RENATO REZENDE
Nascido em 1964, Renato Rezende abandonou seus estudos na USP o início da década de 1980 para viajar, tendo percorrido toda a Europa e parte da América do Norte. Recebeu o diploma summa cum laude de Bachelor of Arts pela Universidade de Massachusetts, com dissertação sobre a poeta porto-riquenha Julia de Burgos. Estudou também em Espanha e na Índia. Como poeta publicou, entre outros, Aura (2AB, 1997), Asa (Velocípede, 1999), Passeio (Record, 2001), com o qual recebeu a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação e Ímpar (Lamparina, 2005), ganhador do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional. (Fragmento da apresentação de uma entrevista com o poeta em http://www.lainsignia.org/)
Poeta, desenhista e tradutor de livros e artigos de filosofia, história e arte contemporânea, além de poetas de língua inglesa e espanhola.
Nasceu em São Paulo e vive no Rio de Janeiro.
REZENDE, Renato. Passeio. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001. 104 p. 14x21 cm. Prefácio de Alexei Bueno. ISBN 85-01-05764-9 “Bolsa Fundação Biblioteca Nacional para Obra em Formação – Poesia” “ Renato Rezende “ Ex. bibl. Antonio Miranda
“O que mais me agrada na poesia de Renato Rezende é a fluidez e o frescor de sua linguagem. Não há nela alquimia vocabular, a busca de palavra inesperada. Os poemas de Passeio brotam do chão como a água; e o que dizem é aparentemente simples, mas não ingênuo. É ua poesia que nasce da reflexão sobre o viver natural.” FERREIRA GULLAR
PARAISO PERDIDO
(ou pré-poema)
Nenhum de nós jamais pensaria
em partir, em despegar-se deste corpo
que nos une e nos consome. Mas todas as noites agora
acordo com a dor de ir embora.
Não mais os aromas,
a cor, o brilho
das partículas do paraíso?
Nenhum de nós, desprovidos de suas asas,
gostaria de encostar na terra, decaído.
No entanto, já me acena o mundo
com seu jogo de luz e trevas.
Mas, e o amor, o verdadeiro
Amor que sustenta tudo, que me permite
estar ainda erguido sobre esta nuvem?
Desço, em desespero, com o peso do corpo
à terra da impermanência
para nela destruir o que em mim não é eterno
como o fogo se apaga com fogo
como o ferro se forja no ferro?
Pensei que já não mais desceria.
Pensei que ficaria nesta esfera
até me unir em definitivo
ao mais alto círculo divino.
Mas é o meu próprio desejo
que me leva de volta ao solo,
e de novo me descubro
homem.
Pensei que aqui ficaria até a memória
de tudo que vivi antes na terra
desaparecesse da minha memória.
Mas já sinto a própria memória
com sua sede de aranha e infância
arrombar todas as portas.
Que não seja longo, ó anjos, este passeio.
Mas, ao tocar os pês no chão
já começo a andar, e em cada passo
mais me esqueço.
PRENÚNCIOS DE GAIVOTAS
Sou uma alma pequena
pousada na Terra.
Mais precisamente pousada numa pedra
na Urca, esta tarde.
As nuvens, o céu
as gaivotas, o mar.
Tudo passa.
Adiante caminham
no calçamento da encosta da praia
dezenas de pessoas iguais a mim.
Todas passam, mas não notam
o esplendor da natureza.
Todas passam, e pensam,
e são seus pensamentos que limitam o mar.
Seria a mente o limite do tempo?
Estamos todos vivendo menos,
presos dentro de nós mesmos.
Sós
neste planeta azul, sob o sol.
Mas sinto que se der um salto,
aprendo a voar.
Rio de Janeiro, 24 de fevereiro 1997
DOMINGO
Passeamos hoje, domingo
no Aterro do Flamengo.
Fazia um dia lindo.
Parecia uma cidade estrangeira
(quando eu nela chegava
pela primeira vez,
e a luz do sol sumindo-se na curva
suave de cada rua parecia anunciar
uma infinidade de aventuras:
a vida jorrava em si mesma).
A liberdade não existe,
é um estado de espírito.
Passeava, domingo, no Aterro
na Barra, no Parque Guinle,
a classe média brasileira,
e sem mistério, sem desespero,
gozava seu merecido recreio.
Aqui estou eu, no meio
do dia-a-dia da vida:
um invólucro vazio
do que já foi risco e incêndio.
Rio de Janeiro, 8 de março 1997
Extraído de
BABEL POÉTICA. Revista de Poesia. Ano 1, N. 4 – Agosto/Setembro 2011. ISSN1518-4005. Editor Ademir Demarchi. babelpoetica.wordpress.com
A PERNA
Numa esquina perto de minha casa
vive uma mendiga
de perna amputada
Tenho vontade de beijar
a perna que falta.
Acariciar
aquele pedaço de nada.
A mão dela está queimada
e parece que foi costurada
de volta ao braço.
Com essa mão ela pede esmola.
Hoje passei por lá
e vi que perna dela
(a outra)
estava bronzeada.
Ela é loira, ela é moça, é a flor
da perna amputada.
Me deu vontade
de entrar em seu corpo
(fragmentado)
a meio metro da calçada.
Entrar em seu corpo e ser ela,
ser a perna que falta.
Ser a falta da perna dela.
Tive vontade de amar
e ser nada.
O ESPELHO
Vindo no caminho, estão
todas as coisas que percebo, tudo
o que toco,
sinto
e vejo:
frutos do meu próprio pensamento.
Delas, uma a uma, me despeço
como num últimos, íntimo beijo.
Em mim,
a sombra de todos os vultos, lago
límpido, espelho
do céu e das nuvens
que passam;
do qual limpos
as imagens que turvam o fundo,
e que me unem ao mundo
pelo desejo.
Também eu
desapareço
na superfície, sem deixar vestígios.
SURJO
EU
Esvaziar-me
e tornar-me nada.
V¡ver da mesma maneira, a mesma missa, em barracas
ou palácios.
Ter o corpo oco, depois de cada encontro
e durante cada ato
não pensar em nada, não levar nada
para casa
não sentir nem desejo nem raiva.
Que não exista algo chamado Renato.
Nunca fazer nada.
Que Renato seja uma máscara
vazia —mas este espaço,
não seja ausência, mas luminosidade.
A coisa mais pura e clara.
YO
Vaciarme
y tornarme nada.
Vivir de la misma manera, la misma cosa, en chozas
o palacios.
Tener el cuerpo hueco, después de cada encuentro
y durante cada acto
no pensar nada, no llevar nada
a casa
no sentir deseo ni rabia.
Que no exista algo llamado Renato.
Nunca hacer nada.
Que Renato sea una máscara
vacía —pero que este espacio
no sea ausencia, sino luminosidad.
La cosa más pura y clara.
PASSEIO
Demoro-me
no centro da cidade,
no Castelo, no Passeio.
Demoro-me
no Rio de Janeiro
como se fosse outrora
e se dissesse:
Ele demorava-se no Centro,
a esmo.
Demoro-me como quem quer
ser atropelado
sumir num tropeção
esquecer-se de si mesmo.
Demoro-me como se demoram
os mendigos que moram na rua
e que esperam o dia inteiro
para suas casas serem abandonadas.
Demoro-me como um destituído
cuja única felicidade
o clarão de luz na cara.
Paseo
Me demoro
en el centro de la ciudad,
en el Castelo, en el Passeio.
Me demoro
en Río de Janeiro
como si fuese otrora
y se dijese:
Él se demoraba en el Centro,
al azar.
Me demoro como quien quiere
ser atropellado
perderse en un tropezón
olvidarse de sí mismo.
Me demoro como se demoran
los mendigos que viven en la calle
y esperan el día entero
que sus casas sean abandonadas.
Me demoro como un expulsado
cuya única felicidad
es un destello de luz en la cara.
Página publicada em fevereiro de 2015, ampliada em agosto de 2018
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