SAUDADE
No fundo daquele armário
tem um esqueleto de smoking,
tem um vestido de noiva
e uma praça de footing.
No fundo daquele armário
tem um sapato de missa,
uma medalha de esgrima
e uma caliça.
No fundo daquele armário
tem uma carta de amor,
tem um santinho de pêsames
e uma gota de suor.
Tem um susto no armário,
uma blusa de organdi,
tem um retraio que chora
numa pose, noutra ri.
Tem uma vida inteirinha,
um pandeiro e um rosário.
Tem menos vida aqui fora
do que no fundo do armário.
DISCURSO
Respeitável público,
há um engano lamentável:
aquele que prometeu
era outro e não eu.
Isto porque sou vários
ou, no mínimo, dois:
aquele que diz, antes
e o que nega, depois.
Minha querida dama,
há, aí, um grave equívoco:
quem te amou foi o boneco,
eu sou o ventríloquo.
MODERNIDADES
Neste mundo moderno,
absurdo,
a secretária eletrônica
fugiu
com meu criado mudo.
ANTUNES, Sérgio. A casa da infância. Ilustrações de Arcângelo Ianelli. São Paulo: Massap Pjmp; M. Lydia Pires e Albuquerque editores, 1982. s.p. 20,5x20,5 cm. Ilus. col. Tiragem: 1000 exs. Col. A.M.
DISCURSO
Respeitável público,
ha um engano lamentável:]
aquele que prometeu
era outro e não eu.
Isto porque sou vários
ou, no mínimo, dois:
aquele que diz, antes
e o que nega, depois.
Minha querida dama,
há, aí, um grave equívoco:
quem te amou foi o boneco,
eu sou o ventríloquo.
ENTREGA
Quando ela se abre
e se aninha
eu sou sabre
e ela é bainha.
Então ela me guarda
e me guia,
me enfarda
e me afia.
Até que, num momento,
a senha
de um novo movimento
me ordenha
Então ela me enxuga,
escorro,
ela me subjuga
e eu morro.