RICARDO ESCUDEIRO
Ricardo Escudeiro, autor dos livros de poemas rachar átomos e depois (Patuá, 2016) e tempo espaço retratos (Patuá, 2014), nasceu em Santo André - SP em mil novecentos e oitenta e quatro. Passou e passa pelo sistema educacional estadual. Passou e passa pela Letras na USP. Leciona e aprende no ensino fundamental II e no ensino médio. Comprou a primeira guitarra por causa do Metallica. Entre outras coisas, gosta de Muay Thai e Spending my time, do Roxette. Em 2013 juntou-se ao Coletivo Tantas Letras, de São Bernardo do Campo, onde publica poemas no Zine Lapada Poética.
ESCUDEIRO, Ricardo. Rachar átomos e depois. São Paulo: Editora Patuá, 2016. 96 p. 14x21 cm. ISBN 978-85-8297-268-7 Editor Eduardo Lacerda. Ilustração, projeto gráfico e diagramação. Leonardo Mathias.
rachar um átomo e depois
quando as palavras esgotam
o possível
ah
já iam além de cansadas né
despossessas
esfoliação de núcleos
cirúrgico procedimento
alongando e abreviando
corpos e fronteiras
entre vivido e imaginado
inventado e deveras visto
palavra
des comungam
com as coisas elas mesmas
objetos fracta
e não há já mais nomenclatura eh
só fluxo
ondas de vozes
história
a flor
ah essa é mais embaixo
mas e o poeta ele mesmo
ah esse
se faz mais que a carne e o tempo
in verso
poltergeist que nos tenta
dá pras gentes o que não
é de gente
contatamos com o plano etéreo
***
é nóis
em toda padaria
esquina
ou calçada qualquer escondido no pretexto pra uma rima
tem um pobre
diabo que amassa
na chapa
o pão e o dia
próprios
um pouco do nosso
no de cada
***
um conto de fomes
com os Grimm
e esbanjava
com comida os trocados
da fada dos dentes
pra mastigar demorava
trunfo de fada
paciente
na mesma mão privatizar
a fome e o pão
***
não vai ter poda
Pensa nisso:
Num País que vota,
eu sou um munícipe a arranjar jardins.
Deste modo, não queiras ver a poesia de joelhos
onde seria suposto ela estar de pé
(Eduardo White)
pensa nisso
apogeu de chão
é ver queda
receber
de solos abertos
braço estendido
abraços rendidos
caiu
mais
um
violador de rosas
***
Hóstia
Você daria um osso de plástico a um cão faminto?
(Linus van Pelt)
às bocas
de carne sedentas
só restos de migalhas
abstratas
hipóteses do pão
e a fome
em placebo saciada
***
das coisas no porão
com Charley Goldman e Mickey Goldmill
But the will must be stronger than the skill
(Muhammad Ali)
assim no ringue como no coração
estar no último minuto
do último round beijando
a última lona de vida
pra qual venha talvez a cogitar
possibilidade
se entregar
e ouvir lá do corner
vir uma voz gritada
no pé da orelha sussurrar
levanta seu filho da puta
porque te amo
assim no ringue como no coração
***
miguel ângelo
deitar fora da pedra
tudo o que não é necessário
esculpir por subtração
domar
não
mutilar o mármore
desbrutá-lo
cuspir um construto
corpo portátil
e poder não carregá-lo
Dealer
“Strumming my pain with his fingers”
(In: “The score”, Fugees, 1996)
no ponto de ônibus bem de frente com a entrada
da viela
o motorista do ônibus aproveita o farol vermelho
pra cuidar
do desembarque da cônjuge e do filho
ajuda ela a ajeitar
uma mochilinha infantil nas costas
e a criança no braço
e
aproveita pra colocar na mochilinha
sem que ela veja
uns cuidados umas juras
que ela vai ver quando chegar em casa
aqui de longe é o que parece ao menos
aqui de longe
aqui do banco atrás da catraca
é o que o gesto que os dois trocam
quase todos os dias em que conseguimos
o ônibus desse horário
o gesto é esse da troca de afago no rosto um do outro
sem fala sem beijo sem nada
só
a mão de um em concha na bochecha do outro
e vice versa
aqui desse longe
é o que esse gesto nos passa
ANTOLOGIA PATUÁ 10 ANOS + Patuscada/ Vários autores. Editor Eduardo Lacerda. Capa de Leonardo Mathias. São Paulo: Editora Patuá, 2021.; 288 p. 13,5 x 21 cm.
ISBN 978-65-5864-191-9 Ex. bibl. Salomão Sousa
birdman
quando eu tinha uns seis anos
amarrei uma toalha nas costas
me pendurei numa espécie de varal do quintal de casa
e me joguei ao nada pra voar como um clark kent
e foi essa a primeira vez em que quebrei o nariz
e também foi a vez em que comecei a desconfiar
que não há
super-herói
mão invisível
entidade imaginária
sangue sagrado
que te segure
nessa terra redonda
as coisas caem
scorpion
faz então uma lista de antagonistas dos mortos vivos
conta pra gente dos prós e dos contras
das maneiras pelas quais o que somos enquanto fim
é processado
nem aquele que sabe do preparo de rostos para cortejos
quem inventou que isso fosse um emprego e não
uma situação desconfortável
ele dizia para gente de uma história
de uma coxia de incinerar
e da véspera das faces em sua intensa espera
tudo isso acaba deixando a gente pra baixo
será que convém
trocar a pele dos nossos mortos
antes de assoprá-los
e bem provável
*
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http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/sao_paulo.html
Página publicada em setembro de 2021
Página publicada em abril de 2016
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