APAGÃO
As lanternas fraquejaram
durante meio minuto
de merda
Então nossos mapas ficaram cegos
feito morcego de cera
E agora
essa chuva de gesso e osso e olho de vidro
que não dá sossego
Faz dois dias que cavamos
círculo dentro do círculo dentro de círculo dentro de
sob raízes do cemitério
Não adianta choro
nem ranger de dentes
O jeito é assoar os olhos e molhar as mãos
no pesadelo seco dessa solidão
Lá longe
mugidos e cacarejos aos berros
abracadabras de cabras e cabritos
O cerne da solidão é oco
oco
eco
é como a cisterna sem fundo
de onde meu avô tirava água
quando meus ossos tinha só seis anos
“Sete”, resmungava meu avô
resmungavam seus ossos
do fundo de seu poço imundo
“Seis”
“Fedelho, sete!”
“É, pode ser
a tua conta pode estar certa”.
O balde despencava desaparecia
nunca mais voltava
Mesmo assim não sentíamos sede
Talvez porque já estivéssemos mortos
“Só os animais urravam”, ele me lembra
Ninguém sobreviveu à vida
de cercas e cernes solitários
da fazenda
Mas não me espantaria
se sob esses túmulos todos
o balde finalmente batesse no fundo
bem aqui ao lado
ÓDIO SUSTENIDO
Ouvi os molares desmoronando, vi sim
os molares mergulhados no ketchup
Ouvi a chacina no boteco da esquina, ah se vi
Ouvi a briga a faca a vingança – vi, não vi?
Ouvi o sujeito esquartejar o braço direito, é
o próprio braço direito
ouvi o lixo comendo o lixo, pode apostar
Ouvi a sirene da seringa assassina, vi sim
Ouvi a sereia o isqueiro a heroína
faiscando na veia do anti-herói, ah se vi
Ouvi o latido das papoulas prenhas – vi, não vi?
o nome do homem de braço metralhado
Ouvi a trilha sonora da matilha retalhada, é
o uivo do pivete no peito do canivete
Ouvi o peido o pus o pó, pode apostar
da filha do alto-falante
Ouvi os fogos de artifício, vi sim
os olhos boiando feito ilhas no vinagre
do fundo do poço sem fundo
Extraídos do livro Sobras do subsolo. São Paulo: Catatau, 2004."
OLIVEIRA, Valério. Mínimo eu. São Paulo: Catatau Editora, 2002. 86 p. 7,5x10,5 cm. ISBN 85-7416-135-7 Capa e diagramação de Mário Martins. Col. Biblioteca Nacional de Brasília, doação Aricy Curvello. “Valério Oliveira “
Sangue ruim
Nem marido nem filhos.
Ô, dó! Não trazia ninguém
no colo ou na coleira.
Professora — pela prole alheia
cólera proverbial, incontrolável.
"Vem cá, fedelha!
Tá se achando Chapeuzinho Vermelho?
Te mostro com quantos paus
se faz um lobo mau." Galinha de briga,
não fugia da rinha
— fustigava afetos e desafetos.
Afeita a tapas e intrigas, dos carolas o corolário:
"Essa tem o relho na barriga.
As aspirações do coito
Ao meter
entre as eternas páginas de Proust
o nariz
veio-me
ao vivo mais uma vez
o mesmo sentido da vida e do livro
que um dia sentira
afoito
entre as extremas e mal depiladas pernas de Madalena.
BABEL Poética. Ano I no. 1 –Tradução e Crítica. Novembro/De2020. Belo Horizonte – Minas Gerais. 64 p.
ISSN 1518-4005. Ex. biblioteca de Antonio Miranda
CASTELO BRANCO PRODUTOS ALIMENTÍCIOS
Dúvida vital: generais ou cereais?
No tempo em que os generais dominavam a Terra
(ou teriam sido os dinossauros?)
não havia essas fabulosas barrinhas de cereais
O que é melhor? O que é pior?
Se generais ou dinossauros, não importa.
No tempo em que a força bruta brutalizava a Terra,
nessa época não havia essas fibrosas
barrinhas de cereais.
Ah brutamontes e dinossauros, ah guloseimas
vermelhas, amarelas e azuis, de consistência
severa e intensa
(Deus sabe o glúten, a farinha, a aveia, o açúcar
e o estabilizante lecitina de soja E 322)!
O que é melhor? O que é pior?
A força irresistível das mandíbulas fardadas
ou as não menos irresistíveis barrinhas de cereais?
COSTA E SILVA PUBLICIDADE E PROPAGANDA
Não sou ativo nem passivo,
muito menos maníaco reflexivo
como esses estudantes que há por aí
Jamais pego em armas pra defender
esta nação de baixa definição
da falta ou do excesso de ordem e progresso
Pra que suar, bater sofrer? Pra que?!
A paz de todos os supercanais de tevê
me permite acompanhar cada cena, cada
corte, cada morte
bem mais de perto.
Não sou ativo nem passivo,
sou só do tipo que costuma se manter vivo.
A corrupção e a repressão
estão tomando conta de tudo?
Foda-se, querido.
O brilho denso e prateado dos comerciais
(ah, as três mulheres do sabonete Araxá)
pra mim vale mais
do que todas as barricadas do mundo.
*
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Página publicada em fevereiro de 2024
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