidades para destravar silêncios.
Me deparo muito com espelhos descontentes.
É irreversível meu processo de obscurecimento.
Já tentei me tratar e um médico me disse que
isso de me haver obscurecimentos é anormal.
Sua constatação me governa.
Eu sangro enquanto os silêncios tremem.
Fantasma
1
a fadiga me insiste
o passado me derrete
eu só olho para baixo
(para cima existe pouco)
2
me percorro em vielas
as setas me apertam
eu sou o parafuso solto do presente
3
minha carcaça é frágil
a corcunda me intriga
eu tenho um olhar de não-parafuso
4
o freqüente me indigesta
as dobras de meu corpo me são
eu tenho e quero tão pouco
5
eu volto com problemas para onde vou
Tenho uma interjeição pronta,
defeituosa para dizer
(ela nunca acontece)
(ela está presa, comigo dentro)
6
há uma constante falha no meu toque
o meu toque vai se exaurindo
7
incongruências me passeiam
eu tenho a cuca fraca
a partir de uma incerta normalidade
que eu perdi que eu perdi que eu perdi
8
esqueci de mim em algum lugar onde estava quase lá
9
e de agora um futuro me interrompeu.
GUSTAVO, Zeh. Idade do zero. São Paulo: Escrituras, 2005. 127 p. 14x21 cm. ISBN 85-7531-183-2 Col. Bibl. Antonio Miranda
Fustigava-se* em desentenderes.
Abastecia-se de rumores.
Andava abraçado à desvalia.
Pedia esmola ao palhaço, seu amigo de parente.
Suava frio quando.
O homem:
Sorria despretensões.
Jantava depois os sorrisos gastos.
Dormia artes.
Acordava já exultando esquisitices.
Sempre absurdava muito.
Raciocinava desabrigos.
Respirava anoiteceres.
Abarulhava-se do silêncio.
Olhava nele bem dentro dos olhos.
Aí nuviava flores.
Matagadeava percalços.
Era meio em si, um pedaço de perdidos.
Só não apenas criando se desentendia
com o mundo.
Se desentendia até consigo próprio.
Implicava com campanhas metas números métodos.
Implicava devaneios.
Suscitava explicações.
(Ninguém as tem de verdade.)
Desvendia produtos mas comprava ideias para vender,
usando a si por modelo.
Era um sacrificado. Experimentava.
Fazia o mundo.
Sofria os poréns.
Todos passavam.
E ele atormentando num papel qualquer.
Ia vivendo.
Até desfazer.
*No texto do livro aparece “Fastigava-se”. Como não existe o verbo “fastigar”, assumimos tratar-se de um erro de digitação... ou não.
INTROGOGIA, comentário e poema de ZEH GUSTAVO
Quando da publicação, ano passado, da 'Pedagogia do Suprimido', o editor e escritor Daniel Russell Ribas me indagou, em entrevista para o jornal Algo a Dizer, qual a relação de meu livro com a obra-referência de Paulo Freire, 'Pedagogia do Oprimido'. Respondi, na ocasião: "A compressão foi tanta que o oprimido suprimiu-se. É desesperador notar a expiração progressiva dos sentidos de vida de hordas de seres urbanos. Mas também é inspirador, claro. Freire propôs uma educação libertária feita pelo e para o oprimido. Eu flagro o que se sucedeu, a que ponto chegou o regime que Freire denunciava, regime que evidentemente extrapola os ambientes escolares e universitários. Deu numa educação midiática, que se afirmou como provedora de gado para o mercado. Desumanizante, tecnicista, maquinal e emburrecedora. Falam hoje em necessidade de investimento maciço na educação. Se for nessa educação supressora, eu tô fora dessa reivindicação! Prefiro passear pelos escombros do que sobrou." Mas a melhor explicação para o cometimento desta pequena audácia lírica está ali pelas páginas de abertura do livro, em forma desta INTROGOGIA.
INTROGOGIA
por Zeh Gustavo
I
O futuro dos oprimidos e seus opressores, todos
operários vivos do sistema torpe construído
para a negação final das vozes, era o alvo alto da ação
didática de Paulo Freire. Invocava-lhe o espírito-mestre
a interrupção deste fluxo, em prol da erupção de um
homem-mulher consciente e despido da condição
aparentemente sinequanótica de vítima-algoz.
Eis a peça-tese para um educar libertário:
instituir-se uma Pedagogia do Oprimido.
Já esta Pedagogia do Suprimido trata-se de
uma palavra mambembe sobre um
passado-presente que engendrou um não-futuro.
Quiçá um estudo agoniológico.
Ou um reflexo da sombra de um soldado que desertou
do exército de si mesmo mas ainda ouve, vez ou outra,
o sino que estrila do pulso de sua veia estrangulada.
II
Primava aquela Pedagogia primeira
de mui maior esperança que esta, que entretanto
ordenha, sim, suas aguardânsias, e as traga
como uma draga perdida, autoprivada das asas.
A Pedagogia do Oprimido gostaria
um homem que gerisse o próprio húmus.
Neste ponto o encontro, sendo que o suprimido
ojeriza a plástico. (A merda se perdeu
no meio do caminho de pedras?)
No futuro daqueles opressores e oprimidos,
que lá se confundiam,
cá se imiscuem suprimidos e supressores.
Só a avenida do exílio é que já é a mesma.
III
Profeta, Freire supunha o vínculo-vício
que aproximaria sectários de esquerda e de direita,
oportunos ambos aos turnos de um trabalho
executado com vistas
à inanição das almas e organismos,
domesticados. O ritmo da inércia o que forneceu
foi toda uma pedagogia dialeticamente orquestrada
para a fermentação e superação
do ser de energia vital.
A este sujeito amplamente espoliado até virar
um objeto-número de um espetáculo fantasmagórico
ora apelidamos, carinhosamente:
suprimido.
In "Pedagogia do Suprimido" (Verve, 2013), p. 15-16.
Encontro de Zeh Gustavo e Antonio Miranda
no Aeroporto de Brasília (19/05/2009).
Página publicada em janeiro e ampliada em maio de 2009
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