SEBASTIÃO NICOMEDES
Sebastião Nicomedes tem quarenta e dois anos [ em 2007 ] , nasceu em Assis, no interior de São Paulo e é poeta e escritor. Tais dados referem-se a um homem comum que aparentemente apaixonado pelas belas-letras, enveredou-se no mundo da escrita e literatura. Sua história poderia certamente passar despercebida (e de certa forma é) pela grande mídia, se não fosse por um fato surpreendente: ele é ex-morador de rua. Sebastião, ainda menino, perdeu seus pais e seus estudos não continuaram da forma congruente, não concluindo nem o Ensino Fundamental. No seu currículo escolar está documentada sua participação na escola pública somente até a oitava série. Posteriormente, morou temporariamente com uma irmã; quando alcançou a maioridade mudou-se para São Paulo, onde realizou trabalhos de diversas naturezas como pedreiro, churrasqueiro e letreiro; neste último sofreu um acidente e tornou-se morador de rua, pois tal evento o deixou sem estabilidade financeira para suprir suas necessidades básicas e para realizar outro ofício. Como desde a meninice apreciou poesias, foi incentivado por um amigo (também morador de rua) a escrever sobre os seus sentimentos em relação à vida e as condições de um morador de rua e como, no mais íntimo de sua alma, se sente ao viver em tal circunstância. Suas impressões, escritos foram transformados em livros e publicados. A obra "O Homem sem País", "Diário de um Carroceiro", "Vôo dos Pardais" e "Cátia, Simone e outras Marvadas" é um pedaço desse homem de pequenas e grandes tragédias, que já sentiu fome, frio, preconceito e mazelas durante sua trajetória de vida.
Extraído de: http://escritosevida.blogspot.com.br/
|
NICOMEDES, Sebastião. Cátia, Simone e outras Marvadas. São Paulo: Dulcineia Catadora, 2007. 32 p. capa pintada à mão, feita com papelão comprado de cooperativa de materiais recicláveis. “ Sebastião Nicomedes “ Ex. bibl. Antonio Miranda
O ALBERGADO
Recuso-me a pedir esmolas mas me chamam de mendigo
olham pra mim com indiferença medo, ódio, pena. Acham
que sou vagabundo, foragido ou doente. Pensam, ao me verem
jogado dormindo em qualquer calçada nas portas das
lojas em bancos de praça, dizem tudo, todo mal a meu
respeito. Não imaginam o trabalhador que sou, já fui
muito esforçado ninguém sabe o quanto sofro sendo um
desempregado desqualificado aprendiz sem estudos, sem
teto, sem nada tento esquecer o passado
bebendo, enchendo a cara. Não sei mais do presente, o
cobertor é meu escudo, esconde-me o rosto de todos,
protege-me em dias frios nas madrugadas de inverno-
Sigo por aí pernoitando de albergue em albergue, a
batalha é temporária, em surgindo uma vaga eu pego a
rotina, sei que é a mesma sempre, não muda nada,
acordar, tomar café antes das 7 sair perambular pela cidade
ocioso o dia inteiro. Busco um lugar pra almoçar uma
casa de convivência, se prefiro tem na rua sopão e pão
francês ao cair da tarde. Porém já se pode regressar
uma das muitas regras antes o banho depois o jantar
CUMPLICIDADE
a pinga pede o corpo
que pede o chão
que pede o corpo
que pede a pinga
se o corpo cai
equilibra a pinga
que o chão evita
que se derrame
que a pinga prende
o corpo ao chão
quer se levantar
evita a pinga
que pede o corpo
que pede o chão
que pede a pinga
e se reerguer o mendigo
a indústria da miséria entra em falência
porque a pinga gera impostos
porque o corpo que bebe
caindo ao chão não incomoda
OCUPAÇÃO
Da torre do prédio mais alto
contemplo a cidade toda
edifícios e casas
quantas portas e janelas
e a nós sem teto
sem um lugar para morar.
Essa noite não dormiremos, vamos vigiar
que amanhã bem cedinho
vem a tropa de choque
pra me expulsar daqui.
BABEL Poética. Ano I no. 1 –Tradução e Crítica. Novembro/De2020. Belo Horizonte – Minas Gerais. 64 p.
ISSN 1518-4005. Ex. biblioteca de Antonio Miranda
DIGNIDADE OU NADA!
A rua tem fases
A rua tem faces
política da heterogeneidade
Se chega à rua por vários motivos,
se cai e se levanta em proporção desigual.
Por um tempo se quer sair do relento,
voltar para um teto, um lugar
com telhado e chuveiro.
Um quarto é sempre um quarto,
saudades de uma cama arrumada.
Nas primeiras noites de rua ainda se sonha,
sucesso, oportunidades, portas de saída,
arrumar emprego, roupa nova,
ter um lar, uma moradia>
Do segundo mês em diante
vai chegando o comodismo daqui e ali,
vem a decepção, de tanto ouvir Não.
A calçada fica macia, a grama áspera,
o chão vira almofada, o papelão que cobre o corpo
é também o lençol, o cobertor, o colchão,
o estresse e o medo vencidos,
Muda-se de opinião
Que adianta uma casa com aluguel por pagar
contas atrasadas, luz e água vencidas
a imobiliária cobrando logo cedo,
o proprietário batendo à porta.
A vergonha, a sede, a escuridão,
a promissória, o salário baixo, inflação,
deflação, cartão de crédito, celular,
caixa postal, boleto, a multa.
Depois que se joga fora a chave da consciência,
nada mais importa.
Política pública na rua tem de começar por lazer,
tem que mudar a metodologia, educação e cultura,
tem que investir na arte da alegria e paz
pra depois reivindicar trabalho, moradia, renda,
habitação.
Que quem tá na rua tá de saco cheiro de
promessas vãs,
de ofertas medíocres, medidas paliativas,
demagogia qual escravo liberto.
Que mora na rua
não que voltar pra senzala.
*
Página ampliada e republicada em fevereiro de 2024
Página publicada em novembro de 2014
|