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VALÉRIO OLIVEIRA


Valério Oliveira parece querer manter-se numa certa áurea de mistério... Viveu em Portugal, mora nos Estados Unidos da América, anda por São Paulo de vez em quando... Seus temas são contemporâneos e incomuns: terroristas subterrâneos, pactos fáusticos, viagens ao centro da terra...

 

OLIVEIRA, Valério.  Sobras do subsolo.   São Paulo, SP: Catatau Editora, 2004.   62 p.  Capa e projeto gráfico: Tereza Yamashita e Teodoro Adorno.  “ Valério Oliveira “ Ex. bibl. Antonio Miranda

 

APAGÃO

 

As lanternas fraquejaram

durante meio minuto

de merda

Então nossos mapas ficaram cegos

feito morcego de cera

E agora

essa chuva de gesso e osso e olho de vidro

que não dá sossego

 

Faz dois dias que cavamos

círculo dentro do círculo dentro de círculo dentro de

sob raízes do cemitério

 

Não adianta choro

nem ranger de dentes

O jeito é assoar os olhos e molhar as mãos

no pesadelo seco dessa solidão

 

Lá longe

mugidos e cacarejos aos berros

abracadabras de cabras e cabritos

 

O cerne da solidão é oco

oco

eco

é como a cisterna sem fundo

de onde meu avô tirava água

quando meus ossos tinha só seis anos

 

“Sete”, resmungava meu avô

resmungavam seus ossos

do fundo de seu poço imundo

 

“Seis”

“Fedelho, sete!”

 

“É, pode ser

a tua conta pode estar certa”.

 

O balde despencava desaparecia

nunca mais voltava

Mesmo assim não sentíamos sede

Talvez porque já estivéssemos mortos

 

“Só os animais urravam”, ele me lembra

 

Ninguém sobreviveu à vida

de cercas e cernes solitários

da fazenda

 

Mas não me espantaria

se sob esses túmulos todos

o balde finalmente batesse no fundo

bem aqui ao lado

 

 

ÓDIO SUSTENIDO

 

Ouvi os molares desmoronando, vi sim

os molares mergulhados no ketchup

Ouvi a chacina no boteco da esquina, ah se vi

Ouvi a briga a faca a vingança – vi, não vi?

Ouvi o sujeito esquartejar o braço direito, é

o próprio braço direito

ouvi o lixo comendo o lixo, pode apostar

Ouvi a sirene da seringa assassina, vi sim

Ouvi a sereia o isqueiro a heroína

faiscando na veia do anti-herói, ah se vi

Ouvi o latido das papoulas prenhas – vi, não vi?

o nome do homem de braço metralhado

Ouvi a trilha sonora da matilha retalhada, é

o uivo do pivete no peito do canivete

Ouvi o peido o pus o pó, pode apostar

da filha do alto-falante

Ouvi os fogos de artifício, vi sim

os olhos boiando feito ilhas no vinagre

do fundo do poço sem fundo

 

Extraídos do livro Sobras do subsolo. São Paulo: Catatau, 2004."

 

OLIVEIRA, Valério.  Mínimo eu. São Paulo: Catatau Editora, 2002.   86 p.  7,5x10,5 cm.  ISBN 85-7416-135-7 Capa e diagramação de Mário Martins. Col. Biblioteca Nacional de Brasília, doação Aricy Curvello. “Valério Oliveira “

 

Sangue ruim

Nem marido nem filhos.
Ô, dó! Não trazia ninguém
no colo ou na coleira.
Professora — pela prole alheia
cólera proverbial, incontrolável.
"Vem cá, fedelha!
Tá se achando Chapeuzinho Vermelho?
Te mostro com quantos paus
 se faz um lobo mau." Galinha de briga,
não fugia da rinha
— fustigava afetos e desafetos.
Afeita a tapas e intrigas, dos carolas o corolário:
"Essa tem o relho na barriga.

 

As aspirações do coito

 

Ao meter

entre as eternas páginas de Proust

o nariz

veio-me

ao vivo mais uma vez

o mesmo sentido da vida e do livro

que um dia sentira

afoito

entre as extremas e mal depiladas pernas de Madalena.

 

BABEL Poética.  Ano I  no. 1 –Tradução e Crítica.   Novembro/De2020.    Belo Horizonte – Minas Gerais.  64 p. 
ISSN 1518-4005.  Ex. biblioteca de Antonio Miranda

 

CASTELO BRANCO PRODUTOS ALIMENTÍCIOS

Dúvida vital: generais ou cereais?


No tempo em que os generais dominavam a Terra
(ou teriam sido os dinossauros?)
não havia essas fabulosas barrinhas de cereais

O que é melhor? O que é pior?

Se generais ou dinossauros, não importa.
No tempo em que a força bruta brutalizava a Terra,
nessa época não havia essas fibrosas
barrinhas de cereais.

Ah brutamontes e dinossauros, ah guloseimas
vermelhas, amarelas e azuis, de consistência
severa e intensa
(Deus sabe o glúten, a farinha, a aveia, o açúcar
e o estabilizante lecitina de soja E 322)!

O que é melhor? O que é pior?
A força irresistível das mandíbulas fardadas
ou as não menos irresistíveis barrinhas de cereais?



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Não sou ativo nem passivo,
muito menos maníaco reflexivo
como esses estudantes que há por aí

Jamais pego em armas pra defender
esta nação de baixa definição
da falta ou do excesso de ordem e progresso

Pra que suar, bater sofrer? Pra que?!
A paz de todos os supercanais de tevê
me permite acompanhar cada cena, cada
corte, cada morte
bem mais de perto.

Não sou ativo nem passivo,
sou só do tipo que costuma se manter vivo.

A corrupção e a repressão
estão tomando conta de tudo?
Foda-se, querido.

O brilho denso e prateado dos comerciais
(ah, as três mulheres do sabonete Araxá)
pra mim vale mais
do que todas as barricadas do mundo.

 

*

VEJA E LEIA
outros poetas do RIO DE JANEIRO em nosso Portal:

http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/rio_de_janeiro/rio_de_janeiro.html

 

        Página publicada em fevereiro de 2024




 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 
 
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