RICARDO GONÇALVES
Ricardo Mendes Gonçalves — pseudônimos: Ricardo Gonçalves, Bruno de Cadiz, D. Ricardito. Poeta, tradutor, jornalista, nasceu na capital do Estado, a 8 de agosto de 1888. Formou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1912. Orador e jornalista; fez 'parte do famoso grupo do "Minarete" de Monteiro Lobato. Faleceu no dia 11 de outubro de 1916.
Bibliografia: "Ipês" — São Paulo — Monteiro Lobato & Cia. — 1921.
Poemas extraídos de:
ANTOLOGIA DA POESIA PAULISTA II. Org. Domingos Carvalho da Silva, Oliveira Ribeiro Neto, Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Comissão Estadual de Literatura, Conselho Estadual de Cultura, 1960. 173 p. 16x23 cm. Inclui Errata. Impresso na Imprensa Oficial do Estado. Col. A.M.
O BATUQUE
Vagas constelações de pirilampos
penteiam de oiro a densa noite escura.
Há um trágico silêncio na espessura
dos matagais e na amplidão dos campos.
O batuque dos negros apavora.
Anda o saci nas moitas, vagabundo,
e almas penadas, almas do outro mundo,
passam gemendo pela noite em fora.
Só, no ranchinho de sapé coberto,
encosto o ouvido à taipa esburacada,
e ouço um curiango que soluça, perto...
Lambe a fogueira os últimos gravetos,
e pela noite rola, magoada,
a cantiga nostálgica dos pretos.
(Ipês — pág. 25)
AQUARELA
A casa onde mora aquela
Menina cor de açucena,
É uma casinha pequena,
Casa de porta e janela.
Tão pequenina e singela!
Ao vê-la, a ideia me acena
De quebrar o bico à pena
E fazer uma aquarela.
Pintar a casa, a colina,
Mas sobretudo a menina,
O ar sossegado e feliz,
Dando relevo à pintura,
Numa ridente moldura
De cravos e bogaris.
(Ibidem — págs. 15-16)
A CISMA DO CABOCLO
A VALDOMIRO SILVEIRA
Cisma o caboclo à porta da cabana.
Declina o sol, mas, rúbido, espadana
Ondas fulvas de luz.
No terreiro, entre espigas debulhadas,
Arrulham, perseguindo-se a bicadas,
Dois casais de pombinhos parirus.
A criação de penas se empoleira;
Come a ração no cocho da mangueira
Um velho pangaré.
E uma vaca leiteira e bois de carro
Pastam junto à casinha, que é de barro,
Coberta de sapé.
Longe, uma tropa trota pela estrada.
E a viração das matas, impregnada
De perfumes sutis,
Traz dos grotões, que a sombra, lenta, invade
O soturno queixume de saudade
Das pombas juritis.
Cisma o caboclo. Pensa na morena
Que vira numa noite de novena
Orando ao pé do altar.
Que vira... e que, por mal de seus pecados,
Tinha os olhos profundos e rasgados
E um riso de matar.
Branco, de fofos, era o seu vestido.
E ele, ao vê-la, sentindo-se ferido
Em pleno coração,
Baixinho suspirou: "Nossa Senhora!
Ai, meu São Bom Jesus de Pirapora
Da minha devoção!"
Depois não se conteve e, num fandango,
Furtou-lhe um beijo aos lábios de morango
O diabo do rapaz .
E ela volveu zangada: "Malcriado!
Seu vigário já disse que é pecado.
Aquilo não se faz!..."
E o caboclo medita. O sol em chama
Como agora há pouquinho não derrama
Ondas fulvas de luz.
O córrego soluça, a noite desce,
E vem dos capoeirões onde anoitece
O trilo vesperal dos inambus.
(Ibidem — págs. 43-45)
UMA VELA QUE PASSA . . .
Longe, um barco de pesca à viração desfralda
A vela, e singra ao sol que rompe a escassa bruma,
Rumo desses ilhéus que o maroiço engrinalda
Com seus flocos de espuma...
Foge... graciosamente enfunada, palpita
No horizonte lilás, como um pássaro exul...
Depois se afasta e é uma asa branca na infinita
Curva do mar azul.
Primeiro amor! sonho formoso de criança,
Cheio de luz, cheio de unção, cheio de graça!
És tu na curva azul de um mar todo bonança
Uma vela que passa...
(Ibidem — págs. 73-74)
Extraído de
QUINAN, Marcos. Súbitos. São Paulo: Scortecci, 2019.
127 p. ISBN 978-85-366-5864-3 Ex. bibl. Antonio Miranda
/Capítulo extraído do livro acima em que Marco Quinan narra uma situação em que é lido o poema de Ricardo Gonçalves que reproduzimos aqui: /
A ÚLTIMA NOITE
Na noite que antecedeu a partida se reuniram. O encontro foi de muita conversa e relatos. Eugênio, para encerrar, com seu jeito descontraído, pediu a palavra e declamou o poema "Rebelião":
Com gemidos agoureiros
Num pavoroso lamento
Lá fora perpassa o vento
Chicoteando os pinheiros
E a noite, caliginosa
De uma tristeza suprema,
E como a boca monstruosa
Da monstruosa caverna
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Chove. O arvoredo farfalha |
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Soturno o trovão ribomba |
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Como longínqua metralha |
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Depois o silêncio tomba |
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Pávido e trémulo, escuto |
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Mergulho a vista lá fora |
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E vejo a terra de luto |
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E ouço uma voz que apavora
Como um vago murmúrio
Mansa a princípio ela ecoa
Depois de um grito bravio
Que pela noite reboa
Que para a noite se eleva
Num pavoroso transporte
Como soluço de treva
Como um frémito de morte
Essa voz cheia de ameaças
De imprecações e rugido
E o clamor das populaças
É a voz dos desprotegidos Medonha, relutante e rouca
Vem desse mundo sombrio
Dos que tiritam de frio
E não têm pão para boca
Vem das lôbregas choupanas
Onde em tarimbas sem nome
Há criaturas humanas
Agonizando com fome
Vem da cloaca deletéria
Em que a "Justiça" comprime
Esses que a mão da miséria
Pôs no caminho do crime
Doa quartel — açougue enorme
Onde à espera da batalha
Morta de fadiga, dorme
A carne para metralha
Dos hospitais, dos hospícios
Das tascas onde ressona
A grei de todos os vícios
Que a miséria proporciona
Ah! Nesse grito funesto
Nesse rugido, palpita
Um rancoroso protesto
E o povo, a plebe maldita
Que, sombria, ameaçadora
Nas vascas do sofrimento
Mistura aos uivos do vento
A grande voz vingadora
Tremei, vampiros nojentos
Tremei, nos vossos dourados
Palacetes opulentos
O sangue dos desgraçados
Sugai, bebei gota a gota
Não tarda que chegue o instante
Em que a turba se levante
Sedenta, faminta e rota
E quando comece a luta
Quando explodir a tormenta
A sociedade corrupta
Execrável e violenta
Iníqua, vil, criminosa
Há de cair aos pedaços
Há de voar em estilhaços
Numa ruína espantosa
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No fim, mencionando o autor paulista Ricardo Gonçalves, com quem conviveu, começou a contar a história. No fim, mencionando o autor paulista Ricardo Gonçalves, com quem conviveu, começou a contar a história desde o tempo em que o poeta era estudante até o fim trágico ocorrido alguns anos passados.
Descreveu o Cenáculo, grupo de intelectuais que se reuniam para conversas no chalé da república de estudantes, chamado por eles de Minarete, no bairro do Belenzinho. Além de poeta, o amigo era bacharel em Direito, chegou a ser eleito vereador, mas exerceu o cargo por pouco tempo. Foi destituído por uma denúncia de que havia concorrido sem representação partidária. Atuou ao lado dos operários em comícios e greves desde sua época de estudante.
Poeta tido como "caboclista" por alguns críticos pela intimidade de sua poesia com a simplicidade do interior. Era respeitado e solicitado para conferências, palestras e publicado em jornais e revistas junto dos maiores escritores da época.
Após o nascimento e falecimento da filha, depois de atirar ferindo a amasiada e mãe que o traíra, com dois tiros no peito se suicidou.
Sua história passional causou perplexidade em todos que o conheciam.
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Página publicada em dezembro de 2012. página publicada em maio de 2019
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